quinta-feira, agosto 31, 2006

Sentimentos do fundo da mala

Aeroporto de Frankfurt, 16 de Maio de 2006 10:05 hora local

Houston fica por enquanto na bruma opaca da memória. Até Agosto.
É verdade que passei o tempo todo com saudades do Porto, manifestei-o abertamente, preocupei muitos, surpreendi todos (até o meu ego!). Custou-me. Mas nos últimos dias no Lone Star State (vulgo, Texas), na minha “casa”, no departamento, nos trajectos matutino e vespertino diários, o meu olhar autonomizou-se para se demorar nos pormenores, numa derradeira e sempre renovada tentativa de fixar momentos e emoções, as saudades de Houston – isso mesmo, leram bem: dos chapéus, das botas, dos coletes, das estrelas, dos cowboys, da comida mexicana, indiana, tailandesa, das saladas, dos Frapuccinos Green Tea da Starbucks, das Bookstores, dos meus colegas e amigos, dos meus vizinhos – começavam a apertar-me o peito…
Adapto-me muito facilmente a qualquer situação, quem me conhece diz que não parece, mas, chegado o momento, surpreende-se. Sempre. É verdade. Não sou esquisita. Mas, francamente, abomino pessoas que tornam a vida difícil ao próximo. (O próximo sou sempre EU, nomeadamente em diáspora.) Não sei como e nem percebo bem porquê, o facto é que a minha cicerone, whoever-wherever-whenever, é sempre universalmente considerada óptima pessoa, a mais altruísta, a mais aberta, a mais divertida, a melhor profissionalmente, a mais indicada para a integração mais fácil e rápida, a melhor pessoa – “O que é que eu disse?” – todavia, por razões que ultrapassam a própria Razão, creio, surge sempre um antagonismo qualquer que a contagia e então incompatibiliza-se comigo, sem nunca mo dizer, mas pregando, aos quatro ventos, mundos e fundos acerca da minha pessoa, em vez de ir à sua vidinha, pequena e cinza, e me deixar sossegada. Complicam-me terrivelmente a vida, estas cicerones. Sempre! Começo a ficar saturada. Enfim… “As respostas que os outros nos dão dizem muito mais sobre eles próprios do que sobre nós”, repito constantemente para mim mesma. Pode ser que um dia acredite… Creio que as saudades de Portugal se ficaram a dever em grande parte a essas desventuras. Claro que também se deveram ao facto de ter travado conhecimento (e amizade) com outros portugueses e o poder mágico da língua, a partir de então usada todas as sextas ao almoço por entre gargalhadas e suspiros, me ter recordado o sentir português e lembrado que um oceano é uma manta de muitos quilómetros sem nenhuma esquina que se possa dobrar facilmente (ou não), como dobrámos o Bojador.
Há um aforismo latino que diz algo como: “Não merece o doce quem não provou o amargo.” Pois, por isso mesmo é que temo que agora os posts sejam menos regulares. Vou embrenhar-me no doce, edredão-sofá-manos-amigos-esplanadas-jardins-livros, e não saio de lá tão cedo. Vou voar, agarrar o azul, beber luz, tocar o céu, apanhar sol, tornar-me mar. Vou aproveitar estes dias mornos para dar um pontapé à chuva e ao frio, sair com os meus amigos, divertir-me, rir até me doerem os abdominais, trabalhar também, é certo, mas menos. Vou reconstruir-me por dentro que é para isso que servem os regressos aos sítios onde somos realmente felizes.
O lugar a que chamamos casa é na verdade onde está o nosso coração.
Muito boas intenções, como sempre!
Depois, o trabalho fala mais alto e os amigos... passam para o plano em que têm razão para se queixar...

segunda-feira, agosto 28, 2006

A Poesia do Dicionário

O Livro da Solidão

Cecília Meireles

Os senhores todos conhecem a pergunta famosa universalmente repetida: "Que livro escolheria para levar consigo, se tivesse de partir para uma ilha deserta...? "Vêm os que acreditam em exemplos célebres e dizem naturalmente: "Uma história de Napoleão." Mas uma ilha deserta nem sempre é um exílio... Pode ser um passatempo... Os que nunca tiveram tempo para fazer leituras grandes, pensam em obras de muitos volumes. É certo que numa ilha deserta é preciso encher o tempo... E lembram-se das Vidas de Plutarco, dos Ensaios de Montaigne, ou, se são mais cientistas que filósofos, da obra completa de Pasteur. Se são uma boa mescla de vida e sonho, pensam em toda a produção de Goethe, de Dostoievski, de Ibsen. Ou na Bíblia. Ou nas Mil e uma noites. Pois eu creio que todos esses livros, embora esplêndidos, acabariam fatigando; e, se Deus me concedesse a mercê de morar numa ilha deserta (deserta, mas com relativo conforto, está claro — poltronas, chá, luz elétrica, ar condicionado) o que levava comigo era um Dicionário. Dicionário de qualquer língua, até com algumas folhas soltas; mas um Dicionário. Não sei se muita gente haverá reparado nisso — mas o Dicionário é um dos livros mais poéticos, se não mesmo o mais poético dos livros. O Dicionário tem dentro de si o Universo completo. Logo que uma noção humana toma forma de palavra — que é o que dá existência ás noções — vai habitar o Dicionário. As noções velhas vão ficando, com seus sestros de gente antiga, suas rugas, seus vestidos fora de moda; as noções novas vão chegando, com suas petulâncias, seus arrebiques, às vezes, sua rusticidade, sua grosseria. E tudo se vai arrumando direitinho, não pela ordem de chegada, como os candidatos a lugares nos ônibus, mas pela ordem alfabética, como nas listas de pessoas importantes, quando não se quer magoar ninguém...O Dicionário é o mais democrático dos livros. Muito recomendável, portanto, na atualidade. Ali, o que governa é a disciplina das letras. Barão vem antes de conde, conde antes de duque, duque antes de rei. Sem falar que antes do rei também está o presidente. O Dicionário responde a todas as curiosidades, e tem caminhos para todas as filosofias. Vemos as famílias de palavras, longas, acomodadas na sua semelhança, — e de repente os vizinhos tão diversos! Nem sempre elegantes, nem sempre decentes, — mas obedecendo á lei das letras, cabalística como a dos números... O Dicionário explica a alma dos vocábulos: a sua hereditariedade e as suas mutações. E as surpresas de palavras que nunca se tinham visto nem ouvido! Raridades, horrores, maravilhas...Tudo isto num dicionário barato — porque os outros têm exemplos, frases que se podem decorar, para empregar nos artigos ou nas conversas eruditas, e assombrar os ouvintes e os leitores... A minha pena é que não ensinem as crianças a amar o Dicionário. Ele contém todos os gêneros literários, pois cada palavra tem seu halo e seu destino — umas vão para aventuras, outras para viagens, outras para novelas, outras para poesia, umas para a história, outras para o teatro. E como o bom uso das palavras e o bom uso do pensamento são uma coisa só e a mesma coisa, conhecer o sentido de cada uma é conduzir-se entre claridades, é construir mundos tendo como laboratório o Dicionário, onde jazem, catalogados, todos os necessários elementos. Eu levaria o Dicionário para a ilha deserta. O tempo passaria docemente, enquanto eu passeasse por entre nomes conhecidos e desconhecidos, nomes, sementes e pensamentos e sementes das flores de retórica. Poderia louvar melhor os amigos, e melhor perdoar os inimigos, porque o mecanismo da minha linguagem estaria mais ajustado nas suas molas complicadíssimas. E sobretudo, sabendo que germes pode conter uma palavra, cultivaria o silêncio, privilégio dos deuses, e ventura suprema dos homens.

domingo, agosto 27, 2006

Porque de quando em vez me apetece saltar para aqui

Pessimismos


- Sou-te muito sincera: às vezes parece que sinto falta de uma companhia...
- Entendo e acho perfeitamente normal, o contrário é que seria estranho!
- ...
- O problema é que nesses momentos (de falta) estamos a idealizar e a esquecermo-nos de que ninguém é perfeito e que a outra pessoa tem tantos defeitos quanto nós próprios e que conviver com uma pessoa significa a toda a hora uma luta connosco próprios para aceitar o outro naquilo que ele é e não naquilo que nós queremos que ele seja.
- (Docemente, ingenuamente chocada para meu deleite!) Mas que pessimista!
- Se calhar... ou talvez não ...

sábado, agosto 26, 2006

La Cogida y la Muerte

A las cinco de la tarde.
Eran las cinco en punto de la tarde.
Un niño trajo la blanca sábana
a las cinco de la tarde.
Una espuerta de cal ya prevenida
a las cinco de la tarde.
Lo demás era muerte
y sólo muerte a las cinco de la tarde.

El viento se llevó los algodones
a las cinco de la tarde.
Y el óxido sembró cristal y níquel
a las cinco de la tarde.
Ya luchan la paloma y el leopardo
a las cinco de la tarde.
Y un muslo con un asta desolada
a las cinco de la tarde.
Comenzaron los sones del bordón
a las cinco de la tarde.
Las campanas de arsénico y el humo
a las cinco de la tarde.
En las esquinas grupos de silencio
a las cinco de la tarde.
¡Y el toro solo corazón arriba!
a las cinco de la tarde.
Cuando el sudor de nieve fue llegando
a las cinco de la tarde,
cuando la plaza se cubrió de yodo
a las cinco de la tarde,
la muerte puso huevos en la herida
a las cinco de la tarde:
A las cinco de la tarde.
A las cinco en punto de la tarde.


Un ataúd con ruedas es la cama
a las cinco de la tarde.
Huesos y flautas suenan en su oído
a las cinco de la tarde.
El toro ya mugía por su frente
a las cinco de la tarde.
El cuarto se irisaba de agonía
a las cinco de la tarde.
A lo lejos ya viene la gangrena
a las cinco de la tarde.
Trompa de lirio por las verdes ingles
a las cinco de la tarde.
Las heridas quemaban como soles
a las cinco de la tarde.
y el gentío rompía las ventanas
a las cinco de la tarde.
A las cinco de la tarde.
¡ Ay qué terribles cinco de la tarde!
¡Eran las cinco en todos los relojes!
¡Eran las cinco en sombra de la tarde!


Federico García Lorca (1898 - 1936)
in "Llanto por Ignacio Sánchez Mejías" (1935)

quinta-feira, agosto 24, 2006