quarta-feira, fevereiro 28, 2007

O retrato de Mónica


Mónica é uma pessoa tão extraordinária que consegue simultaneamente: ser boa mãe de família, ser chiquíssima, ser dirigente da "Liga Internacional das Mulheres Inúteis", ajudar o marido nos negócios, fazer ginástica todas as manhãs, ser pontual, ter imensos amigos, dar muitos jantares, ir a muitos jantares, não fumar, não envelhecer, gostar de toda a gente, gostar dela, dizer bem de toda a gente, toda a gente dizer bem dela, coleccionar colheres do séc. XVII, jogar golfe, deitar-se tarde, levantar-se cedo, comer iogurte, fazer ioga, gostar de pintura abstracta, ser sócia de todas as sociedades musicais, estar sempre divertida, ser um belo exemplo de virtudes, ter muito sucesso e ser muito séria.
Tenho conhecido na vida muitas pessoas parecidas com a Mónica. Mas são só a sua caricatura. Esquecem-se sempre ou do ioga ou da pintura abstracta.
Por trás de tudo isto há um trabalho severo e sem tréguas e uma disciplina rigorosa e constante. Pode-se dizer que Mónica trabalha de sol a sol.
De facto, para conquistar todo o sucesso e todos os gloriosos bens que possui, Mónica teve que renunciar a três coisas: à poesia, ao amor e à santidade.
A poesia é oferecida a cada pessoa só uma vez e o efeito da negação é irreversível. O amor é oferecido raramente e aquele que o nega algumas vezes depois não o encontra mais. Mas a santidade é oferecida a cada pessoa de novo cada dia, e por isso aqueles que renunciam à santidade são obrigados a repetir a negação todos os dias.
Isto obriga Mónica a observar uma disciplina severa. Como se diz no circo, "qualquer distracção pode causar a morte do artista". Mónica nunca tem uma distracção. Todos os seus vestidos são bem escolhidos e todos os seus amigos são úteis. Como um instrumento de precisão, ela mede o grau de utilidade de todas as situações e de todas as pessoas. E como um cavalo bem ensinado, ela salta sem tocar os obstáculos e limpa todos os percursos. Por isso tudo lhe corre bem, até os desgostos.
Os jantares de Mónica também correm sempre muito bem. Cada lugar é um emprego de capital. A comida é óptima e na conversa toda a gente está sempre de acordo, porque Mónica nunca convida pessoas que possam ter opiniões inoportunas. Ela põe a sua inteligência ao serviço da estupidez. Ou, mais exactamente: a sua inteligência é feita da estupidez dos outros. Esta é a forma de inteligência que garante o domínio. Por isso o reino de Mónica é sólido e grande.
Ela é íntima de mandarins e de banqueiros e é também íntima de manicuras, caixeiros e cabeleireiros. Quando ela chega a um cabeleireiro ou a uma loja, fala sempre com a voz num tom mais elevado para que todos compreendam que ela chegou. E precipitam-se manicuras e caixeiros. A chegada de Mónica é, em toda a parte, sempre um sucesso. Quando ela está na praia, o próprio Sol se enerva.
O marido de Mónica é um pobre diabo que Mónica transformou num homem importantíssimo. Deste marido maçador Mónica tem tirado o máximo rendimento. Ela ajuda-o, aconselha-o, governa-o. Quando ele é nomeado administrador de mais alguma coisa, é Mónica que é nomeada. Eles não são o homem e a mulher. Não são o casamento. São, antes, dois sócios trabalhando para o triunfo da mesma firma. O contrato que os une é indissolúvel, pois o divórcio arruína as situações mundanas. O mundo dos negócios é bem-pensante.
É por isso que Mónica, tendo renunciado à santidade, se dedica com grande dinamismo a obras de caridade. Ela faz casacos de tricot para as crianças que os seus amigos condenam à fome. Às vezes, quando os casacos estão prontos, as crianças já morreram de fome. Mas a vida continua. E o sucesso de Mónica também. Ela todos os anos parece mais nova. A miséria, a humilhação, a ruína não roçam sequer a fímbria dos seus vestidos. Entre ela e os humilhados e ofendidos não há nada de comum.
E por isso Mónica está nas melhores relações com o Príncipe deste Mundo. Ela é sua partidária fiel, cantora das suas virtudes, admiradora de seus silêncios e de seus discursos. Admiradora da sua obra, que está ao serviço dela, admiradora do seu espírito, que ela serve.
Pode-se dizer que em cada edifício construído neste tempo houve sempre uma pedra trazida por Mónica.
Há vários meses que não vejo Mónica. Ultimamente contaram-me que em certa festa ela estivera muito tempo conversando com o Príncipe deste Mundo. Falavam os dois com grande intimidade. Nisto não há evidentemente nenhum mal. Toda a gente sabe que Mónica é seriíssima e toda a gente sabe que o Príncipe deste Mundo é um homem austero e casto.
Não é o desejo do amor que os une. O que os une é justamente uma vontade sem amor.
E é natural que ele mostre publicamente a sua gratidão por Mónica. Todos sabemos que ela é o seu maior apoio, o mais firme fundamento do seu poder.

Sophia de Mello Breyner Andresen
Eu, "Mónica", naaaaaaaaaaaa!

terça-feira, fevereiro 27, 2007

Lagarto, lagarto, lagarto...


Primeiro foi o computador... O computador, assim que chegou ao velho continente, amuou, sentou-se a meio da estrada, em pleno asfalto, berrou, esperneou, chorou e lambeu lágrimas, e não houve guloseima doce o suficiente, colo quente o suficiente, abraço apertado o suficiente para a acabar com a greve. O computador barricou-se dentro de si mesmo e morreu para o mundo. Para mim, especialmente.

Depois foi a mana, a mais nova. Estava eu na Madeira, ela no Porto, com uma súbita, mais ou menos surpreendente, mais ou menos esperada, traqueo-bronquite, vulgo início de pneumonia. E a mana, outra, mais velha, eu, ficou doente também. Por solidariedade, por temor, pelo exagero que sempre a/me carateriza e a que a distância ajuda. Imenso

Depois foi o gabinete. Do Projecto do Orientador, depois meu ou dos alunos de Doutoramento (eu na mesma), agora nem meu, nem do Projecto do Orientador. "Então e agora trabalho onde?"

Depois foi há bocado. O fogão. Seguiu e-s-c-r-u-p-u-l-o-s-a-m-e-n-t-e o computador.

Isto sem contar com os amigos que não quero ver, perdão, aceitar que estejam na fila, no lugar exactamente a seguir ao fogão.

Tem sido um regresso e tanto.

domingo, fevereiro 25, 2007

terça-feira, fevereiro 20, 2007

Será?

"Carnaval é quando o pessoal tira a máscara."

sábado, fevereiro 17, 2007

Sejam servidos!



Carnaval madeirense no Porto. Porque os (vossos) olhos também comem, sejam servidos!

Não, não são sonhos. Chamam-se MALASSADAS, são uma especialidade madeirense carnavalesca e yum, yum... simplesmente com açúcar ou, para os mais refinados ou arregados à tradição insular, com mel de cana... ai, ai... são uma delícia... Estas foram as primeiras a sair - obra da minha Piquininha (vulgo, a minha maninha mais nova).

INGREDIENTES

1 kg de farinha
12 ovos
¼ litro de leite
raspa de 2 laranjas
sumo de meia laranja
sal (uma pitada)
50 gramas de fermento de padeiro

MODO DE PREPARAR

1.º Desfaça o fermento em água morna e junte o sal e a raspa das laranjas.
2.º Junte a farinha, ovos, o leite e o sumo da laranja.
3.º Amasse durante uma hora.
4.º Ponha a massa a levedar durante quatro horas.
5.º Com a ajuda de duas colheres, tire pequenas quantidades de massa e frite-as em óleo
bem quente.

Bom Carnaval!!!

quarta-feira, fevereiro 14, 2007

Acabei de comprar um vestido...

... lllllllliiiiiiiiiiiiiiiiiiiinnnnnnnnndddddddoooooooo!!!!!!!!!!!!

terça-feira, fevereiro 13, 2007

Paternas subtilezas...


Eu? Eu estou aqui (sem computador... é por isso!...). Mas amanhã, ai amanhã, aí...

Muito graças à subtileza paterna. My Dad knows his ways de uma maneira... impressionante!

Há dias, estaquei na Sic na hora da Floribella - "estacar" é mesmo o termo... muito tempo nos EUA provoca isto - quando uma pessoa começa a querer inteirar-se do que se passa neste cantinho do mundo em termos de entretenimento. Seis ou sete da tarde seria, porque essa é a hora a que chegam os meus pais a casa dos respectivos empregos, todos os canais de interesse estavam com compromissos publicitários portuguesamente longos, fazer o quê? Sic, Sic, Sic e conseguir voltar à realidade e ao bom senso... difícil! Não acredito que haja alguém neste país que, ouvindo aqueles diálogos tão, tão, enfim, digamos... surreais (!), consiga ter força para mudar de canal imediatamente. (Talvez isso explique as audiências do programa...?) Como é possível alguém escrever tanta asneira de uma só assentada ("Oh Príncipe, tu és tão bom como salame de chocolate acabado de sair do frigorífico!"), como é que alguém estrutura uma história à volta de uma personagem tão abertamente mal-educada - não rude, já tive alunos rudes, com falta de maneiras, I mean, mas nunca, nunca nenhum me levantou o tom! Que dizer desta rapariga que não mede os decibéis com o para-todos-os-efeitos patrão, (além do que é preguiçosa, tadinha, tem muitos problemas pessoais para ter cabeça para ensaiar a "berro-banda", de estética duvidosa, mas alguém leva a sério uma miúda que se veste de saia fuschia e camisola verde?) Bem, devem todos conhecer a série melhor que eu, por isso não me alongo mais. Digo apenas que quando se fala em AP, Aconselhamento Parental, refere-se a designação a contéudos programáticos menos próprios que não se resumem ao sexo e à violência. Porque a universalização da má educação e o manejo assustadoramente reprovável da língua portuguesa também são obscenos. Um pai ou uma mãe que se sente a ver a série com o filho(a), fica logo aterrorizado. Eu pelo menos fiquei. Ou melhor ficaram os meus 25 anos.

Bem, estava eu no meio da minha estupefacção quando....

O meu pai, matreiro, matreiro:
- Então e as férias, quando acabam?
Eu:
- (De facto já vão em três semanas, que lhe digo...?) Lá para a semana, segunda ou terça-feira...
Ele:
- Já marcaste?
Eu:
- Não. Marco amanhã e compro bilhete e tudo...
A minha mãe, inocente:
- Esta segunda? Já? Tão cedo!!!
O meu pai (matreiro, já disse!):
- Segunda é cedo, lá para quarta...
Eu, automaticamente porque em choque perante as enormidades da Flor berrante:
-Ok, então marco para quarta.

Cinco horas depois, já na cama, mas a planear como sempre o dia seguinte antes de adormecer - o dia em que iria comprar o bilhete de avião - Quarta, portanto, Quarta-feira, dia 14 de Fevereiro, no voo da manhã... Quarta, dia 14? De fevereiro? Ehehehe!!! Já devia ter pensado nisso, enfim... valeu a subtileza do meu pai.

Amanhã estou onde quero... e o(s) meu(s) pai(s) agradece(m).

quinta-feira, fevereiro 08, 2007

Um E.T. no autocarro


Andar de autocarro é uma aventura. Em qualquer lugar do mundo.

Em alguns sítios são o estado dos ditos que deixam a desejar (falta de limpeza, mecanismos antigos, não funcionais, assentos desconfortáveis), noutros, são as pessoas ou o cheiro que delas emana, em todos, os motoristas malucos que tiram a carta de pesados só sabem eles onde... Bem, na Madeira, maus equipamentos não existem, maus cheiros também não, mas os motoristas... e se a isto acrescentarmos a morfologia (no sentigo geológico do termo), quer dizer, o relevo desta ilha - muita curva apertada, muita subida inesperada, suada, medida, sofrida; muita descida ainda mais inesperada, desbragada, desmedida... enfim, uma Aventura digna da maiúscula.

Não costumo andar muito de autocarro, em sítio nenhum. Em Braga, ando mais a pé, no Porto também, e de metro e de comboio. Mas há coisas que não têm tempo, nem lugar... A ajuda a uma pessoa idosa é uma delas. Creio.

Ontem à tarde achei de ir ao Madeirashopping explorar o mais recente espaço FNAC do país (uma desilusão: demasiado espaço dedicado à tecnologia, uma secção de literatura portuguesa com uma selecção muito, muito pobre; melhor, a de literatura estrangeira mas ainda assim vergonhosa, de insuficiente, a contrastar com as secções, vergonhosas no sentido oposto, de dvds e cds!...) Podia ter ido a pé, moro pertíssimo (no Porto percorro distâncias muito maiores), mas enfim, tenho andado muito na lua, mas pouco, pouquíssimo, cá em baixo, a pé, preguiçosa (!), e até já nem me lembro do número do dito, sei que ia de pé, mas à espera de um lugar sentado decente, farta que estava do sobressalto a cada travagem, desnecessariamente brusca, do motorista.

A dada altura entra um senhor, certamente com mais sessenta anos que eu, com uns sacos - viria das compras (?), e depois de validar, com notória dificuldade, o seu ingresso magnético, senta-se num dos bancos da frente. Reparei que o motorista parou menos tempo do que devia para o senhor se sentar, mas parou e isso já não é mau, porque nem todos têm tanta (!) consideração pela terceira idade, dizem-me... Nem todos os motoristas, nem todas as pessoas de meia idade (meia será a segunda idade?), nem todos os jovens (será a primeira, não?), digo eu... Não é que, à saída, que o senhor efectuou pela porta de entrada - nova gentileza do motorista - lhe cai o boné, bem a meio do corredor do autocarro, e ninguém tem a educação de lho restituir imediatamente?!


O que vale é que, reflexivamente, a queda do boné acordou-me dos meus pensamentos, fez-me regressar da lua e propulsionou-me do meu assento, para lá da porta de saída do autocarro, para a frente, onde o senhor descia as escadas e duas dezenas de pessoas olhavam impávidas, mas deliciadas, o espectáculo do esforço da descida, e algumas, tenho a certeza, a inevitável - se eu não fosse eu e não tivesse feito notar o facto ao motorista e não tivesse entretanto corrido e restituído o dito ao senhor - perda do boné.

Recompensa da sociedade a um gesto, absolutamente automático, de respeito pelos mais velhos, de consideração pelos mais indefesos, nem sei, fiquemo-nos pela educação: oitenta olhos a maldizerem-me, a quererem expulsarem-me dali, um autocarro inteiro a olhar-me como se fosse um E.T. - verde, viscoso, nojento e desprezível... O E.T. que acabou com o espectáculo de circo dentro do autocarro.

segunda-feira, fevereiro 05, 2007

Para agradecer ao Ricardo*



Por ontem, no HSJ.





* Dr. V. - desculpa, esqueço-me sempre de que já és médico, mas não me esquecerei NUNCA de ontem. OBRIGADA.

sexta-feira, fevereiro 02, 2007

Acreditar


Dieu, la vérité, la foi


Peut-on ne pas croire ?


Les rationalistes ont donné l’impression de penser que la religion devrait pouvoir être remplacée par quelque chose qui ne serait plus une religion. On a utilisé pour réfuter cette supposition l’argument du « remplacement obligatoire et plus ou moins automatique », signifiant que ce qui détruit la religion, s’il n’est pas déjà lui-même une religion, est condamné à le devenir. Cet argument peut être invoqué aussi bien par des incroyants que par des hommes religieux, avec cette différence que les seconds ont tendance à l’utiliser, au moins indirectement, en faveur de leur religion, et les premiers plutôt en faveur de l’inévitabilité de la religion en général. Jacques Ellul, qui explique qu’« il faut croire à son groupe, et [que] ceci donne un certain sens et une stabilité à la vie », en a conclu que la religion était indestructible (lire « Une croyance inhérente à l’humain »).


Jacques Bouveresse.

Jacques Bouveresse
Professeur au Collège de France, titulaire de la chaire de philosophie du langage et de la connaissance. Auteur de Peut-on ne pas croire ? Sur la vérité, la croyance et la foi (Agone, Marseille, 2007, 286 pages, 24 euros), dont ce texte est tiré.
Peut-on ne pas croire ? :
Une croyance inhérente à l’humain, par Jacques Ellul