segunda-feira, fevereiro 25, 2008


"Amamos sempre o que amámos."

Pascal Quignard, As sombras errantes

domingo, fevereiro 24, 2008

Da imensa dificuldade de um gesto natural

Lêem-nos isto, cedo, na escola, para praticar, sempre, mesmo que custe. Será que aos miúdos de hoje ainda também? Será que hoje, miúdos e adultos, ainda percebem?

A fita vermelha

Eu tinha começado a ensinar. Era muito nova então. Quase tão nova como as meninas que eu ensinava. E tive um grande desgosto. Se recordar tudo quanto tenho vivido (já há mais de vinte anos que ensino), sei que foi o maior desgosto da minha vida de professora. Vida que muitas alegrias me tem dado. Mais alegrias que tristezas.
Se vos conto este desgosto tão grande, não é para vos entristecer. Mas para vos ajudar a compreender, como só então eu pude compreender, o valor da vida. O amor da vida. O valor de um gesto de amor. O seu preço, que dinheiro algum consegue comprar.
Eu ensinava numa escola velha, escura. Cheia do barulho da rua, dos eléctricos que passavam pelas calhas metálicas. Dos carros que continuamente subiam e desciam a calçada. Até das carroças com os seus pacientes cavalos.
A escola era muito triste. Feia. Mas eu entrava nela, ou digo antes, em cada aula, e todo o sol estava lá dentro. Porque via aqueles rostos, trinta meninas, olhando para mim, esperando que as ensinasse.
O Quê? Português, francês. Hoje sei, acima de Tudo, o amor da vida.
Com toda a minha inexperiência. Com todos os meus erros. Porque um professor tem de aprender todos os dias. Tanto, quase tanto ou até muito mais que os alunos.
Mas, desde o primeiro dia, compreendi que teria nas alunas a maior ajuda. O sol, a claridade que faltava àquela escola de paredes tristes. A música estranha e bela que ia contrastar com os ruídos dos eléctricos, dos automóveis da calçada onde ficava a escola. Até com o bater das patas dos cavalos que passavam de vez cm quando.
Porque, mais que português e francês, havia uma bela matéria a ensinar e a aprender. Foi nessa altura que comecei mesmo a aprender essa tal matéria ou disciplina ou antes, a ter a consciência de que a aprendia.
Eu convivia com jovens (seis turmas de trinta alunas são perto de duzentas) que no princípio de Outubro me eram desconhecidas. Cada uma delas representava a folha de um longo livro que no princípio de Outubro me era desconhecido. Todas eram folhas de um longo livro por mim começado a conhecer. Não há ser humano que seja desconhecido de outro ser humano. Só é precisa a leitura.
Eu tinha agora ali perto de duzentas amigas. Todas aquelas meninas confiando em mim, esperando que as ensinasse; sorrindo, quando eu entrava, assim me ensinavam quanto lhes devia.
Mas um dia. Eu conto como aconteceu o pior. E conto-o hoje, a vós, jovens, que me podem julgar. Julgar-me sabendo este meu erro. E evitarem, assim, um erro semelhante para vós mesmos.
Já era quase Primavera. Na rua não havia árvores nem flores. Só os mesmos carros com o seu peso e a violência da sua velocidade. Gritos de vez em quando. Uma Primavera só no ar adivinhada.
Numa turma uma aluna faltava há dias. Era a Aurora.
Morena, de grandes olhos cheios de doçura. Talvez triste.
A Aurora estava doente. Num hospital da cidade, numa enfermaria. Num imenso hospital.
Olhei o retratinho dela na caderneta.
Retratinho de passe, num sorriso de nevoeiro de uma modesta fotografia. Tão cheia de doçura a Aurora! Doente, do hospital tinha-me mandado saudades.
“Vou vê-la no próximo domingo” anunciei às companheiras.
E tencionava ir vê-la mesmo no próximo domingo.
Mas o próximo domingo foi cheio de sol. Sol do próprio astro, quente, luminoso. Igual e diferente, ao mesmo tempo, do sol-sorriso das meninas.
E eu, a professora, ainda jovem, que gostava do sol, fui passear. Ver mar? Campos verdes? Flores?
Já nem me lembro. E da Aurora me lembraria se a tivesse ido visitar.
Começava a Primavera.
Adiei a visita naquele próximo domingo, para outro dia, para outro próximo domingo.
Hoje sei que o amor dos outros se não adia.
Aurora esperou-me toda a tarde de domingo, na sua cama branca, de ferro.
Tinha posto uma fita vermelha a segurar os cabelos escuros. Esperava-me, esperava a minha visita, cuja promessa as companheiras lhe haviam transmitido.
Veio a família: mãe, pai, irmãos, amigos, as colegas.
- Estou à espera da professora...
No dia seguinte a doença foi mais poderosa que a sua juventude, a sua doçura, a sua esperança.
A cabeça escura, sem a fita vermelha, adormeceu-lhe profundamente na almofada, talvez incómoda, do hospital.
Sabemos todos já, amigos, que há vida e morte. Também isso temos de aprender.
Não fiquem tristes por isso. Vejam como as flores nascem quase transparentes da terra, como as podemos olhar à luz do Sol, e morrem, para de novo nascerem.
Lembrem-se como de um ovo de um pássaro podem sair asas que voem tão alto em dias de Primavera. Morrem, também, e todas as primaveras nascem de novo. E, sobretudo, lembrem-se do coração de cada um de nós, desta força imensa.
E não adiem os vossos gestos. Procurar alguém que sofra, que precise de nós, nem sequer é um gesto generoso, deve ser um gesto natural que se não adia.
Às vezes até precisamos uns dos outros para dizermos que estamos felizes, contentes. Só para isso. Mesmo felizes precisamos dos outros.
Aurora ensinou-me para sempre esta verdade.
As lágrimas que por ela chorei já não lhe deram aquela visita do próximo domingo.
Nem a mim a alegria de a encontrar sorrindo, cheia de doçura, com uma fita vermelha a prender os cabelos escuros. Vermelha de sangue, como a vida. O Sol. Flores vermelhas.
Aurora era o seu nome. E a sua vida uma manhã apenas que, na minha distracção ou egoísmo, não tive tempo de olhar. Uma manhã com uma fita vermelha. Que lágrima nenhuma pode reflectir.

Matilde Rosa Araújo

sábado, fevereiro 23, 2008

quarta-feira, fevereiro 20, 2008

É por termos amigos especiais que somos especiais



O filme do livro The Notebook começa assim: “I am nothing special; of this I’m sure. I am a common man with common thoughts, and I’ve led a common life. There are no monuments dedicated to me and my name will soon be forgotten…”

Não é nenhuma pérola da literatura universal, o Notebook, mas é um livro bonito: um livro de vida, vivida, verídica, não-ficcionada, de um casal americano comum que consegue manter, vida fora, um amor incomum, enfim, um livro que me encanta porque me fala de coisas que me dizem muito.

O meu pai declarou-se à minha mãe com um postal. Um postal de época. Banal. Pequeno. Pequenino demais para tudo o que estava dentro, lá dentro, escrito, sentido, eternizado. Descobri-o no fundo de uma gaveta, na flor da adolescência, quando tudo é sumamente importante e grandioso, total e absoluto. A minha mãe era especial. Aquele era o monumento dedicado à minha mãe. Erigido por Manuel de Nóbrega J. para Maria Teresa T. G., não para a Maria Teresa, não para a Teresa, a Teresinha, a Té, não: para Maria Teresa T. G., a única Maria Teresa T. G. (o J. veio depois). A minha mãe. Devo ter ficado a digeri-lo longamente, palavras nos olhos, postal na mão, porque era adolescente e obviamente nada via de monumental na minha mãe que me chamava há séculos, ao longe, tão longe, que só respondi, e atordoada, quando me surpreendeu a centímetros do meu nariz com uma chamada de atenção uns décibeis acima do normal, que as limpezas de verão não podiam parar e que era sempre a mesma coisa... Depois... depois, reconheceu o envelope, e, nunca mais me esqueço, foi com notório esforço que o sorriso da mãe se sobrepôs ao embaraço da mulher, que estas miúdas mexem e remexem tudo em vez de limpar e arrumar, vá, vá!

Os dias passaram, os anos, a adolescência e o desejo de um monumento assim, postal, canção, poema, também. Ou talvez não, mas ficou tão bem arrumado, dobradinho, numa gaveta qualquer do inconsciente, que, muito mais tarde, quando surgiu de facto, o monumento passou-me ao lado: Joanas há muitas, mas só uma sofre desta espécie de miopia emocional (me).

Por isso é que acho que não me vem à memória quando escrevo, um postal sequer, muito embora só escreva postais a quem gosto muito, muito, muito. Porque a um postal subjaz um rito: a escolha, a compra, a procura das palavras certas, o desfilar de memórias e projectos, a escrita, o beijo final com os olhos, o selar, o envio. Um postal nunca é só um postal. É uma dádiva de um bocadinho de nós, aquele mais especial, aquele que não vai mudar nunca, verba volant, scripta manent*, para alguém que estimamos. (Um psicanalista explicaria bem, estão a pensar, possivelmente, possivelmente.)

Guardo os postais que recebo numa caixa de fotografias. Só postais, nada de fotografias. Sei-lhes a ordem, as imagens, as mensagens, os remetentes... Não são todos monumentos, mas são invariavelmente especiais. O que está mais à mão, o do topo, por exemplo, mandou-mo a Susana, no verão de 2004, de Cuba, com algo como: “Jo, tinhas razão, era mesmo conjuntivite, não estou a aproveitar nada, que lua-de-mel, lua de remel-as! Heeeeeellllllllpppppp!!!!!” E deste lado de cá do mundo, numa ilha perdida no Atlântico, a Jo chorou de tanto rir. Coisas admiráveis acontecem quando se manda um bocadinho de nós, em palavras, dentro de um envelope.

E tudo isto a propósito destes dias de chuva e mimo, muito mimo, numa Lisboa que cada vez mais me cheira a casa, tanto, tanto que não há "obrigado" grande o bastante; tudo isto por causa do postal que vou pedir em troca de uma certa fotografia; tudo isto por causa das gargalhadas e das histórias e do trabalho e do descanso e deste pequeno monumento (imagem) que o meu défice de inteligência social me impediu de ver na hora e agradecer em conformidade. Estas minhas amigas... monumentos erguer-se-ão em honra... proximamente.


*Aforismo latino: "As palavras ditas voam, escritas permanecem."

sexta-feira, fevereiro 15, 2008

A Pedra


Não quero a pedra
quero a flor
dentro dela.

Y. K. Centeno

Caiu-me literalmente no colo, o poema, como a querer saltar da página, esta manhã na Biblioteca.

Acontece tanta coisa naquela biblioteca! Aconteceu-me tanta coisa hoje! Esquecer-me-ia facilmente dele, não o tivesse surpreendido (-me?) há pouco nos Barcos de Flores. Ele há coisas!

terça-feira, fevereiro 05, 2008

Carnaval


Malassadas


Acho que é isto. Cá em casa não somos adeptos de disfarces, nem de fatiotas, nem de cortejos, nem de máscaras, (muito menos de más-caras), nem de caras pintadas, encapuzadas, ocultas.
Não somos de excessos e eu pessoalmente nem de carne sou adepta. Portanto, a carne-não-vale para mim o ano todo. Vale, para todos por cá, o descanso de agora, mais que bem-vindo – necessário –; vale para mim o reencontro de ontem com os amigos, mesmo meio, mesmo limitado no tempo, mesmo confuso na alegria, todavia certo, sempre certo, como o destino que escolhemos.
E o que se tira do Carnaval é isto. O doce. O doce reencontro com os amigos. O doce do dia na companhia da família – (ainda que não toda) – a comer malassadas (melaçadas?!) para além da conta, especialmente agora que estão quentinhas.