segunda-feira, junho 30, 2008

Quem me dera...

Ele tem umas mãos tão pequenas! Que mania esta minha, a de andar a reparar para as mãos (e os dentes) das pessoas. O tempo faz desvanecer a importância que damos a estes pormenores e a exigência de perfeição que colocamos no que a vista alcança, mas os reflexos continuam, eléctricos, rápidos, os meus pelo menos.

Passei a manhã, as pausas da minha manhã, vá, a olhar-lhe para as mãos. E para o cabelo – farta-se de coçar a cabeça quando está aborrecido – como eu, exactamente como eu! (Não tem é, como eu, quem lhe diga que a continuar assim fica careca.) Há alturas em que fica inquieto e levanta-se e vai lá fora – se for necessário um livro lá de baixo, ou simplesmente se forem onze da manhã ou quatro da tarde, horas do café, demora uma eternidade. E quando volta, aborrecido, igual, põe-se a arrumar, com fúria, uma fúria de acordar ou nascer de novo ou viver realmente, a pilha de livros, todos os livros, utilizados e deixados no carrinho – foge à secretária, vazia e sozinha, como o diabo da cruz. Arrumada pilha, (re)compõe os da exposição, em frente, o que uma pessoa não faz para fugir ao tédio e... já era tempo, penso eu.

Depois, quando já não há mais nada para fazer, lá regressa à secretária, senta-se, olha, perdido, o computador, olha a meia dúzia de livros que tem em cima da mesa, faz o que tem a fazer, ocasionalmente abre um ou outro livro, abre, fecha, abre, lê um bocadinho, fecha, abre... A meio da manhã parou num, tê-lo-há lido um bom quarto de hora, com ele assim muito chegadinho ao peito, a olhar sorrateiramente para cima a ver se alguma sombra de gente se encaminhava para ele. Deixou nessa altura o tédio, deixou de coçar a cabeça, deixou o teclado, os livros por arrumar, deixou as mãos, como o olhar e ele próprio, todo ele, deixou-se descansar no livro, naquele livro.

Quem me dera ser livro. – Ainda que por alguns minutos só. Não resisti. a pensar.

sábado, junho 28, 2008

De ontem

O filme tardava em começar, eu sem paciência para a enésima novela, eu sem sono, eu cheia de trabalhos e encontros e horários para cumprir hoje, eu fui dormir. Fui tentar dormir. Rebolei mais de uma hora para um lado, estava calor, e para o outro, muito calor, na cama, no quarto, até por fim me ter decidido a ir para a sala ver o filme, isto uma boa meia hora depois do início, logo do início, aquela parte que eu gosto tanto...

E vi, e aborreci-me nos intervalos, e maldisse a hora tardia que não me permitia ouvir aquela banda sonora, tão sulista, tão minha na minha cadeira de baloiço under the porch a enganar com o icetea os 40 graus de há coisa de dois verões em Houston, e comprovei que de facto sou maluca, sei as falas e as inflexões e os tiques todos de cor e continuo a conservar o meu sotaque sulista, ainda bem, e fiquei a pensar madrugada fora, nas pouco mais de três horas de que dispunha para dormir, nos meus avós.

Os meus avós têm a história de amor mais bonita da família. Suponho que os meus filhos vão pensar o mesmo dos meus pais. Os netos aparecem na vida dos avós, especialmente se mais tardiamente, quando tudo na vida deles já está construído e perfeito e lhes sobra o tempo para os afectos.

Há muitas zonas obscuras na história dos meus avós, factos que ninguém aprofunda, factos que desconheço porque ninguém aprofunda. E eu não percebo porquê. Amo os meus avós como um neto ama um avô: incondicionalmente, de um incondicionalmente mais apaixonado e incondicional que o amor de um filho, que os filhos retiram o apaixonado ao incondicionalmente com que amam os pais. É a lei da vida. Sei.

Os meus avós tinham o mesmo nome. O da minha avó era o feminino do do meu avô, nome de santo, medieval, doutor da Igreja. Ambos os nomes, próprios, tinham forma de diminutivo – o que torna ainda mais admirável este pequeno milagre da coincidência. Na Aparição a determinada altura fala-se de como as pessoas com o mesmo nome se dão, naturalmente, bem – os meus avós são prova disso. Pelo nome, creio, muito mais que pelos signos, em que faço pouca fé, mas enfim, os meus irmãos músicos dizem do alto da sua curiosidade, mais que sabedoria, astrológica que avô Peixes e avó Touro – faz anos um dia antes de mim – são virtualmente perfeitos. Não sei o que é ser perfeito. Para mim perfeito não é ser – a perfeição não existe –, perfeito é estar, e acabado. Os meus avós não eram perfeitos, mas complementavam-se muito bem porque o idealismo do meu avô soube viver – também e incrivelmente – do pragmatismo da minha avó (e vice-versa, suponho). Lembro-me muitas vezes de um episódio que se passou ainda no tempo da minha escola primária, tempo das notas de escudo. Estávamos todos de férias, tornou-se, por alguma razão, necessário um martelo, o meu avô correu a ir comprá-lo, mas acabou por regressar sem ele, por lhe terem pedido dinheiro a mais – contou depois. “Quatrocentos escudos, quatro notas de cem, e temos tantos em casa, na nossa casa, não comprei!” Ao que a minha avó respondeu: “Então agora pegue nas quatro notas e vá fixar os pregos à parede!”

A minha avó tratava sempre o meu avô por “vocemecê” que, dependendo dos contextos, omitia muitas vezes – nessas alturas, implicava-o na pessoa do verbo. Ele tratava-a igualmente. Era um “vocemecê”, “oculto mas presente”, e muito, muito próximo. Um “vocemecê” que me chegou pelo sangue, oculto, mas sempre no verbo, mas sempre próximo, tão próximo quanto se pode estar, e que quase toda a gente confunde com tiques e manias que eu não tenho, ninguém percebe. A minha avó era mais velha que o meu avô dois anos e “entraram para casar”, na Madeira diz-se assim, nas vésperas de o meu avô ir para a tropa, pelo que o noivado não pode ser oficializado, acho que foi essa a razão, se não foi, foram certamente razões de força maior. Em termos práticos o meu avô ia a casa da minha avó aos Domingos e convivia com ela e com a família e tudo, a boa-nova do compromisso é que não vinha cá para fora.

Os tempos de tropa eram árduos mas não se estendiam pela eternidade, pelo que eventualmente o meu avô regressou, formalizou o noivado, arranjou casa e até, simultaneamente, uma série desentendimentos com a família da noiva, não sei por que razão, de novo. O casamento realizou-se na mesma, na data prevista até, mas viu reduzida ao mínimo imaginável a presença de familiares da noiva, que não conseguiu tocar sequer na canja e chorou todo o dia.

E é aqui que me foge o pensamento e não resisto a admirá-la na sua sempre forte, sempre vanguardista, personalidade. A minha avó, bem a meio dos anos trinta, para escândalo de toda a família, vizinhos, amigos e afins, até da minha mãe que fala sempre disto incrivelmente constrangida, casou-se de verde. De verde. Vestido verde, um colar de meio metro de pérolas bege, um chapéu bege com duas rosas brancas e duas vermelhas.

Imagino-a. Vejo-a assim, dentro, muito dentro, muitas vezes. Às vezes por nenhuma razão em especial. Gosto de a imaginar assim. E não lhe consigo descobrir a amargura negra que levaria também vestida nesse dia, porque os meus olhos transbordam da veneração derretida da neta pela coragem, pelo inusitado, pela beleza, pela candura e pela força daquela noiva.

Penso muitas vezes nas horas em que, vida fora, foi posta à prova, nas suas qualidades e nos seus defeitos, mas sobretudo na abnegação e na constância do seu amor. E nunca, que eu saiba, se questionou ou questionou aquela opção dorida de outrora. Penso na emigração do meu avô para o Curaçau, na morte prematura de um filho, no regresso do meu avô doente, na ida da filha mais velha para o convento, na morte súbita de uma outra filha, na doença e na cegueira do meu avô. Penso muito no meu avô e na minha avó, na vida que construíram, no exemplo que nos deixaram. Vejo-os muitas vezes quando vou à Madeira, vejo-os nos seus lugares vazios à mesa, na da cozinha, em que almoçávamos os três milho e bacalhau, com pimenta a rodos o meu e o do meu avô, no meu regresso da escola.

Depois, vou buscar os nossos álbuns de fotografias, que estar em casa dos pais é fazer isso – também –, e olho o meu avô grande, possante, quase truculento, mas de sorriso desarmante, sempre, e à frente dele, pequenina, magrinha, quase curvada, quase encaixada, a minha avó, muito composta, muito discreta, sorriso tímido, desenhado, a adivinhar, apenas, olho-os nas últimas fotografias que temos deles. E, não importa como nem a que preço, penso na admirável complementaridade que dois seres humanos conseguem efectivamente criar e viver.

sexta-feira, junho 27, 2008

Call me a teenager...

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Chamem-me adolescente, chamem o que quiserem. Mas eu acredito. Muito. Muito. Muito.
Estou cansadíssima, amanhã levantar-me-ei impreterivelmente às sete da manhã, mas o serão que começa daqui a nada, promete. Não está ninguém em casa. E ainda bem. Eles reclamam. Muito. Que tenho o livro e o dvd. E obriguei a fazer a cópia não vá o original se estragar de tanto o ver. Eles reclamam. Muito. Que eu já sei as falas todas, de toda a gente, do início ao fim do filme, de cor. Que eu babo para o Ryan como se tivesse quinze anos. Que eu não existo. Que não devo contar nada a ninguém, para manter a (aparência de) sanidade mental. Mas eu não me importo. Não está ninguém em casa. Eu só. E o filme começa num canal qualquer daqui a uma horita. Vou tomar banho, relaxar as pernas e os pés, e fazer pipocas, isso sim é muito importante, o filme, americaníssimo, assim o exige.
Não é uma obra-prima nem da Literatura, nem do Cinema, uma história de amor apenas, uma história de vida apenas - uma história de um amor maior que a vida. Mas eu acredito. Muito. Muito. Muito.
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quinta-feira, junho 19, 2008

O mãe! do actor

Ando para escrever este texto há muito tempo. Já o comecei umas duas vezes – esta é a terceira – sempre no dia seguinte a o ter visto e ouvido, porque a coisa teima em repetir-se – e, sempre, com o mesmo sobressalto interior.

Há actores que trabalham pouco e são conhecidos porque aparecem na televisão. Há actores que trabalham muito e ninguém conhece porque, trabalhando em teatro, não aparecem na televisão. Às vezes acontece a estes actores faltar o juízo ou, mais realistamente, o dinheiro, e assim terem uma participaçãozita numa novela qualquer de um canal de grande audiência. É então que passam a ser mais ou menos conhecidos. Não arrastam multidões para as coisas realmente importantes, interessantes, os seus projectos de sempre, nem passam a ter os teatros cheios; mas é só passar o povo por eles na rua, ou num qualquer corredor de uma repartição pública, ou numa discoteca, que isso basta para que a epifania se dê. (Por experiência própria de quem já recebeu às quatro da manhã uma sms com algo como "Sabes quem está cá, aquele magrinho de quem tu gostas, o (nome da personagem)... da (nome da novela) ..."

Ontem ouvia um actor, muito bom por sinal, o tal avistado entre um puntz-puntz e outro pela minha irmã mais nova numa destas madrugadas, dizer um poema onde abundava a palavra mãe. De cada vez que assisto a um espectáculo dele, há sempre aquela palavra, a dada altura, continuamente, a sair dele para mim. Muito pesada, incrivelmente pesada, muitas vezes, sempre. Aquela palavra, num dos muitos poemas, sempre diferentes, que ele diz. E no entanto, de cada vez que ele diz mãe, di-lo exactamente da mesma forma, vazia, da primeira vez que a ouvi. E não suporto. Fico... descalça. É isso. Descalça. Aquela palavra, pesada de tão vazia, deixa-me sem chão, nem céu, nem nada.

Ontem foi a terceira vez que o ouvi dizê-la e, novamente, não consegui, não consigo nunca, evitar o soco no estômago, a boca seca, as mãos suadas. E não é isso que ele pretende, sei. Duvido até que exista alguém sinta o mesmo. "É tão "vazio" o mãe dele, não é?" – perguntei aos amigos que me acompanharam, fiz mal, acho que de certa forma os choquei com a observação. O actor é mesmo bom. Para todos os efeitos. Isto é uma coisa só minha.

Quantos poemas dedicados à mãe haverá na literatura?

A cada espectáculo a cena é inevitável: mãe! mãe! mãe! mãe! mãe! e logo me cai no colo uma mão cheia de adjectivos que vou recolhendo, medindo e pesando ao longo da noite. (Sempre repetidos, não há outros para aqueles mãe! que se sucedem.) Pesado. Vazio. Vago, sozinho, oco, triste, rasteiro, seco, vazio, vazio, vazio... Porventura exagero.

Mas, mãe é uma palavra importante, realmente importante. E são poucas as palavras realmente importantes. As palavras realmente importantes são aquelas que nos dão segurança. Aquelas, únicas, que têm a admirável capacidade de nos mudar, para melhor, por dentro. Aquelas, poucas, que dizem mais e que se dizem melhor, olhos nos olhos, mãos nas mãos.

A meu ver, três, apenas:

mãe

amo-te

sim.

O meu mãe é cheio, redondo, quente, envolvente, seguro e doce. Exactamente como o colo ou as mãos ou a ternura da minha mãe. Se calhar o mãe do actor era exactamente assim. Sim, terá dito isto tudo, certamente, mas à maneira da mãe dele. Eu é que estava à espera de ver nele a minha.

mãe.

segunda-feira, junho 16, 2008

Coisas do meu lado esquerdo

Estava na terceira classe. Os meus avós mandaram-me à mercearia comprar alguma urgência. Não sei se era Verão, mas estava calor e o regresso às aulas, muito muito, próximo. O mais certo era ser Páscoa... A mercearia ficava perto, por-me-ia lá num instante, ainda para mais a descer, as descer é uma alegria! Descia alegre, dava pequenos pulinhos com cada pé, estava contente! Muito contente... até uma pedrinha, minúscula me ter feito derrapar e ir desfazer a alegria no chão. Não me lembro do resto, do que comprei, se porventura o comprei, de como viria na subida de regresso, de como me receberam em casa.

Lembro-me da água oxigenada que, pela mão da minha mãe, me queimava o lado direito da cara toda e da pústula enorme com que regressei às aulas. Lembro-me de contar os dias para me ver livre dela e da minha mãe me pedir paciência e constância na água morna todas as manhãs e no hidratante, bem lá no sítio, "... que não queremos forçar nada, não vais mexer, está bem, até porque estas coisas podem deixar marcas, sabes?..."

Eu obedecia, marcas era coisa que nem me passava pela cabeça ter na cara. E aquilo foi saindo, aos poucos; um dia uma parte, outro dia outra, no dia seguinte outra, naturalmente. Por fim, quando me preparava para ter a minha cara de volta, após tanto tempo de cuidados, trabalhos e esperanças e medos, pústula já bem longe, uma marca vermelha, enooorme, revelou-se, displicente, ocupando-me a bochecha direita e o meu lado esquerdo todo, e eu que tinha cumprido todas as regras!

Mais tempos infindos de cuidados, trabalhos, e cremes (mais cremes)... e a mancha foi, a par e passo, cedendo à minha determinação. Começou por clarear: passou do vermelho ao rosa escuro, do rosa escuro ao rosa, do rosa ao rosa claro e depois... depois, desapareceu!

Preparava-me já para ficar contente – é verdade que o extermínio ainda levou uns bons dois anos, mas o importante era o agora, só o que temos, só o que há, e agora nunca mais tinha sabido dela... Era Domingo à tarde. Fui dar um passeio. Não sei onde, não sei com quem, e diverti-me, diverti-me muito ao sol, sei, sei porque ao chegar a minha mãe recebe-me com um "oh-afinal-não-desapareceu-afinal-volta-com-o-sol." E eu, bochecha vermelha, lado esquerdo negro, uma vez mais, novamente!

Fechei o sol numa caixa até um dia. Fugi-lhe o resto da infância, a adolescência, a juventude quase toda, quase o esqueci, não tive outra hipótese. E ela, a mancha, nunca mais voltou.

Lembro-me disto porque a minha saga ainda continua: tenho a bochecha esquerda inchada e vermelha, muito semelhante à minha direita após essa queda de há quase vinte anos atrás. E, por muito estúpido que pareça, tenho negro o lado esquerdo. Pela recordação de uma mancha que não queria passar, uma mancha que só o tempo e uma vontade pessoal muito grande, maior que ele, apagou.

segunda-feira, junho 09, 2008

Dentro do nome

A minha mãe diz que é inteligência a mais. O meu pai diz que “tudo o que é demais não presta”, assim mesmo, exactamente assim. A minha irmã T. diz que é a minha tendência para a paranóia, uma palermice, excesso de trabalho mental e falta de outra ocupação. Os outros dois dizem nada, mas torcem o nariz ou riem-se, ou as duas coisas, não acham definitivamente normal. Eu, eu acho que tudo se resume ao meu gosto de sempre pelas palavras.

Ainda há pouco. Aconteceu. Não estava a pensar em nada. Ou melhor, estava: estava a pensar no que havia de almoçar, dadas as contingências dos últimos dias. Suponho que ele também corresse para o almoço. Íamos um em direcção ao outro, ao estacarmos, se calhar um pouquinho antes, tira os óculos de sol e, com o sorriso do costume, que eu já tinha descoberto há uns bons metros, beijinho do costume, “Então menina?” do costume, e eu “Olá Ant... e depois aconteceu. Ant...-ó-n-i-o e estas quatro últimas letrinhas já não eram dele, mas de um outro António. Meu. E eu não queria! Eu queria ter dito “Olá António!”-aquele-António-ali-à-minha-frente, o António do meu primeiro ano do curso, o António que mudou de curso e de vida, o António da M.J., o António dos dois pequeninos, não o outro, nenhum outro. E, por isso, fiquei muito embaraçada, muito aflita e só um pouco menos constrangida quando o “ser hora de almoço” para ambos me aconselhou a, com naturalidade e simpatia, abreviar a conversa. Apartámo-nos, eu de coração apertado, o António, magnânimo, no sorriso de adeus, no à-vontade, em tudo, como sempre.

Será de que cada vez que alguém que me conhece pronuncia o meu nome, dirigindo-se a outrém, se lembra de mim?

Como eu há pouco com o António. Será? Eu a partir de meio da palavrinha que é um nome que é meu, também, por opção ponderada dos meus pais. Será? Eu, a minha cara no a, o meu sorriso no n, a minha covinha na bochecha no último a. Será?

Será de que cada vez que alguém que me conhece pronuncia o meu nome, dirigindo-se a outrém, se lembra de mim?

Quero deixar a Linguística fora disto. A Linguística recorreria à homonímia para resolver a questão da multireferencialidade. E a homonímia é um cesto muito grande por de onde, líquido, o meu nome depressa escorreria para o nada que é a terra batida da multiferencialidade. Não quero falar de multireferencialidade. Um nome, ziliões de pessoas. (Não há nome mais multireferencial que Joana!) Assim de repente conheço mais de uma dezena. Costumo dizer “Joanas há muitas de todos os tamanhos, feitios e cores, se se procurar bem até às pintinhas amarelas...” E as pessoas sorriem, mas eu... nem sempre.

Será de que cada vez que alguém que me conhece pronuncia o meu nome, dirigindo-se a outrém, se lembra de mim?

Não quero. Não quero nunca o meu nome rasgado a meio. Não quero o meu nome ensombrando gestos, assombrando vidas, desenhando distâncias. Não quero o meu nome na cabeça e na boca de uma cara diante outra cara, outro sorriso, outra covinha de bochecha. Não quero o meu nome acelerando gestos, apressando vidas, comprando distâncias. Não quero. Tremer. Temer. Palavras que digo e ouço. Não quero. Pesar. Medir. Ponderar. As letras que compõem o meu nome.

sábado, junho 07, 2008

Coisas estranhas

Uma torre de um solar de Braga selada a plástico, negro. Uma ogiva que eu sempre vi janela e é porta. A minha boca toda pisada. E a música que me atrasa a saída do café.

Todos os dias de manhã enquanto espero pelas nove ou nove e meia, para entrar na Biblioteca, o meu olhar perde-se, muito direito, muito fixo, em frente. Na torre do solar em frente. É a torre do solar, ameias da torre a fazerem pendant com as ameias da muralha em redor, parece uma torre de castelo, muito austera, muito misteriosa, muito medieval. Já passei naquele solar um fim de semana muito bonito. Num retiro de silêncio no quarto ou quinto ano do curso. Mas não me lembro daquela janela, e da torre, apenas vagamente. Na realidade, o que fixei na memória da arquitectura do solar foi uns bancos em pedra, já nem lembro a designação correcta, pequeninos, para uma pessoa só, um em frente ao outro, com uma janela de permeio, “... que eram usados pelos enamorados da Idade Média.” – explicava a madre superiora no nosso périplo pelas imediações, discurso cuidadosamente estudado. Retive aquela observação, junto com a imagem deles que ainda conservo dentro, por meio e por causa de um sentimento... pouco beatífico. Achei um desperdício, seis bancos tão bonitos, frios, desconfortáveis, mas bonitos, três janelas por onde entrava uma cidade e uma luz ainda mais bonita, ali, inutilizados, inúteis, resguardados do tempo e do mundo, tristes, muito sós, um pouco como algumas das freirinhas.

Mas voltando à janela. Todos os dias olho aquela janela selada de plástico preto. E todos os dias aquilo me incomoda. Não apenas pela evidente falta de meios que as irmãs têm para manter aquelas instalações, mas pela simbologia que me grita aquele negro de morte, aquele plástico de saco de lixo, toda a luz que aquele interior não vê, todo o calor que não sente. E só paro quando o sino bate a hora, em dias bons; em dias maus, quando os olhares desconfiados, algo temerosos, das outras pessoas me trazem de novo à rotina do quotidiano, é hora de entrar.

Desconfio que é por causa do calor, que finalmente chegou, e que não se sabe se fica por muito tempo, aposto que é para aproveitar o sol, que a janela está aberta, hoje. E, nem queria acreditar, não é janela, é porta. Sobressaltou-me, duplamente, a surpresa. É uma porta, em forma de ogiva, com armação, da parte de dentro, em madeira, eximiamente forrada a plástico preto. Dá acesso à torre por meio de meia dúzia de degraus da mesma pedra, da cor dos séculos, forte, medieval, de todo o solar. E hoje está aberta. E nem sei bem o que pensar disso. Acho que preciso de mais tempo com ela, aberta, nos olhos e dentro, para lhe perceber a nova simbologia.

Ando com as simbologias na ponta da língua e dos dedos. Ando com as simbologias a pulsar-me na cabeça e no coração. Ando a trabalhar de menos e a pensar de mais, deu-me para a metafísica, pronto. Isto porque tive uma série de problemas de saúde minor que pelo timing e incrível sucessividade se tornaram major, pelo menos para mim e para a minha natural, i.e. sempre dramática, abordagem da doença, qualquer que ela seja, da dor de cabeça mais banal à mais grave pneumonia. Pelo meio, ainda tive problemas com o dente do siso – ando a perdê-lo, ao siso, de facto, não sabia é que ia lá para perder parte desse dente e outro, inteirinho! – o que me obrigou, mesmo, que eu tenho horror a batas brancas, a ir ao dentista, muito profissional, muito competente, muito tudo, excelente, velha guarda, como eu gosto! - e sair de lá com um antibiótico – primeira toma, dose de cavalo – e um analgésico – por si só cavalar – e a boca toda pisada. Como é que eu explico que está tão pisada que não consigo rir, e às vezes apetece-me muito, porque repuxaria não sei o quê que dói? Como posso explicar que não estou a articular certas palavras como deve ser, porque, pelas mesmas razões, não me posso dar ao luxo de a abrir muito? Como explico que ontem queria cumprimentar uma pessoa, piscando o olho, e a réplica que obtive foi tão pouco usual, tão doce, tão generosa, quase altruísta, que, sei, a coisa não saiu com o desprendimento maquinal do costume. E é assim que de há dois dias para cá passo o dia a líquidos, o que é óptimo para a linha, mas não tanto para o meu epicurismo (na Feira do Livro do Porto caiu-me ao colo um horóscopo chinês que, entre muita coisa peculiar e divertida, me classifica como “epicurista”, eu preferia ser “estóica”, mas se “epicurista” é o que sou, seja!) E é assim que agora só um Compal de Ananás, fresco, me acorda de manhã. Hoje, estava mesmo à beira do fim quando começou a dar Plain White T’s na MTV do café. Hey there Delilah é uma balada adolescente, hiper-americana eu sei, mas gosto, acho curioso que passa sempre, na rádio ou na televisão, quando tenho pensamentos mais negativos do que desejaria e por isso, por tudo o que trouxe dos EUA, e porque, felizmente, ainda não perdi a adolescência, tenho-lhe carinho. Enguli o resto e fiquei a olhar a televisão, com ar de parvinha certamente, durante os mais de três minutos que faltava para o fim. Acabou, levantei-me, agradeci e fui-me embora, levando comigo os olhos da senhora do café. Iguaizinhos aos das pessoas que me acordam, antes dos sinos, da interpretação semiótica do negrume daquela janela-porta do solar. Há muita gente a pensar que eu sou esquisita. Eu própria considero-me muito estranha.

terça-feira, junho 03, 2008

Sem palavras

Um dia chego ao pé dele e antes que me bata com aquele olhar seco, de todos os dias a qualquer hora, que me prende no coração o sorriso, e as palavras, e as piadas, e todas as coisas que se impõem e que eu queria, muito, muito, dizer; antes que me sufoque, bem a meio da garganta, seca, mas não tanto como o olhar dele, aquelas palavrinhas pequeninas, muito pequeninas, de boa educação e circunstância, que se estavam a dirigir para a ponta da língua, a passos certos, seguros e automáticos, como o fazem para toda a gente, um dia..., digo-lhe antes disso tudo e de tudo o mais: “Posso por a nossa interacção social diária em texto?”

A pergunta é quase retórica, não porque não admita resposta, mas porque nunca ma deu, dá, dará, daria... além do que tenho que a fazer, por todas as razões que a ética consigna. A tríade “interacção-social-diária” é para não o assustar, que “relação” é uma palavra muito forte, dose recomendada 0,1 – 5 mg/kg de peso do passado pessoal. Além do que, formulando-a nestes termos exactamente, sempre confiro objectividade à minha resolução - arrisco a dizer que lhe descubro até uma certa cientificidade, a qual, transformando a pergunta em questão, a resolução em investigação, a curiosidade em sociologia, dará certamente alguma segurança à minha amostra. Quanto ao texto, surgirá porque assim tem de ser: tendemos sempre a tornar conhecido o que achamos extraordinário.

Ainda não decidi por que género optaria, mas assim à primeira, sem pensar muito, cinema: escreveria um guião para um filme. Mudo. Naturalmente. A minha amostra não fala. No início, bem no início, ainda grunhia. Atirava uns sons do tipo hum, muito aspirado, excessivamente aspirado, quando lhe dava os “bons dias” e pedia o que queria; , muito nasal, excessivamente nasal, sem aspiração, se porventura não percebia (à primeira) o que lhe pedira, e depois, no fim, hum, novamente aspiradíssimo e em réplica ao meu “muito obrigada”. Agora nem isso. Não fala, nada, nunca. E impede-me, sempre, não sei se pela fluidez avassaladora do seu discurso, se pela cortesia evidente, se pela invejável boa disposição, não sei, ainda não percebi como, mas é certo: impede-me de o fazer, também, agora.

Como é que se escreve um guião para um filme sem falas?

Se calhar, esqueço o filme e escrevo uma peça de teatro. Finto o escolho da técnica através do Monólogo interior, aliás, dos monólogos interiores. Dois. O dele e o meu. Bem, dois monólogos interiores que equivalem a um Diálogo, interior, a coisa presta-se a isso, efectivamente.

Será que já existe em Teatro algo como um Diálogo interior?

Na volta, não, se assim for, cunho esta nova modalidade. Cenas não faltam, passamos a vida a fazer cenas. Alegres e tristes, mais as tristes que as alegres, que este nosso mundinho paralelo, esta twilight zone pessoal, é de coisas tristes que se compõe, ou, pelo menos, de coisas que não vêem a luz do dia, e tudo o que não vê luz, nem sente calor é estéril e triste, creio... Arranjem-se finalmente dois actores com palavras a abarrotar dos olhos, das mãos, dos passos, dos gestos; um que seja lesto no fugir, como areia na ampulheta, e perceba de grilhões que prendem palavras, outro que seja inábil e não as saiba libertar.

Sempre achei mau o silêncio, não lhe tinha medo, mas achava que se perdia muito com ele. E eu tinha a mania que tinha e não me agradava perder o que tinha. Na realidade, o que tinha era medo. Dos enganos, das confusões, das ilusões, da dor e de tudo o mais para que o silêncio por vezes abre caminho. E por isso, concluo agora, insistia, teimava em explicar, sempre, tudo. Era muito aborrecida, admito. Não gostava do silêncio, dizia, até me terem falado um dia de “silêncios bons”, que os há também, soube-o muito depois.

Este nosso silêncio não é bom. Sinto-o todos os dias, vejo-o no desfecho da peça. Não vou explicar, não tenho por que o fazer, não há de todo explicação para o que se gosta, para o que se não gosta, e muito menos para o que se sente. De resto, perdi há muito essa necessidade (de explicar), foi-se com tudo o mais que achava que tinha, e quero terminar este post começando um silêncio bom.

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