terça-feira, maio 26, 2009

Come and rest your bones with me

Está um dia maravilhoso lá fora. Lá em baixo no lago, dez metros abaixo de mim e à minha esquerda, um passarinho repousa sobre um dos dois focos da lagoa e beberrica um bocadinho água. Umas quantas gotas do resto, do que o sol dos dias tem andado a sorver – por completo não tarda nada... Parece que me descobriu, acaba de o fazer e, olhos nos olhos, não gosta do que lhe sou, não quer em absoluto que lhe roube a alma que me cabe na mão e nestas linhas. Nenhuma alma é roubada pela palavra escrita., sorrio, continuo para o sossegar:, nenhuma alma, nenhum coração, nenhum olhar, coisa nenhuma de facto. Só transgride, a palavra dita. Só transgride, trespassa, tresjura, tresvaria, realmente, a palavra dita. Olha-me, meio, todo, sério-sério, e... não quer saber, volta-me as costas. Patinha, passeia-se, distrai-se, distrai-me ao percorrer os bordos da lagoa, ao ritmo claro e quente do sol. Desafia-me: Voa para longe.

Se eu não fosse eu, fazia igual. Ia lá abaixo e ficava a olhar cá para cima enquanto aproveitava o calor e o brilho do dia. Deitava-me de pernas trocadas, na berma da lagoa, a olhar para esta janela, para o céu, para cima. Cruzava os braços atrás da cabeça, recostava-me, esticava-me, deixava o peso destes dias cá em cima, ao lado dos afazeres e dos deveres, descansava. Não me preocupava com a ponta do vestido a descair, a pender, sob a água, nem com o senhor que acaba de tirar os óculos para esfregar os olhos, nem com o rapaz que almoça, nem com a rapariga que lê no vidro da janela da frente as histórias que o livro que esqueceu no colo recorda. Se eu não fosse eu, tinha vestido hoje um vestido que se misturasse, com sede e em sossego, com a água - como um nenúfar!. Se eu não fosse eu, tinha posto uma flor no cabelo, com esmero e romantismo - como quem põe um chapéu!, e tinha voado para longe ali em baixo. Está um dia maravilhoso...

sábado, maio 23, 2009

A(vant)prés - ROMAIN DURIS & JOANNA PREISS e ANA SALOMÉ ao Sábado



um dia eu gostava de pensar que partiste para evitares ver a minha morte um dia eu gostava de pensar que és capaz de amar tanto. queria conseguir dizer. mas estou cansada de dizer coisas bonitas, acho, de verdade, que elas estão só comprometidas com os afectos de quem fica. e ficar, quando se vê partir, é ter o lugar desabrigado na estação. é ficar incomunicável com quem parte e com uma distância desajustada ao corpo que era próximo e que vai ficando cada vez mais pequeno ao longe, tão pequeno que se torna um infinitesimal ponto na linha de visão. e é a esse ponto que se acena, como um palhaço velho no circo, que limpa triste a máscara de tintas ao espelho e sabe que não há muito por onde sorrir. como um palhaço que perde a deixa e sabe que não cativa, mas mesmo assim continua a pedir que a banda toque. o amor eterno solta as últimas notas, preso à saliva de um trompetista mal pago, ao suor de um baterista com fome e ao melancólico suspiro do domador de leões a escutar a um canto. o amor eterno, garatuja, fífia, nota ao lado, o rosto do amado recolhido como tenda depois de fim-de-semana, decalcado na terra, disposto ao último acto. o vento. e mais nada. nem uma palavra tua que realmente me diga alguma coisa de verdade. que brilhe. demos um salto sem trampolim, para a queda.

quinta-feira, maio 21, 2009

Voltei!


O G-talk do G-mail depois de cair e tentar, às vezes muito esforçadamente e muitas vezes, re-conectar-se, o G-talk, quando regressa, grita por escrito: Voltamos! Um pouco como o Chat do Facebook: volta e meia, sempre que se faz Log in, parece-me, ou então simplesmente quando e porque lhe apetece – o Chat do Facebook nunca cai!... – eis que um WE’RE BACK!, em letras capitais, é proclamado por um smiley amarelo de sorriso largo, redondo, cheio de dentes brancos à mostra.

Voltei!, I’M BACK!, e, se procurarem bem, ainda encontram ali para cima alguma amarelice de smiley no meu quase sorriso fotográfico.

É bom voltar. É bom voltar aos lugares e às pessoas de que fazemos parte, aqueles que também já fazem parte de nós, mesmo quando não se pensa nisso, não se quer pensar, mesmo quando não nos damos conta, fingimos não dar, mesmo quando refilamos e achamos que patetice!, nada a ver!, essa agora!. Dizem-nos quem somos, os lugares e as pessoas de que fazemos parte, os tais que fazem parte de nós.

Há mais de dois anos que apanho o metro antes das sete no Marquês. Há mais de dois anos que o apanham comigo dois senhores: um da minha idade, de crista cor de laranja oxigenado – é possível, acreditem!, que me mira com detalhe – para acordar certamente..., outro um pouco mais velho, sempre encostado a parede, sempre a ler O Jogo quando eu chego, sempre a entrar logo a seguir a mim, sempre a sentar no banco da frente. Quando saio em São Bento há uma senhora brasileira, percebi há pouco numa conversa de telemóvel furtiva, que sai de uma das carruagens da frente e prossegue para a estação esperar o mesmo comboio que eu, embora não saiba exactamente onde, eclipsa-se!, mas segue para Braga, como eu, como o informático, como a senhora bonita dos olhos grandes e tristes..., às sete e meia. Em Campanhã, ou Ermesinde, ainda não percebi porquê a variação, entram os três senhores de meia-idade para quem a minha coabitação com o informático faz(ia) alguma espécie. Em Ermesinde também entra um senhor que rivaliza comigo nas boas leituras. Entra, senta-se, sempre perto, mas nunca comigo; entra, olha o livro que estou a ler, abre o dele e começa também. Às vezes, quando me cansou uma ou outra leitura noite dentro, troco os livros pelos phones, ao entrar e dar-se de conta, trata logo de por os dele a acompanhar a leitura solitária; ah, nos intervalos frequentíssimos que se impõe, em quinze minutos de viagem, olha janela fora para onde eu olho. Quando esse senhor sai, em Famalicão, entram os miúdos do costume e o João, com todos as palavras nos olhos, todos os gestos, todos os sonhos, toda a ternura do mundo. Tudo o que é suficiente quando se tem dezasseis, dezassete anos. A chegada a Braga, mesmo quando o comboio chega a tempo e tudo e tudo, é sempre uma e a mesma luta: toda a gente grande ao molho para ver quem sai primeiro do lugar e mais depressa do comboio. É a luta grande. A luta pequena é a do João. A luta pequena é a do João a tentar persuadir, o mais discretamente possível, todo um grupo de amigos a entrar na luta grande. A luta pequena é a de todos os dias do João por uma brisa leve e doce da minha pressa. Aquela que exala o cheirinho do meu pescoço, do meu ombro, no passo apressado da saída. Normalmente é Nina da Nina Ricci ou Perfume de Baunilha do Bodyshop, dependendo do dia, da disposição, enfim. A luta pequena é a de todos os dias do João de só se levantarem os amigos, quando ele se levanta – que é quando eu me levanto, de só sairem, todos, quando ele sai – que é, curiosamente, quando eu saio. Os miúdos ficam para trás enquanto o autocarro escolar não chega, eu continuo, a pressa também, na subida até ao pequeno-almoço. Às vezes dois pares de pernas da minha altura me ultrapassam, das outras vezes os dois executivos distraem-se na conversa e o passo abranda esquecido. Há um que costuma sentar-se comigo no regresso – é o mais alto e mais novo, o que sorri ao meu sorriso quando migro do roxo de segunda-feira, do rosa de terça, do amarelo de quarta,..., da gravata para os botões de punho redondos, tudo do mesmo padrão, e tecido, sempre. Quando por fim me sento para o pequeno-almoço do costume no sítio do costume, depois de dar os bons-dias à diligência imbatível do senhor do café, acaba-se o sleeping mode. Biblioteca. Faculdade. Biblioteca. Mais um dia que começa, aproveitá-lo, aproveitá-lo, aproveitá-lo.

Voltei! Que nunca me faltem pessoas assim, certas, nesta outra viagem maior.

sexta-feira, maio 15, 2009

Termitidae


Estou indecisa sobre qual o mais potencialmente destruidor: o caruncho ou a formiga branca? O caruncho é bem mais conhecido, pelo menos aqui no norte, por bicho-da-madeira. Acarinho todo o caruncho, tive por um princípe assim designado uma paixoneta que teria sido de caixão-à-cova não fosse o que foi, e guardo boas recordações do bicho-da-madeira, o meu nome de praxe, pelas razões mais óbvias.

O meu avô é que costumava falar muito no caruncho e na formiga branca, especialmente por alturas do Natal ou do fim-do-ano, ou ainda quando vinha uma visita importante que recebíamos na casinha de prazeres – uma espécie de jardim de inverno madeirense... Havia lá dentro, à esquerda de quem entra – lembro-me bem –, um aparador de que a minha avó gostava particularmente, herdado não sei de quem, comprado com sacrifício pelo mesmo e mantido com um carinho e um fervor quase religiosos, um aparador velho, todo ele buraquinhos, caruncho... E a cada entrada, de cada vez, o meu avô, temos que o deitar fora porque num instante passa para o soalho e, bem, pelo menos não é formiga branca, é que a formiga branca dá cabo de uma casa.

A formiga branca dá cabo de uma casa. A formiga branca mais não é que a designação genérica das térmitas. Térmitas parece-me um nome terrível, cheira-me a peste, soa-me a recolher obrigatório em abrigo subterrâneo, devorador, apocalíptico, é a face do mais completo terror, de toda a destruição e muito medo. Se calhar não é mais destruidora que o bicho-da-madeira, mas impõe-se: ter-mi-ti-dae, tenha meeeedo.

É que a formiga branca dá cabo de uma casa. Algumas palavras também. Ditas, às vezes mais ou menos ao acaso, às vezes deliberadamente, o que é que tu vês nele?, ouvem-se, e são como a formiga branca: dão cabo de uma casa. Às vezes, ainda bem.

Mas nem era bem nisso que estava a pensar. Era mais no oposto. Na realidade, estava a pensar em como nunca digo, em como, sei demasiado bem porquê, tenho o hábito, execrável, de guardar térmitas no bolso. Enquanto tiro o sorriso número quatrocentos e quarenta e três cá para fora. Enquanto faço silêncio e olho para os sapatos. Enquanto recupero o quatrocentos e quarenta e três e falo do tempo, do défice, de pais e de filhos que conheço, de livros e daquela viagem. E as térmitas vão subindo, bolsos acima, coração de pau adentro.

quarta-feira, maio 13, 2009

Antes de morrer, tudo se transforma

Nunca pedir um minuto a um amigo. Um minuto nunca é um minuto, nunca, jamais, e então se for descontado ao tempo de um amigo... Bem, a Sílvia entreteve-se com o telemóvel no minuto que foi mais de uma dúzia deles ante a perspectiva de uma incrível sessão fotográfica à Joana-trabalhadora-em-frente-ao-pc-ao-fim-do-dia. A Sílvia veio para o lar numa altura em que, para o não fecharem, as Irmãs abriram-no a não-universitárias. Lembro-me bem da mudança de placa: onde antes se lia ‘Lar Universitário’ fixava-se agora ‘Lar de Estudantes’, lembro-me que ia para as aulas da tarde, e que ao sair, Menina, não feche o portão!, não consegui deixar de migrar da placa antiga, caída no degrau, para a outra lá em cima, e de pensar em como, antes de morrer, tudo se transforma.

Só mais um bocadinho Sílvia, está bem?, tenho ainda de responder a uns mails, mas... cuidado!, sai daí debaixo, miúda!, este gabinete não é só meu, sabes?, por acaso a esta hora não está cá ninguém, mas... Verdadeira lufada de ar fresco naquele fim de Verão, a Sílvia preenchia o silêncio às refeições, sobrepunha-se aos ecos nos corredores, enchia aquela casa tão vazia de uma alegria nova. Falava muito e alto, comia muito e bem, asneirava com graça, fartavamo-nos de rir..., não sei se do sotaque, se da preponderância do calão, se da inclinação para feiosos e historietas do arco-da-velha... Ainda te magoas, rapariga!, Oh esquece isso, quero apanhar-te o sapatinho, fazem-te mais velha, mas são giros... O sapatinho?!, oh, não sejas, palerminha! Vinha para o nono ano, por coincidência o mesmo ano de uma das minhas turmas de estágio, trata-se mais de uma espécie de apoio, entendes, Joana? Entendi e em três tempos rendi-me. Ficámos amigas. Mas foi duro.

Joana, é a Mariana, a Sílvia não quer tomar banho. A Sílvia, o quê? Diz que está muito frio, que os balneários ficam longe, que não vai agora até lá abaixo ao fundo do corredor porque a primeira aula da manhã é Física e assim toma lá na Escola. Ok, já falo com ela. Joana, é a Mariana, a Sílvia não quer ir às aulas. A Sílvia, o quê? Diz que tem dores de barriga, que vai vomitar, que amanhã pede à stôra para fazer o teste, que não tem condições. Ok, já falo com ela. Joana, é a Mariana, olá. Olá, por aqui? Precisava de falar contigo. Muito bem, entra. Está tudo bem? Os testes? A Sílvia tem colaborado mais na limpeza do quarto? Sim, não é isso. Então?... É que, ela..., ela..., a Sílvia, ... a Sílvia só tem dois soutiens. O quê?

Há uma altura da vida em que a velocidade de crescimento dos filhos ultrapassa a velocidade de percepção dos pais, tenho a certeza. Normalmente coincide com pontos de viragem profissional, a chamada progressão na carreira, parece-me. A miúda estava no liceu, tinha uns pais informados, muito colaborativos, ia a casa todos os fins de semana, e no entanto... Então Sílvia, eu estava aqui a pensar..., tu e a Mariana não têm aulas agora e eu tenho de ir às compras, querem vir comigo? Mentirosa e gastadora. Era uma rapariga muito mentirosa e gastadora naquela altura, coisas que - agora que penso nisso - nunca mudam...

O tempo correu, passou pela miúda, por mim que me mudei para o Porto... O tempo continuou a correr, ela foi para a Faculdade, eu para os EUA. Foi no outro lado do mundo que soube do namorado, de tudo o mais que o Amor lhe trouxe e de que, quando for, serei madrinha. Seja. Encontramo-nos mais quando ela tem trabalhos para corrigir, Sílvia, já te disse o quanto progrediste desde que te conheci naquele Verão?, cresceste muito, sabes?, amadureceste, e no entanto continuas ... igual!, tenho muito orgulho em ti, Eu sei..., Sabes?!, Então agora corta isto, passa este parágrafo para a conclusão, mau, mau... hoje estás esquisita, inquieta, passa-se alguma coisa? Oh, só isso?, quando for, tenho muito gosto em vo-las oferecer, escolhes tu, as que quiseres, ok?, Agora explica isto melhor, não se percebe muito bem, olha aqui, isto não faz sentido, ora lê, esqueceste-te de qualquer coisa, de certeza...

Joana, viste?, aquela rapariga ali está apaixonada! Está?, não vi... Então, olha para trás, vês como tecla com um sorriso do tamanho desta Biblioteca? Vejo, sorrio, Sim, Sílvia, realmente tens razão. Que bom!, não é? Sim, Sílvia, que bom!, mas olha que tu também não tens muito de que te queixes, vá..., trabalhamos?, Sim.

Vinte segundos depois... Joana? Diz. Lembras-te daquela noviça gira que ia à missa lá ao lar, a que era psicóloga e decidiu ser freira por causa de um desgosto de amor? Não, por acaso não. Não te lembras? Não, não me lembro, nem da noviça, nem dessa história, agora trabalha, vá... E daí, espera um minuto: Achas-me com cara de noviça, Sílvia?


terça-feira, maio 12, 2009

Tuesday's grey and Wednesday too



mas Sexta não, Sexta não...
especialmente quando Sexta é sempre que nos damos ao desfrute de testar a resistência da cama, aos pulos - como deve ser!... -, ao som disto. Luxos...

sábado, maio 09, 2009

Silêncio - ARVO PÄRT e ANDRÉS ELOY BLANCO ao Sábado



Quando tu ficares muda
e eu ficar cego,
vão-nos restar as mãos
e o silêncio.

Quando tu envelheceres,
e eu envelhecer,
hão-de ficar-nos os lábios
e o silêncio.

Quando tu morreres,
e eu também morrer,
têm de enterrar-nos juntos
e em silêncio;

e quando tu ressuscitares,
quando eu tornar a viver,
voltaremos a amar-nos
em silêncio;

e quando tudo acabar
para sempre no universo,
há-de ser um silêncio de amor
o silêncio.


Andrés Eloy Blanco

quarta-feira, maio 06, 2009

As pessoas fazem os lugares


O soninho do mais justo 'lavadeiro de pratos' do universo.

Costumo ir para a Biblioteca de manhã, quase sempre passo lá o dia, muitos dias – quase todos..., mas é de manhã, cedo, que me dirijo para o trabalho porque o dia começa, tal como a minha vontade de todos os dias fazer o meu com um sorriso maior, é quando sou mais produtiva. Os americanos dizem que sou uma morning bird.

A Ana Catarina, coisa de génios e outros seres extraordinários, seria uma night owl ali para os lados do tio Sam. Encontramo-nos sempre quando o meu rendimento começa a descer vertiginosamente, seja por me ter subido a digestão, às vezes o sono, à cabeça, seja porque na parte da tarde a Biblioteca é sempre mais ruidosa, do movimento, dos adolescentes, dos exames que estão aí à porta, do sol que faz lá fora sempre, dos amigos que riem demasiado e alto, mais, muito mais, que da parte da manhã. Encontramo-nos sempre porque ela vem lá acima, ao meu cantinho de mesa inteira encostada a uma quarta parte da janela mais solarenga, dar-me um beijinho. Não imaginas o que é vir cá acima e ver este teu cantinho sem ti... Oh, então Ana... E quando está cá outra pessoa?!, tãaaaaaaao estranho!... Só sabe ser assim: maravilhosa, e desarmante, absolutamente desarmante, a minha querida Ana Catarina.


No entanto, gostava de pensar que aos olhos dos outros, alguns outros, pertenço assim, desta forma simples mas inequívoca, a todos os lugares onde vivi. Gostava que as pessoas com quem o meu caminho se cruzou em França, nos EUA, na Bélgica, me sentissem a falta como a Ana Catarina nos dias em que opto por ir trabalhar para o gabinete na Faculdade ou naqueles em que pura e simplesmente me deixo ficar por casa, e trabalho nesta secretária tão grande, a um braço de distância de todas as fotografias, de todos os amigos, de todos os países, do tempo em mim.


Um dia escrevi Braga é uma velhinha que pede esmola debaixo de um arco ao fim da tarde. Encontro-a muitas vezes, sei exactamente a que horas, sei qual o arco, sei que se passar por lá, ao fim do dia, ela vai estar, está sempre, mão pronta, discurso estendido, ali. Às vezes evito ir por ali, às vezes, quando não é perto demais, tarde demais. Ela, eu, nós... fazemos a cidade, as pessoas fazem os lugares, para o bem e para o mal, as pessoas fazem os lugares muito mais do que o contrário.

Paris sou eu e a Claire às voltas com os nocturnos de Chopin no piano do foyer. Paris sou eu e o espanto que não consegui disfarçar quando descobri que a Yseult só comia feijão verde ao almoço e ao jantar. Paris sou eu e as aulas de Langue d’Oc regadas a chá em frente à Sorbonne. Paris sou eu a ler a biografia do Rousseau no autocarro.

Leuven sou eu e a Fatumeh a falarmos de religião com cuidado para não estragar as papoilas e as espigas de trigo que apanhámos antes do autocarro. Leuven sou eu e o Bert, demasiada festa, e os meus bocejos e as minhas olheiras, o meu cansaço e a chacota dele, na primeira aula da manhã. Leuven sou eu a jogar futebol com quatro anos de gente, o filho do Bert, antes de lhe ouvir a mais completa prelecção sobre a arte de lavar as mãos.

Houston sou eu quando chego ao gabinete e, primeira coisa da manhã:os bons-dias num bilhetinho em cima da secretária. Houston é o colo do Dan e a maneira como se ajoelha para rezar aos Domingos na missa. Houston é a quarta-feira à noite, student discount night, no Mission Burritos, o melhor jantar da semana; Houston é o Pascal, que nos lavava sempre a loiça após os grandes almoços de Domingo, Houston é o Pascal, podre de bêbado na minha festa de despedida, a explicar: Jo, you have to draw the line farther, I was like that too, but you know, sometimes in life you just have to. Houston é a sexta–feira em que os gents da Física só vêm à Friday Movie night do nosso Departamento se as ladies, nós, formos à Pi(e)-Day party deles e... aquela flor no meu cabelo.


Acabo de ouvir péssimas notícias acerca da progressão da gripe aviária no Texas. Há algo dentro que reage quando estas coisas acontecem aos lugares que foram nossos.
Houston is Jo when she comes in, just-to-say-bye-to-you-guys, carrying this huge plate of rice pudding she calls ‘sweet rice’ with the same old smile and starts hugging everybody, so what happens if I don't let you go, darn!, Jo, would you mind?, we’re trying not to cry here: stop smiling! Há algo nosso, muito nosso, muito vivo, de sangue, veias, coração a bater, nos lugares que a vida permitiu que fossem nossos, no matter how you draw the line.