segunda-feira, junho 29, 2009

sexta-feira, junho 26, 2009

MY WAY

Ela disse-me para fazer, que eu tinha que fazer, que ela precisava de saber se era assim com toda a gente, porque realmente se for assim com toda a gente, e isso chegou, eu assenti, às vezes precisamos mesmo de saber se é assim com toda a gente, faço mas não publico, envio-te por mail, que isto dos bruxedos tem muito que se lhe diga, especialmente para mim que acredito piamente nas bruxas que se empoleiram em vassouras para voar dentro das nossas cabeças. (Um terreno bem mais fértil e obscuro que o menu do ipod.)

Nunca na vida, nos quase três anos de vida conjunta desta menina com seu ipod, nunca, nessa nossa curta vida, ouvi música aleatoriamente, nunca o pus no shuffle, não sou disso, sou a miúda que pensa demasiado, que pensa antes de fazer, que pensa em fazer, que pensa ao fazer, que pensa, sou a miúda das playlists, a miúda que ouve over and over and over again aquela sequência, ou aquela, ou ainda aquela, porque chove ou porque está sol e faz calor, porque acordei assim e queria muito não ter, porque o dia promete, porque o dia não promete, há mil e uma razões para ouvir o que oiço cada dia, nos dias que oiço, sabendo exactamente o que vem a seguir, tão bom!, sem ansiedades e sem pressas, simplesmente porque quando as elaborei, às playlists, fi-lo com cuidado e com carinho, com tempo e a pensar justamente ‘porque sim, então!, faz todo o sentido’ e nas razões que um ‘porque sim’ pode conter – às vezes, muitas vezes, para mim pelo menos, ‘porque sim’ faz - e tem - de facto todo o sentido.

E no entanto. No entanto, meti-me nisto, no shuffle, que às vezes precisamos mesmo de saber se é assim com toda a gente e esta menina me merece isso tudo e mais: publico-o. Tenho para mim que não há vida que um shuffle de ipod não retrate e desarme. A nossa vida é uma manta de canções. A minha, uma que me descobre, pés frios, coração dormente.

IF SOMEONE SAYS "IS THIS OKAY" YOU SAY? Shadows (Rufus Wainright)

WHAT WOULD BEST DESCRIBE YOUR PERSONALITY? The Art Teacher (Rufus Wainright)

WHAT DO YOU LIKE IN A GUY/GIRL? Stand by me (Ben King)

WHAT IS YOUR LIFE'S PURPOSE? Wishing you were somehow here again (Emmy Rossum, Andrew LLoyd-Webber’s Phantom of The Opera)

WHAT IS YOUR MOTTO? Nobody’s off the hook (Rufus Wainright)

WHAT DO YOUR FRIENDS THINK OF YOU? Enjoy the Silence (Depeche Mode)

WHAT DO YOU THINK ABOUT OFTEN? E depois do Adeus (Paulo de Carvalho)

WHAT IS 2+2? Bicho de conta (Camané)

WHAT DO YOU THINK OF YOUR BEST FRIEND? The Kingdom of God (Taizé Instrumental)

WHAT DO YOU THINK OF THE PERSON YOU LIKE? This boy (Sean Lennon, Robert Schwartzman, Rufus Wainright)

WHAT IS YOUR LIFE STORY? Cigarettes and Chocolate milk (Rufus Wainright)

WHAT DO YOU WANT TO BE WHEN YOU GROW UP? Gaivota (Amália hoje)

WHAT DO YOU THINK WHEN YOU SEE THE PERSON YOU LIKE? Por outras palavras (Mafalda Veiga)

WHAT DO YOUR PARENTS THINK OF YOU? Spark (Tori Amos)

WHAT WILL YOU DANCE TO AT YOUR WEDDING? Release the Stars (Rufus Wainright)

WHAT WILL THEY PLAY AT YOUR FUNERAL? Foi Deus (Amália hoje)

WHAT IS YOUR HOBBY/INTEREST? Snow cherries from France (Tori Amos)

WHAT DO YOU THINK OF YOUR FRIENDS? Jamaica Fairwell (Harry Bellafonte)

WHAT'S THE WORST THING THAT COULD HAPPEN? I’m gonna lock my heart and throw away the key (Billie Holiday)

HOW WILL YOU DIE? Eu não sei dizer (Silence 4)

WHAT IS THE ONE THING YOU REGRET? Winter (Tori Amos)

WHAT MAKES YOU LAUGH? The Man I love (Ella Fitzgerald)

WHAT MAKES YOU CRY? A Pain that I’m used to (Depeche Mode)

WILL YOU EVER GET MARRIED? Antes do grito (Camané)

WHAT SCARES YOU THE MOST? Waiting for a dream (Rufus Wainright)

DOES ANYONE LIKE YOU? Dinner at eight (Rufus Wainright)

IF YOU COULD GO BACK IN TIME, WHAT WOULD YOU CHANGE? A natural woman (Aretha Franklin)

WHAT HURTS RIGHT NOW? A (Very) little respect (Silence 4)

WHAT WILL YOU POST THIS AS? My Way (Frank Sinatra)

quinta-feira, junho 25, 2009

Um balão para eu não pensar


O nosso balão maior

Ainda na sequência da festa mais festa das duas cidades por que vou passando os dias em pêndulo constante, dou comigo vezes sem conta a recordar, mais do que qualquer outra coisa, os balões que lançámos lá em casa.

Dou comigo a recordar aquele balão maior que as janelas da marquise, o que nos obrigou a migrar para a frente da casa, para a varanda, o que nos obrigou a mil e uma destrezas e outros tantos malabarismos, o que atravessou, lindo, maior, o telhado do prédio, que nós bem corremos para a marquise na parte de trás para o ver, lindo, maior, subir, subir, subir.

Vem com listinha de instruções, cada balão, meia dúzia de indicações, claras, precisas e simples, abra com cuidado para não rasgar o papel, acenda dos dois lados, espere até encher e subir, coisas simples, realmente simples. Bonito, bonito, é ser assim, tão simples, bonito, bonito é ser assim, esperar tão pouco, subir tão leve, voar tão rápido, brilhar muito até ser um pontinho de fogo, uma estrela, num céu tão pontilhado por outras, iguais.

Dou comigo a pensar que não se pensa muito, porventura nada, quando se lança um balão de São João. Pensar, mata; pensar, rasgaria o papel, apagaria a chama, impediria o voar – e um esqueleto de arame não voa!... – pensar, mata as coisas bonitas, tudo o que voa.

Nunca pensei que conseguisses fazer isto, sabias? Sabia, por acaso, nem eu, por isso não me percebi por que me pediste para. Ora, por isso mesmo, é que, afinal..., afinal às vezes não pensas! Pois, pelos vistos, às vezes não.

E continuámos na marquise muito tempo ainda para o ver, lindo, maior, subir, subir, subir, ao sabor do nosso não-pensar.

quarta-feira, junho 24, 2009

De como são bonitos, os feriados (II)

A preguiça de hoje (qualquer relação com ontem é mera...)

O almoço de daqui a nada (qualquer semelhança com ontem é mera...)

Ontem, hoje, amanhã..., pés no chão

terça-feira, junho 23, 2009

Tudo o que brilha


Chegar a uma cidade de manhã, quando de manhã é cedo mesmo cedo, é como ter nove anos e deixar tudo para espreitar as formigas do carreiro. Tudo: os problemas, as pressões, os projectos, o Projecto com lista-de-coisas-a-fazer-neste-dia apensa, a memória: aquela música do ipod no comboio que lembra quando, tudo.

Hoje, véspera de São João, não reconheço a cidade a que chego todos os dias de olhos quase abertos por detrás dos óculos de sol. Hoje Braga sem uma única formiga, hoje, ainda há pouco, Braga uma menina de seis anos a arrastar ouros e vestes de minhotas de tempos antigos, hoje, ainda há pouco Braga uma banda aprumada de trinta gravatas roxas em trinta pescoços adolescentes, não completamente aprumados, vai lá buscar o casaco ao carro se faz favor.

Hoje, véspera de São João, se os punhos amarelos, gravata igual, não se tivessem sentado na vizinhança do que é costume, se o rapaz lá em baixo no guarda-sol ao pé do lago não fosse o rapaz de todos os dias lá em baixo no guarda-sol ao pé do lago, se a senhora que está na minha sala não fosse a senhora que está na minha sala, sempre, este mês, hoje, podia jurar, Braga silente, Braga vazia, Braga quieta, um sonho mau.

Hoje, véspera de São João. Hoje, alhos e espirros, martelos e sorrisos, e os quase beijinhos e os quase abraços, no atropelo da multidão numa noite quente que não acaba. Avenida acima, avenida abaixo. Avenida acima, avenida abaixo.

Pensava nisto, na única vez que fui ao São João de Braga, já lá vão quase dez anos, pensava nisto, nas barraquinhas, nas farturas e nos amigos de então, pensava nisso quando há dias encontrei as ditas barraquinhas a milhas da avenida, pertíssimo do sítio onde almoço, pensava nisto há dias quando de passagem depois do almoço, pela avenida, agora renovada, agora jardim, agora mar de amores-perfeitos e violetas, olha, nem de propósito, para ti que acreditas num amor único, não, nada disso, eu acredito é num amor-perfeito-único, a perfeição é que é única, não o, ou isso, como queiras, ora, quantos amores-perfeitos temos aqui?, começamos a contar?, oh, és mesmo, perfeitos, perfeitos, só aqueles, amarelos e castanhos, não, perfeita perfeiiiiiiiiiiiiiita, só a Super-bock sem alcóol, aiiii, és mesmo totó!.

Hoje, véspera de São João, tomei o pequeno-almoço no sítio do costume, os meus livros apertados entre o café e o sumo e um manjerico pequenino, sem cheiro, e a pretender graças de rimas entre ervas de chá e ervas de namorados. Seria um bocadinho triste se não houvesse por todo o lado fitas e balões, luzes e cor. E um Bom São João! a cada despedida. Tal como a avenida, agora sem barraquinhas, agora só flores, um pouco triste, não houvesse luzes e cor. Luzes e cor. Acho graça. Acho graça a tudo o que brilha. No fundo a festa é isso. Tudo o que brilha.

Hoje, véspera de São João, temos uns amigos madeirenses a jantar lá em casa no Porto, acho graça a tudo o que brilha e àqueles amigos madeirenses que vêm jantar lá em casa no Porto, porque sempre brilham quando nos enchem a casa de grandes risos, acho graça, e doces recordações de outros tempos e outras casas, luzes e cor. Hoje, véspera de São João, logo, quando estiver a preparar o jantar, acho graça, quando ajeitar a rima ao manjerico da bancada, luzes e cor, quando lhe sentir o aroma vivo na cozinha, sempre brilha, hoje, logo, no Porto, Braga, daí a nada noite dentro, acho graça, uma avenida inteira de amores-perfeitos, lá longe, quando me despedir dos amigos e dos irmãos, tudo devidamente munido de martelos e sorrisos para uma noite quente que não acaba, luz e cor; hoje, logo, no Porto, Braga, à secretária noite dentro, uma avenida inteira de amores-perfeitos, lá longe, até quinta.

Quando se tem nove anos e nos deitamos de barriga para baixo, pernas cuzadas em cima, o brilho está em todo o lado.

quinta-feira, junho 18, 2009

O mundo visto de cima

De cima de doze centímetros, o mundo fica mais pequeno, as pessoas ficam mais pequenas; a cintura, coisa extraordinária, quase mais pequena; o andar, cada passo, mais pequeno; a energia, repartida, mais pequena; as tarefas, consoante o depósito de energia remanescente, divididas, mais pequenas; e até alguns problemas, mais pequenos. Parece um lugar mais simples, mais fácil de habitar, de existir, vivendo, o mundo, de cima de doze centímetros.

Se calhar é por isso que me parece tão sereno. É assim, sereno, do alto dos seus de certeza dois metros, aqueles mais vinte centímetros de que só hoje precisava para ser serena, também. É assim, sereno, quando sorri para me deixar sentar, quando descansa as mãos, bonitas, – eu a cumprimentar os botões de punho lilás iguais à gravata –, sobre os joelhos, quando, depois, cruza os braços, adeus mãos bonitas!..., para, por fim, se deixar adormecer.

Há qualquer coisa que me inspira uma ternura imensa, algo cujo entendimento me escapa, uma loucura babada, rios dela a sairem dos olhos e da boca num sorriso deliciado, ante a generalidade destas pessoas, grandes-mesmo-grandes, da liga dos jogadores de basketball; exactamente o mesmo delírio divino que não consigo reprimir ante as pessoas pequenas-mesmo-pequenas, que descansam e adormecem ao fim do dia no colo das pessoas nem-grandes-nem-pequenas, como eu.

Na impossibilidade de permanecermos para sempre pessoas pequenas-muito-pequenas, de colo, sorriso e respiração milagrosamente sincronizados com o embalo e a respiração - e o abandono derretido! - da pessoa nem-grande-nem-pequena sentada na sua cadeira predilecta, devíamos ser todos grandes-muito-grandes. E sorrir quando pede licença, uma menina suada, vermelha, pesada de livros, cópias e uma prenda de aniversário, e sumamente farta dos dias, de um dia estupidamente quente e mau. Devíamos ser todos grandes-muito-grandes. E usar botões de punho, um par por cada cor do arco-íris, sempre a fazer pendant com a gravata. E adormecer ao fim do dia naquele perímetro incompreensivelmente exíguo para um metro e meio de pernas que sempre resvalam, num quase selinho de joelhos, para outro par de pernas, um de métrica regular. Devíamos ser todos assim, grandes-muito-grandes. Ou então fazer por isso, e andar de pumps de 12 centímetros, como eu hoje. A serenidade é uma questão de perspectiva. E andamento.

Devíamos ser todos assim, serenos. Devíamos ser todos assim, sem pensar. Deus, então não é que tudo me dorme?, como é que tudo me dorme?, porque é que tudo me dorme?

Devíamos ser todos assim, serenos, porque, tenho a certeza, o mundo visto de cima é um lugar mais simples.

terça-feira, junho 16, 2009

Como é que eu não vi logo?


A MINHA MÃO, O MEU ANEL : 5 dedos, três anéis - normal, não?

As beatas realmente beatas não são aquelas senhoras pequeninas, ajoelhadas muito enroladas sobre o banco, aquelas que bichanam terços e terços em frente ao altar, não.

As beatas realmente beatas sentam-se nos dois, três, últimos bancos da Sé, bem longe do altar, dos terços, do padre e do Evangelho e são umas matronas que vestem sempre de preto.

As beatas realmente beatas têm um destino negro de tão fatal apenas iluminado pelo robusto dever pedagógico e universal de mostrar a sua dor mais perfeita, mais dura, mais negra, a fim de inspirar... reconhecimento, faz favor, com fervor, com paixão.

As beatas que não se vestem de preto, as que têm largas blusas de azuis e rosas e beges e brancos gastos, a piscarem lantejolas ainda mais gastas, sentam-se ao lado das sempre de preto, filha és, mãe serás, negra toda a ausência de cor, filha és, mãe serás, nos dois, três, últimos bancos aqui da Sé. Bem longe do altar, dos terços, do padre e do Evangelho.

As beatas realmente beatas não rezam o terço, ocupadas que estão com o responsório que cospem ora para a esquerda, ora para a direita – as alas por que entram as pessoas que, como eu, chegaram no comboio das oito e meia e que prometeram a si mesmas depois daquela primeira missa ingénua, estoicamente suportada de pé, o coração a bater em todo o lado, os olhos confusos, atrás de todos os bancos, longe, longe, longe, de toda a Palavra, nunca mais; pessoas que, como eu, de fininho voam o mais rápido que podem para a frente. Longe, longe daquilo. Pessoas como eu, que não têm – ainda – capacidades de tele-transporte que lhes permitam sair do comboio, pézinho direito à frente, entrando, pisando firmemente os romanos chãos na Sé, pézinho esquerdo esquecido atrás, ainda no comboio.

No comboio. Às vezes apetece tanto sair do comboio, sem olhar a quanto tempo se está da próxima paragem, se é ou não apeadeiro, mesmo em andamento – não importa, às apetece tanto quanto da missa das oito e meia da Sé, não se conhecendo as beatas mais beatas, ou a respectiva área preferencial de pousio. No comboio, ainda não percebi porquê – pessoas aborrecidas! –, a partir de Ermesinde não há, infelizmente, áreas preferenciais de pousio. É tudo ao molho. Por miúdos: se as pessoas do costume não vêm, ou se, tendo vindo, encontraram alguém conhecido e por isso se sentam alhures, há o risco, remoto – trago sempre um livro e/ou música... – de a viagem demorar mais que a eternidade dos quarenta e cinco minutos de todos os dias. Se for dia de livro, não há inoportuno que me aborreça; se for dia de música, quase qualquer um é inoportuno. A música é algo a que me é possível dedicar por completo apenas quando é ao vivo, nos outros casos todos tenho de fazer sempre alguma coisa com os olhos ou com as mãos. Ou com ambos. Então hoje, que tenho dois papos e uma ardência moída no lugar dos olhos, resolvi não ler, resolvi ouvir – o meu ipod tem música que nunca mais acaba!... – e olhar lá para fora. Como algumas vezes faço, de resto. Na Trofa, entra uma menina, muito arranjadinha, blusinha roxo quaresmal, a cor da moda, muito despachadinha, muito pequenina, uma cara que conheço de passagem, de passagens muito rápidas, da Biblioteca que se senta bem à minha frente. Acho muito natural que, por nos conhecermos de vista, prestassemos atenção uma à outra. É assim sempre entre mulheres – parece-me. Não me parece é, naturalmente, bem, que a atenção da menina dure a totalidade da sua viagem, uma meia hora eteeeeeeeeeerna, e se foque única e exclusiva, assustadoramente, no anel da minha mão esquerda. Faço de tudo, troco as mãos de posição, olha a janela para depois voltar ao mesmo, remexo na mala, olha a outra janela para depois, olhei-a nos olhos com o então? que se impunha, mostra o passe ao revisor para depois, acho que já chega, quero rir: sacudo a mão, tiro o anel, olho-a, componho o anel noutra ordem, olho-a, noutra ainda, e noutra – três anéis permitem múltiplas probabilidades... – sempre a olhá-la, coloco-os uma e outra vez na outra mão, na do costume, que volto a sacudir, como no ínicio da brincadeira.

No fim, a precisar muito - e urgentemente... - de penitência, esvoaçei o melhor que pude para a Sé, pela porta do lado, de fininho, o mais rápido que pude, que posso sempre, para a frente. Longe, longe daqueles últimos três bancos horripilantes de roupas e palavras gastas, à força de tanto direita-esquerda-esquerda-direita-direita-esquerda, sempre assim, no mesmo ritmo, estupidamente natural, das matronas de negro e, bem lá no meio delas, aconchegadinha, serena como quando se está em casa, a menina arranjadinha, blusinha roxo quaresmal, a cor da moda, um negro mais jovem.

Como é que eu não vi logo?

segunda-feira, junho 15, 2009

Um jeito que se chama altura


Ela entra muito alta, porventura altiva, e no entanto... é mais alta que me parece assim que entra na sala. Alta. Altiva seria se só levantasse o nariz, como eu, muitas vezes, quase sempre. Ela não, ela, toda alta, levanta tudo. Chega, alta, levantada do chão, chega assim, alta, de tão direita, da direiteza de fuso com que entra na sala, toda vértebra, toda osso, toda pau de vassoura. Alta.

Ela entra com a cara inclinada, a cabeça toda, numa latitude-longitude que não consigo reproduzir sem me doer a nuca, pesar-me o occipital, as costas, enfim, ela entra, alta, vai entrando toc, toc, toc apressado de sapatinho castanho de tacão, alta, cara sempre no mesmo meridiano, alta, olhar em frente, alta, escolhe, alta, senta-se, alta, liga o computador, alta, lê, alta, a cara, a cabeça toda, o olhar, a vida e o mundo, sempre ali, sempre assim. Alta.

sábado, junho 13, 2009

Santo António fica do outro lado


Foto daqui

Santo António fica do outro lado da estrada. É só atravessar.

Na Madeira. Quando fecho o portão de casa, estou em São Martinho; quando atravesso a rua para cumprimentar o nosso vizinho da frente, então como tem passado, sr. Abreu?, muito bem e a menina, é a Joaninha, não é?, já não vinha cá há tanto tempo, pois, tem razão realmente, desde o Natal..., é menina, mas as feições não mudam muito..., as feições!, o sr. Abreu é que nunca muda, sempre igual, sempre iguais nós os dois à conversa, em Santo António.

Santo António fica do outro lado da estrada. É só atravessar.

Em Famalicão. À saída do MacDonalds, é só atravessar, e dá logo com a rotunda, está a ver?, bem no centro da rotunda: Santo António. Entra-me pelos olhos dentro aquela rotunda, nunca mais vir a Famalicão de carro, o comboio não passa por aqui, desce-me até ao estômago, aquela rotunda, nunca mais atravessar o centro de Famalicão, o comboio não passa por aqui, rebela-me bílis, aquela rotunda, nunca mais...., e num instante, cá para fora, tudo, outra e outra vez, sempre. Não segura o estômago o que o coração esqueceu.

Santo António fica do outro lado da estrada. É só atravessar.

Em Nova Iorque. Na Catedral de St. John the Divine, o céu três minutos depois do Rockefeller Center, do outro lado da estrada. Um bocadinho de Portugal, St. Anthony of Lisbon, aqui?, um calorzinho bom, quem diria?, um bocadinho de casa, so far away, um bocadinho de sorriso, tão perto, tão longe, tão grande, tão bonita, ma-gni-fi-cen-te, uma imagem magnificente, em destaque, num templo anglicano, quem diria.

Quando éramos miúdos, ao jantar, a minha mãe costumava sossegar-nos aos quatro com histórias, duas ou três por refeição, uma variedade que cedo ou tarde repetiria da véspera ou da semana anterior, forçosamente: os dias eram muitos e quatro vontades diferentes de ouvir novamente as suas histórias predilectas complicavam em muito os jantares... Não sei se espontaneamente, se por manobra de entretenimento, começou a intercalar as nossas histórias com as vidas dos santos. Então, depois da fábula, incrível, da Águia branca e da Águia preta, lá vinha o arrependimento de São Cristóvão, coitadinho, a vida toda a atravessar o rio?, às aventuras do Tonto e do Sabido, se seguia o martírio de Santa Bárbara, coitadinha, o próprio pai?, depois da desventura da Maria do Viúvo, chegava a paciência de Santo António, santo milagreiro e casamenteiro, para com as tropelias de um Menino que tudo fazia para o distrair do estudo. Divertia-nos pouco esta a história da paciência do único santo que não considerámos, unanimemente, coitadinho. A paciência é uma história para adultos. Mas aquele único santo de uma vida simples, sem tragédias nem amarguras, aquele cuja história nem nos cativava muito, esse, ficou para sempre connosco, a sorrir-nos terno do passado, a olhar-nos atento da moldura, a acolher generoso o nosso quotidiano, ali, presente, paciente, no quadro mais estimado pela nossa avó, ali, presente, paciente, um lírio numa mão, o livro em cima do qual sentava o Menino na outra. Gosto de santos. Gosto destes santos que descem dos altares para viver connosco.

Gosto deste Santo António paciente do outro lado. É só atravessar.

sexta-feira, junho 12, 2009

Faz-te bonita, mas faz-te mal

E isso não vale, miúda. Porque é que és assim, pá?! Olha, mesmo agora, acabaste de o fazer. Pronto, agora não, agora o famoso quatrocentos e quarenta e três, mas mesmo antes, ainda agora, há bocadinho, antes do silêncio e, não faças isso, deixa os sapatos, ouve, naquele milésimo de segundo em que me olhaste nos olhos com um começo de pergunta, nesse instante, como um tomate, vermelha como um tomate!, porquê?. Porquê, o quê?, é assim, sou assim, não controlo, é imediato, anterior a qualquer tipo de racionalização, não consigo, controlar, entendes? Consegues, faz um esforço. Porquê, há quem até lhe ache graça, sabes? Ninguém acha graça a quem cora assim, Joana, não uma graça boa, não uma que dure mais que dois segundos, aquele tempo exacto antes de te arrancarem a aorta. Arrancarem-me a aorta, dizes cada coisa, tu! Arrancarem-te a aorta, sim!, até parece, olha o que vale é que só no-la arrancam uma vez, depois disso, que dois segundos!?: dois chapos. Dois chapos, tão nortenho!, só tu realmente! Dois chapos, sim, não corar, não olhar sapatos, não quatrocentos e quarenta e três, sim acabar a pergunta que o olhar sempre começa, sim dois chapos se a resposta não o for de facto, dois chapos sim!, mas só a arrancadores de aorta e outros que tais, vampiros!, às funcionárias das lojas que se querem mostrar prestáveis, não é preciso. Não percebi, explique-se. Esta manhã, no shopping, a menina que te queria ajudar a escolher a mala. Ah isso, não gosto, sabes perfeitamente, eu sei o que quero, sabia bem qual era e corei claro!, mas porque invadiu o meu espaço. Estava a fazer o trabalho dela. Sim, mas entende, eu já tinha. Tinhas e tens uma noção de espaço pessoal muito pouco perimetral, essa é que é essa. Perimetral!, que inspiração!, hoje estamos de uma verbosidade..., e... não tenho nada disso, só não gosto de sarilhos, ou só gosto, aprecio particularmente, o meu sossego, como queiras. Só gostas é demasiado, e sem critério, esse é que é o problema. Há outra maneira de gostar? Há claro, uma em que a culpa também é dos outros, contigo a culpa nunca é dos outros, nunca pode ser dos outros, sem hipótese, tu chegas-te sempre à frente com a estúpida da adrenalina, é sempre tua, a culpa, a sério, porquê, miúda? Oh, estás a fazer com que me sinta desconfortável. Ui!, então?, desculpa..., não é caso para tanto, faz-te bonita a adrenalina, sabes?, nem precisas de usar blush, nem nada..., só que, faz-te mal também, faz fazerem-te mal, entendes?, este telefonema, esta chamada não-atendida que nem telefonema foi, isto, isto não é nada, entendes?, não justifica essa descarga toda, nem o susto, nem o constrangimento, nem a preocupação, as coisas do costume que fazem com que, oh dá cá um abraço, vá.

Ou de como são bonitos, os feriados.

terça-feira, junho 09, 2009

O único livro que não consigo tirar da mesinha-de-cabeceira, as únicas palavras que


Daniel Faria

Homens que são como lugares mal situados
Homens que são como casas saqueadas
Que são como sítios fora dos mapas
Como pedras fora do chão
Como crianças órfãs
Homens agitados sem bússola onde repousem

Homens que são como fronteiras invadidas
Que são como caminhos barricados
Homens que querem passar pelos atalhos sufocados
Homens sulfatados
Por todos os destinos
Desempregados das suas vidas

Homens que são como a negação das estratégias
Que são como os esconderijos dos contrabandistas
Homens encarcerados abrindo-se com facas

Homens que são como danos irreparáveis
Homens que são sobreviventes vivos
Homens que são sítios desviados
Do lugar


....

Homens que são como projectos de casas
Em suas varandas inclinadas para o mundo
Homens nas varandas voltadas para a velhice
Muito danificados pelas intempéries
Homens cheios de vasilhas esperando a chuva
Parados à espera
De um companheiro possível para o diálogo interior


Homens muito voltados para um modo de ver
Um olhar fixo como quem vem caminhando ao encontro
De si mesmo
Homens tão impreparados tão desprevenidos
Para se receber

Homens à chuva com as mãos nos olhos
Imaginando relâmpagos
Homens abrindo lume
Para enxugar o rosto para fechar os olhos
Tão impreparados tão desprevenidos
Tão confusos à espera de um sistema solar
Onde seja possível uma sombra maior


...

Não levantemos os homens que se sentam à saída
Porque se movem em seus carreiros interiores
Equilibram com dificuldade uma ideia
Qualquer coisa muito nítida, semelhante
A uma folha vazia
E põem ninhos nas árvores para se libertarem
Da gaiola terrível, invisível muitas vezes
De tão dura
Não nos aproximemos dos homens que põem as mãos nas grades
Que encostam a cabeça aos ferros
Sem outras mãos onde agarrar as mãos
Sem outra cabeça onde encostar o coração
Não lhes toquemos senão com os materiais secretos
Do amor.
Não lhes peçamos para entrar
Porque a sua força é para fora e a sua espera
É a fé inabalável no mistério que inclina
Os homens por dentro
Não os levantemos
Nem nos sentemos ao lado deles.
Sentemo-nos
No lado oposto, onde eles podem vir para erguer-nos
A qualquer instante


Daniel Faria, “HOMENS QUE SÃO COMO LUGARES MAL SITUADOS”, 1998


O último recital do Sindicato de Poesia a que assisti em Braga foi precisamente em torno de poemas do Daniel Faria. Nas vésperas, entusiasmadíssima com os ensaios, a Ana Arqueiro dizia-me o quanto gostava que o Daniel estivesse ainda entre nós para lhe perguntar uns quantos comos, outros tantos porquês e aprofundar uma série de ao certos que labaredeavam aqueles poemas. Gostava tanto que ele estivesse aqui, tinha que explicar. Nunca mais me esqueci disso. Há dias lia Sarah Kane e pensava nisso exactamente. Agora parece-me que 28 anos são o tempo exacto de uma vida vivida inteira - coisa de génios, ou de anjos.

Passam hoje dez anos sob o desaparecimento do poeta Daniel Faria, possivelmente o meu poeta português predilecto.

Para quem está no Porto impõe-se uma espreitadela aqui,para quem não está, e se porventura não conhecer - ainda vai a tempo de lavar os olhos e a alma... - impõe-se outra aqui.

segunda-feira, junho 08, 2009

Todo o sentido, Pedro


Às vezes, quando as coisas começam, nós ainda não sabemos como vão continuar nem o que significam, e não conseguimos descansar enquanto não percebemos tudo. E é maravilhoso quando concluimos que tudo o que estávamos a sentir estava certo. E a chave para conseguir perceber o que ainda não sabíamos vai surgindo ao longo dos dias, ao longo das pequenas coisas que acontecem por acaso. Mas esse acaso só o é até um certo ponto, porque fomos nós que nos fizemos estar como estamos no momento em que o acaso acontece, como se ele, o acaso, estivesse à espera daquela oportunidade para aparecer e nos condicionar o livre arbítrio. E depois podemos pensar, como acontece tantas vezes, que foi por causa de uma coisa que só agora está a acontecer, que nos apaixonámos e que nos casámos. São estes pensamentos que nos revelam que tudo esteve certo, que tudo está certo.


Faz sentido?

(Tinha uma série de coisas para escrever por cá agora, mas acabo de falar via G-Talk com o Pedro, que me acaba de dizer via orgulho-precoce-de-pai-babado que vai ter uma Menina e de me explicar via pérola-de-sabedoria-que-transcrevi-acima esse pequeno milagre. Tenho amigos fabulosos!)

quinta-feira, junho 04, 2009

As minhas dores


As minhas dores são incríveis. Têm este condão especial de me levar, pairando, à mesma Farmácia, mais ou menos à mesma hora, aquele cedo antes-que-seja-tarde-demais, ou aquele tarde demais-mesmo-demais quando já me posso enfim mexer. Olá, bom dia, queria uma caixa de, sem receita, o costume.

Apagam o tempo, também têm esse poder. A última vez é sempre, incrivelmente sempre, a primeira. A última vez é uma sem par, é a única. A última vez é aquele tempo sem tempo, aquele tempo que é só presente, aquele em que o presente não acaba porque, envenenado, se demora por uma eternidade.

Se me perguntassem onde lhe dói?, nunca me perguntam onde lhe dói?, é demasiado pessoal – parece-me, é mais seguro aferir do estado, dizer, porque dizer não implica quem diz, ou implica pouco, dizem, está tão branca, Joana, vou abrir a janela!..., mas se não fossem assim, se preferissem o perguntar ao aferir, se me perguntassem, de pouco vale perguntarem, mas no entanto se... não teria mãos bastantes, nem dedos ágeis o suficiente para apontar; não teria olhos para dirigir a resposta; não teria força no pescoço, aquele mínimo de força necessário para se conseguir articular uma palavra que seja.

Às vezes acho que as minhas dores são as maiores dores do mundo – é quando acho que sou uma grande pessoa, maior do que o mundo pelo menos, grande, porque com mais ou menos lamúrias, com mais ou menos esperança, lá as vou suportando, e chego até a ficar feliz, coisas de uma memória forçadamente curta, no intervalo. A minha irmã mais nova diz que não, que não são, que não sou. Diz que é tudo uma questão psicológica. Que a dor se combate no terreno mental. Eu não quero combater nada e tenho horror à palavra mente. É feia de dizer, soa feia ao ouvido, cola-se a uma série de outras, palavras e coisas, serve de desculpa justificativa para aquilo que é quase tudo que não a tem e ocasionalmente mostra a língua à verdade, feia, feia, feia. Só queria que me deixassem sossegada, as dores. Só queria a certeza de não mais. Só queria poder arrepiar caminho.

Espere aí que ainda falta sair o talão do Multibanco e assim fica mais um bocadinho aqui comigo.

terça-feira, junho 02, 2009

De descobertas felizes



Chau número tres

Te dejo con tu vida
tu trabajo
tu gente
con tus puestas de sol
y tus amaneceres.

Sembrando tu confianza
te dejo junto al mundo
derrotando imposibles
segura sin seguro.

Te dejo frente al mar
descifrándote sola
sin mi pregunta a ciegas
sin mi respuesta rota.

Te dejo sin mis dudas
pobres y malheridas
sin mis inmadureces
sin mi veteranía.

Pero tampoco creas
a pie juntillas todo
no creas nunca creas
este falso abandono.

Estaré donde menos
lo esperes
por ejemplo
en un árbol añoso
de oscuros cabeceos.

Estaré en un lejano
horizonte sin horas
en la huella del tacto
en tu sombra y mi sombra.

Estaré repartido
en cuatro o cinco pibes
de esos que vos mirás
y enseguida te siguen.

Y ojalá pueda estar
de tu sueño en la red
esperando tus ojos
y mirándote.