quinta-feira, setembro 29, 2011

quarta-feira, setembro 28, 2011

Tu estás aqui

Estás aqui comigo à sombra do sol
escrevo e oiço certos ruídos domésticos
e a luz chega-me humildemente pela janela
e dói-me um braço e sei que sou o pior aspecto do que sou
Estás aqui comigo e sou sumamente quotidiano
e tudo o que faço ou sinto como que me veste de um pijama
que uso para ser também isto este bicho
de hábitos manias segredos defeitos quase todos desfeitos
quando depois lá fora na vida profissional ou social só sou um nome e sabem
o que sei o
que faço ou então sou eu que julgo que o sabem
e sou amável selecciono cuidadosamente os gestos e escolho as palavras
e sei que afinal posso ser isso talvez porque aqui sentado dentro de casa sou
outra coisa
esta coisa que escreve e tem uma nódoa na camisa e só tem de exterior
a manifestação desta dor neste braço que afecta tudo o que faço
bem entendido o que faço com este braço
Estás aqui comigo e à volta são as paredes
e posso passar de sala para sala a pensar noutra coisa
e dizer aqui é a sala de estar aqui é o quarto aqui é a casa de banho
e no fundo escolher cada uma das divisões segundo o que tenho a fazer
Estás aqui comigo e sei que só sou este corpo castigado
passado nas pernas de sala em sala. Sou só estas salas estas paredes
esta profunda vergonha de o ser e não ser apenas a outra coisa
essa coisa que sou na estrada onde não estou à sombra do sol
Estás aqui e sinto-me absolutamente indefeso
diante dos dias. Que ninguém conheça este meu nome
este meu verdadeiro nome depois talvez encoberto noutro
nome embora no mesmo nome este nome
de terra de dor de paredes este nome doméstico
Afinal fui isto nada mais do que isto
as outras coisas que fiz fi-Ias para não ser isto ou dissimular isto
a que somente não chamo merda porque ao nascer me deram outro nome
que não merda
e em princípio o nome de cada coisa serve para distinguir uma coisa das
outras coisas
Estás aqui comigo e tenho pena acredita de ser só isto
pena até mesmo de dizer que sou só isto como se fosse também outra coisa
uma coisa para além disto que não isto
Estás aqui comigo deixa-te estar aqui comigo
é das tuas mãos que saem alguns destes ruídos domésticos
mas até nos teus gestos domésticos tu és mais que os teus gestos domésticos
tu és em cada gesto todos os teus gestos
e neste momento eu sei eu sinto ao certo o que significam certas palavras como
a palavra paz
Deixa-te estar aqui perdoa que o tempo te fique na face na forma de rugas
perdoa pagares tão alto preço por estar aqui
perdoa eu revelar que há muito pagas tão alto preço por estar aqui
prossegue nos gestos não pares procura permanecer sempre presente
deixa docemente desvanecerem-se um por um os dias
e eu saber que aqui estás de maneira a poder dizer
sou isto é certo mas sei que tu estás aqui

Ruy Belo aqui

segunda-feira, setembro 26, 2011

De outonos que são como primaveras *

António Machado (1875 - 1939)
Imagem daqui

Caminante son tus huellas
El camino nada más;
caminante no hay camino
se hace camino al andar.
Al andar se hace camino
y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.
Caminante, no hay camino
sino estelas sobre el mar.
¿Para que llamar caminos
A los surcos del azar...?
Todo el que camina anda,
Como Jesús sobre el mar.

Yo amo a Jesús que nos dijo:
Cielo y tierra pasarán
Cuando cielo y tierra pasen
mi palabra quedará.
¿Cuál fue Jesús tu palabra?
¿Amor?, ¿perdón?, ¿caridad?
Todas tus palabras fueron
una palabra: Velad.
Como no sabéis la hora
En que os han de despertar,
Os despertarán dormidos
si no veláis; despertad.



* palavras desta menina.

sexta-feira, setembro 23, 2011

quarta-feira, setembro 21, 2011

terça-feira, setembro 20, 2011

segunda-feira, setembro 19, 2011

De outras Joanas - 8

O Silêncio

Era complicado. Primeiro deitou os restos de comida no caixote do lixo. Depois passou os pratos e os talheres por água corrente debaixo da torneira. Depois mergulhou-os numa bacia com sabão e água quente e, com um esfregão, limpou tudo muito bem. Depois tornou a aquecer água e deitou-a no lava-loiças com duas medidas de sonasol e de novo lavou pra­tos, colheres, garfos e facas. Em seguida passou a loiça e os talheres por água limpa e pô-los a escorrer na banca de pedra.

As suas mãos tinham ficado ásperas, esta­va cansada de estar de pé e doíam-lhe um pou­co as costas. Mas sentia dentro de si uma gran­de limpeza como se em vez de, estar a lavar a loiça estivesse a lavar a sua alma. A luz sem abat-jour da cozinha fazia brilhar os azulejos brancos. Lá fora, na doce noite de Verão, um cipreste ondulava branda­mente.

O pão estava no cesto, a roupa na gaveta, os copos no armário. O vaivém, a agitação e o tumulto do dia repousavam.

Havia um grande sossego. Tudo estava ar­rumado e o dia estava pronto.

E Joana atravessou devagar a sua casa.

Ia abrindo e fechando as portas, abrindo e fechando as luzes. Os quartos desapareciam no escuro e surgiam do escuro na claridade.

Um doce silêncio pairava como uma sede estendida.

O silêncio desenhava as paredes, cobria as mesas, emoldurava os retratos. O silêncio escul­pia os volumes, recortava as linhas, aprofunda­va os espaços. Tudo era plástico e vibrante, denso da própria realidade. O silêncio como um estremecer profundo percorria a casa.

As coisas conhecidas — o muro, a porta, o espelho — mostravam uma por uma a sua bele­za e a sua serenidade. E nas janelas abertas a noite de Junho mostrava o seu rosto constelado e suspenso.

Joana deu lentamente a volta à sala. To­cou o vidro, a cal, a madeira. Há muito já que cada coisa tinha encontrado ali o seu lugar. E era como se esse lugar, como se a relação entre a mesa, o espelho, a porta, fossem a expressão de uma ordem que ultrapassava a casa.

As coisas pareciam atentas. E a mulher que lavara a loiça procurava o centro dessa atenção. Sempre o procurara, mas quem o po­de captar?

O silêncio agora era maior. Era como uma flor que tivesse desabrochado inteiramente e alisasse todas as suas pétalas.

E em roda deste silêncio os astros da noite exterior giravam lentamente e o seu movimen­to imperceptível tomava em si a ordem e o si­lêncio da casa.

Com as mãos tocando a parede branca Joa­na respirou docemente. Era ali o seu reino, ali na paz da contemplação nocturna. Da ordem e do silêncio do universo erguia-se uma infinita liberdade: Ela respirava essa liberdade que era a lei da sua vida, o alimento do seu ser.

A paz que a cercava era aberta e transparente. A forma das coisas era uma grafia, uma escrita. Uma escrita que ela não entendia mas reconhecia.

Atravessou a sala e debruçou-se na janela aberta em frente do puro instante azul da noi­te.

As estrelas brilhavam, íntimas e distantes. E pareceu-lhe que entre ela e a casa e as estrelas fora estabelecida desde sempre uma aliança. Era como se o peso da sua consciência fosse ne­cessário ao equilíbrio das constelações, como se uma intensa unidade atravessasse o universo in­teiro.

E ela habitava essa unidade, estava presen­te e viva na relação das coisas e a própria reali­dade atenta a abrigava em sua imensa e aguda presença.

No ar, na cal, no vidro, tocava a sua felici­dade e essa felicidade era no seu centro unida­de.

Debruçou-se na janela e apoiou os braços na pedra fresca do parapeito.

Uma leve brisa agitou os ramos dos cedros. No rio, rouca, apitou uma sereia. Na torre o si­no bateu duas badaladas. Foi então que se ouviu o grito.

Um longo grito agudo, desmedido. Um grito que atravessava as paredes, as portas, a sa­la, os ramos do cedro.

Joana virou-se na janela. Houve uma pau­sa. Um pequeno momento imóvel, suspenso, hesitante. Mas logo novos gritos se ergueram, trespassando a noite. Estavam a gritar na rua, do outro lado da casa. Era uma voz de mulher. Uma voz nua, desgarrada, solitária. Uma voz que de grito em grito se ia desformando, desfi­gurando até ficar transformada em uivo. Uivo rouco e cego. Depois a voz enfraqueceu, bai­xou, tomou um ritmo de soluço, um tom de la­mentação. Mas logo voltou a crescer, com fúria, raiva, desespero, violência.

Na paz da noite, de cima a baixo, os gritos abriram uma grande fenda, uma ferida, E as­sim como a água começa a invadir o interior en­xuto quando se abre um rombo no casco de um navio, assim agora, pela fenda que os gritos ti­nham aberto, o terror, a desordem, a divisão, o pânico penetravam no interior da casa, do mundo, da noite.

Joana afastou-se da janela que dava para o jardim, atravessou a sala, o corredor e o quarto e, no outro lado da casa, debruçou-se na janela que dava para a rua.

A mulher via-se mal, agarrada à parede, na meia-luz, do outro lado do passeio. Os seus gritos nus, próximos, desmedidos enchiam a penumbra. Na sua voz a terra e a vida tinham despido os seus véus, o seu pudor e mostravam o seu abismo, revelavam a sua desordem, a sua treva. De uma ponta à outra da rua os gritos corriam batendo contra as portas fechadas.

Era uma rua estreita, apertada entre edifí­cios sem cor, pesados e tristes. Ali a noite era cinzenta, o ar baço, parado e pegajoso.

Cães vadios farejavam o chão dos passeios e rebuscavam os caixotes do lixo tentando agar­rar sob as tampas os restos, as cascas, o pescoço da galinha degolada.

O edifício enorme da prisão enchia todo o lado esquerdo da rua com as altas paredes cor­tadas por pequenas janelas de grades. A essa parede estava encostada a mulher. As vezes er­guia a cara e então via-se o rosto torcido e desfi­gurado pelo grito. Ao seu lado desenhava-se o vulto de um homem. Era tarde. As portas e as janelas estavam fe­chadas sobre gente adormecida e na rua não pas­sava mais ninguém. Só de longe a longe se ouvia um chiar de carros na viragem das esquinas.

O homem procurava arrastar a mulher e, quando os gritos diminuíam um instante, im­plorava-lhe que se calasse, pedia:

— Vamos embora.

Mas ela não o ouvia. Gritava como se esti­vesse só no mundo, como se tivesse ultrapassa­do toda a companhia e toda a razão e tivesse encontrado a pura solidão. Gritava contra as paredes, contra as pedras, contra a sombra da noite. Erguia a sua voz como se a arrancasse do chão, como se o seu desespero e a sua dor bro­tassem do próprio chão que a suportava. Erguia a sua voz como se quisesse atingir com ela os confins do universo e, aí, tocar alguém, acordar alguém, obrigar alguém, a responder. Gritava contra o silêncio.

Às vezes calava-se um momento e inclina­va a cabeça para trás como quem espera ouvir uma resposta.

Então, de novo, o homem implorava:

— Cala-te, cala-te. Vamos embora daqui.

Mas ela recomeçava a gritar e batia com os punhos na parede da prisão como se quisesse forçar a pedra a responder. Gritava como se quisesse atingir um ausente, acordar um ador­mecido, abalar uma consciência impassível e, alheada, tocar o coração de um morto.

Através das paredes, das portas, das ruas, da cidade, gritava para o fundo do universo, para o fundo do espaço, para o fundo da ocul­tação da noite, para o fundo do silêncio.

De repente calou-se, curvou a cabeça, ta­pou o rosto com as mãos. Então o homem co­briu-lhe os cabelos com o xaile, afastou-a da parede, passou-lhe um braço em roda dos om­bros, e, devagar, juntos, desceram a rua e vira­ram a esquina.

Durante algum tempo flutuou no ar pesa­do da rua um eco de soluços e de passos que se afastavam e diminuíam. Depois voltou o silên­cio.

Um silêncio opaco e sinistro onde se ouvia o esgravatar dos cães.

Joana voltou para a sala. Tudo agora, des­de o fogo da estrela até ao brilho polido da me­sa, se tinha tornado desconhecido. Tudo se tinha tornado acidente absurdo, sem ligação, sem reino. As coisas não eram dela, nem eram ela, nem estavam com ela. Tudo se tornara alheio, tudo se tornara ruína irreconhecível.

E, tocando sem os sentir o vidro, a madei­ra, a cal, Joana atravessou como estrangeira a sua casa.



Sophia de Mello Breyner Andresen
Histórias da Terra e do Mar
Figueirinhas
2006

quarta-feira, setembro 14, 2011

Gente gira - 6


Karen Blixen e a sua pequena coruja africana
Imagem daqui

terça-feira, setembro 13, 2011

domingo, setembro 11, 2011

Da História



"Seguramente ésta será la última oportunidad en que pueda dirigirme a ustedes. La Fuerza Aérea ha bombardeado las torres de Radio Postales y Radio Corporación. Mis palabras no tienen amargura sino decepción Que sean ellas el castigo moral para los que han traicionado el juramento que hicieron: soldados de Chile, comandantes en jefe titulares, el almirante Merino, que se ha autodesignado comandante de la Armada, más el señor Mendoza, general rastrero que sólo ayer manifestara su fidelidad y lealtad al Gobierno, y que también se ha autodenominado Director General de carabineros. Ante estos hechos sólo me cabe decir a los trabajadores: ¡Yo no voy a renunciar! Colocado en un tránsito histórico, pagaré con mi vida la lealtad del pueblo. Y les digo que tengo la certeza de que la semilla que hemos entregado a la conciencia digna de miles y miles de chilenos, no podrá ser segada definitivamente. Tienen la fuerza, podrán avasallarnos, pero no se detienen los procesos sociales ni con el crimen ni con la fuerza. La historia es nuestra y la hacen los pueblos."

Da História (II)

Da História (I)

quinta-feira, setembro 08, 2011

Gente gira - 5

Héctor Abad Faciolince (1958 -)
Imagem daqui

Desmamar-me da minha casa foi um processo morosíssimo. Aos vinte e oito anos, quando mataram o meu pai, eu ainda recebia, de vez em quando, ajudas dele ou da minha mãe, mesmo estando a viver há cinco anos com a minha primeira mulher e sendo pai de uma filha que já começava a dar os primeiros passos. Quando, aos vinte e três, fui atrás da minha namorada italiana, a Bárbara, para estudar em Turim, escrevi uma carta de preocupação por depender economicamente dele. Ainda conservo a resposta, com data de 30 de Julho de 1982 (eu tinha ido para a Europa quinze dias antes) que diz assim: "A tua preocupação em relação à dependência económica prolongada, fez-me lembrar as aulas de Antropologia, nas quais aprendi que, quanto mais avançada é uma espécie animal, mais comprido é o seu período de infância e adolescência."


Héctor Abad Faciolince
Somos o Esquecimento que Seremos
QUETZAL - série américas
2009

terça-feira, setembro 06, 2011

De um desejo confuso de açucenas *

Woman Reading, J. C. Leyendecker (1874-1951)
Imagem daqui


* Eugénio de Andrade, As Palavras Interditas

domingo, setembro 04, 2011

Já dizia a Gertrud Stein:


Put a sun in Sunday, Sunday.











De coisas que lembram outras coisas - 7

Imagem daqui

LAMENTATION OF THE BORDERGUARD

I do not want to be a borderguard, said the borderguard.
I don’t want to be a bodyguard.
I don’t want to be a guardian angel.
I don’t want to be a guide.
I want not to be a grinder.
I don’t want to be a garnet.
I don’t want to be a guerdon.
I don’t want to be a gaud.
But my own unwillingness is grinding and grounding me
and I’m standing on guard, in my own octagonal garden.


I don’t want to be a watchman, answered the watchman.
I don’t want to be a guardsman.
I don’t want to be a watchguard.
But my own unwillingnesss is watching over me,
standing alone, wavering in the wind.


I’m the door-keeper, observed the porter.
But nobody asked me
about my will.

Asraf Noor
An Anthology of Contemporary Women Poets
Valentina Polukhina and Daniel Weissbort (eds.)
University of Iowa Press
2005

Coniugare


George Hayter (1792 – 1871), Marriage of Victoria and Albert, 10 Feb 1840
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A menina Olga casa-se daqui a menos de duas horas. E o tempo dentro do tempo parece que volta para trás.

quinta-feira, setembro 01, 2011

Regresso ao futuro

Louise Fleckenstein, Rose Dance of the South, 1916
Imagem daqui

O ano começa em Setembro. Imprevisto e surpreendente, mas com a mesma revolução no estômago de toda a minha vida escolar, foi o meu regresso de hoje ao trabalho. Há quase seis anos que não tinha férias e portanto há quase seis anos que me tinha morrido o estômago e estes primeiros dias do ano. É bom sabê-los de volta.