Hoje que as mercearias levaram-me a apanhar o autocarro na Graça, entram na minha paragem três crianças. Uma loira, uma morena, uma preta. A loira de uns cinco anos, a morena de uns dez, onze ou doze, a preta de uns dez, onze ou doze. Entram em grupo, em grupo olham o motorista, em grupo se riem. Procuro nelas aquele riso disforme do medo que quase desculpa a audácia. Não encontro. Meia dúzia de segundos depois, o motorista solta furioso: "Três viagens, três bilhetes!" Elas saem.
Quando eu andava na Primária e comecei a ir para o Conservatório, certo dia, tendo perdido (ou sendo-me roubado na aula) o bilhete de autocarro do regresso, fiz os 3,5 kms de distância entre o Conservatório e a minha casa a pé. Cheguei tardíssimo, à hora do jantar, perdidas que estavam as duas horas para fazer os trabalhos de casa, e ainda tive que explicar o atraso e ouvir que para a próxima deveria ter mais cuidado e manter a carteira não debaixo de olho, mas comigo.
Do Panteão a Santa Apolónia, a reacção chocada do motorista fez-se sentir em todo o autocarro e prosseguiria em repeat. "Estes pais não dão educação nenhuma aos filhos, acreditas que" dizia ao telefone quando saímos todos.
É claro que há 25 anos atrás, as crianças tinham trabalhos de casa, que faziam em determinada hora do dia, preferencialmente antes do jantar, para poderem contar com a supervisão dos pais, com quem jantariam depois e conversariam sobre a jornada.
Esta mudança súbita da sociedade, este passado tão recente que passou tão depressa... Apesar dos vinte anos que nos separam, eu percebo o motorista.