quarta-feira, julho 19, 2006

No comboio (II)

- Biatiz, Biatiz, olha Biatiz! Eu vou com uma MENINA BONITA, eu vou com uma MENINA BONITA, eu vou com uma MENINA BONITA, eu vou com uma MENINA BONITA, eu vou com uma MENINA BONITA!!! Hi, hi, hi, hi, ehehehehehehh!
- ...
Era eu. A "MENINA BONITA" era mesmo eu... num sábado feio, de uma semana horrível de um mês ainda mais tenebroso.
Sábado fui a Braga. Claro que sabia que ao fim de semana os comboios escasseiam e demoram uma eternidade a chegar. Mas era urgente resgatar um cartão, absolutamente essencial para uma conferência, em que por acaso, posteriormente me foi literalmente negada a participação e frequentar um curso de verão que tchan, tchan, tchan, tchan... me impossibilitaram frequentar.
But first tinhgs first, na sexta-feira, véspera da minha viagem dormi pouquíssimo, o que por si só não é muito saudável. Mas se acrescentarmos a isto o facto de que a minha insónia advém sempre das palavras que ficam por dizer facilmente se percebe que o dia seguinte prometia. É claro que foi com os nervos à flor da pele que acordei, quatro horas depois de me ter ido deitar, a pedir aos céus e aos santos para vomitar ou me tirarem o estômago, que era prefeível não o ter a estar tão indisposta. Tomei banho em piloto automático e vesti-me com as primeiras três peças de roupa que tacteei no meio do breu do roupeiro que sei de cor. Tive sorte. A t-shirt e os jeans até combinavam. Depois, havaiana no pé e sempre a descer até São Bento. São sete horas da manhã e já está muito calor, talvez por isso as pessoas se arrastem pelas ruas, inexpressivas. Chego, sento-me no sítio do costume e tento preparar-me mentalmente para a odisseia de setenta e muitos minutos que tenho pela frente. Mas antes que pudesse pensar no que quer que fosse, de súbito, com o ímpeto dos conquistadores, ouço interiormente a voz da minha mãe que me atordoa, acompanha-me todo o percurso às marteladas, tantas e tão fortes que aniquilam por completo (pelo menos da minha consciência) o mal-estar do estômago: " Nessa figura? Para Braga, onde tanta gente te conhece?! Tu dantes não eras assim!Depois admiram-se por não coneguirem impor ordem na sala de aula? Então, se os próprios professores se vestem igual aos alunos? Tu que tens tantas (!) e tão boas roupas... bonitas Tu dantes não eras assim!"
Adiante, setenta e muitos minutos depois, amordacei a minha mãe e fiz o percurso que me parecia o mais curto, sob um sol verdadeiramente escaldante. Resgatado o cartão, depressa me dirigi à Faculdade picar o ponto (sim, ao sábado!), até porque tinha que fazer o download de umas boas dezenas de artigos, verificar o correio electrónico e procurar na estante do Orientador a gramática que ele aconselhara.
Aos primeiro seis artigos tudo corre na normalidade, mas o tsunami eviedente na caixa de entrada do correio, reflexo da estupidez do funcionalismo público e/ou do marasmo e atavismo do sistema era já um prenúncio do que aconteceria a seguir. Não é que o computador bloqueia, inutilizando - sabe-se lá como e porquê - a flash disk, e a gramática... procurei-a incansávelmente, vezes sem conta, na estante, em todas as estantes mas a dita ganhara asas e voara janela fora. Como me apetecia. Como qualquer pessoa normal na minha situação faria. Até porque a busca exautiva tinha feito a proeza de perder o único comboio rápido do dia.
Mas não. Sorrio e calmamente arrumo tudo. Ia dar uma volta pelo centro da cidade, ver pessoas e coisas bonitas. Tranco a porta e desço as escadas - como é triste e vazia a Faculdade ao fim de semana! "Vai tudo correr bem, até porque pior é um bocadinho impossível, não achas?" - repito o mais convincentemente que consigo para o meu ego. Esta era a Esperança primeira: auto-convencimento pela repetição. Nunca faz efeito, mas tento sempre. Já por isso é que lhe chamo "Esperança". A Esperança segunda é a de que inesperadamente encontre alguma assonância e ou aliteração e a partir daí arranjasse uma música que me entretivesse o espírito. A Esperança terceira (ou surrealismo puro) é a de que algo exterior e extrínseco me arrebate e arranque de súbito destas meditações ridículas. Saio porta fora" e em vez de ir "por aí pelos caminhos" dou de caras com a ex do ex, como sempre avant-garde e resplandescente que, a ver pelo olhar assassino que me lançou ainda se recorda da minha existência com o mesmo carinho com que há tempos imemoriais se auto-intitulou minha arqui-inimiga. Um dia destes tenho que lhe perguntar porquê. (Será que, quando a vítima não toma a devida atitude hostil, o prevaricador até disso a depaupera?) Preciso mesmo de saber. Mas, pior que isso foi encontrá-la mais duas ou três vezes, depois de ter acelerado e mudado o rumo.
Voei directamente para a estação. Era o melhor a fazer antes que algum raio ocular me dilacerasse por completo e postas, bifes, bifinhos e estilhaços fossem espalhados por toda a Bracara Augusta.
Outros setenta e muitos minutos de entretenimento puro, desta feita sem as maternais reprimendas, disputavam no meu íntimo a hegemonia com o cansaço que, lânguido, começava a tomar conta de tudo em mim. Sentei-me no lugar do costume. Estava vago. Além do que se sentou ao meu lado uma senhora não faladora. Ainda bem! Não é que não goste de falar. Gosto, aliás, mau hábito adquirido nos EUA: smalltalk. Mas neste sábado não estava com disposição para isso. E ou a senhora percebeu, ou não arranjou assunto (ou coragem) para me roubar à neura em que me encontrava.
Artigos... conferência... t-shirt... ex do ex... Curso de Verão.... jeans... ex... gramática... conferência... cartão... artigos... flash disk... t-shirt... ex do ex... computador... conferência... Efectivamente, a minha voz interior se havia libertado do jugo repressivo da minha mãe. O regresso da minha voz interior não me fora proveitoso. Preferia o discurso da minha mãe, além de me chamar à razão, era mais coerente!
Resultado: olhares perdidos janela fora, mundo fora, vida fora, por entre suspiros e sonecas.
Quarenta minutos depois do início da minha viagem senta-se bem à minha frente a Joaninha e respectivo Papá (trataram-se exactamente assim). A minha homónima tem quatro anos, sorriso fuschia e o encanto maroto e a irrequietude próprios da idade. É uma criança alegre, vivaça mas sobretudo muito feliz. Desafiadora, lança-me piscadelas, sorrisos marotos e olhares por entre as mãozitas que teimam em esconder-me o seu rosto traquinas. Não lhe resisto. Respondo-lhe em conformidade. Quase nem falamos, não é preciso. Quer sentar-se, quer estar de pé. Quer o colol do pai, quer sair. "É aqui Papá?" Quer sentar outra vez. Nova maratona de charme para comigo. De quando em vez, chama a irmã Biatiz e a Mamã para lhes acenar o bracito minúsculo e brindá-las com o sorriso mais singelo e mais bonito também. Quer o colo. Quer ir de pé. "É aqui, Papá?"
- Biatiz, Biatiz, olha Biatiz! Eu vou com uma MENINA BONITA, eu vou com uma MENINA BONITA, eu vou com uma MENINA BONITA, eu vou com uma MENINA BONITA, eu vou com uma MENINA BONITA! Hi, hi, hi, eheheheheheh!
Acho que a espontaneidade, a alegria, o próprio inesperado da situação (e o volume um pouco fora do normal) acordou todos os passageiros da área circundante - afinal a modorra era geral! - mas como Mamã que se preze quer sempre mais, há que perguntar quem é a "MENINA BONITA". E eu a rezar para ser a senhora que ia comigo... Mas não. O dedo indicador da Joaninha estava o mais possível na minha direcção para indisfarçável desconsolo da senhora que ia ao meu lado. E com um sorriso forçado, quase automaticamente me disse: "Aos setenta anos, já não se ouve disto!"
"Pois não...", pensei mas não disse. Estava a tentar fazer muitas coisas aos mesmo tempo: corando evitar corar, apagar a surpresa do rosto sorrindo, e sobretudo conter uma lágrima teimosa (e quase tão marota como a divertida Joaninha), disfarçando.
O comboio parou e por isso mandou a boa educação e a Mamã que a Joaninha dissesse adeus à "MENINA BONITA". Despedimo-nos. Até sempre!

2 comentários:

amarga disse...

:) por isso é que às vezes acaba por saber tao bem fazer viagens destas.

Sofia Monteiro disse...

Olá!
Respondi no meu blog à questão que me fizeste quanto à possibilidade de fazer uma outra tela de uma menina Joaninha Voadora. Entretanto decidi espreitar o teu blog e não resisti em ler o que brilhantemente escreves...foi compulsivo.
Das situações mais simples consegues descrever um ambiente cativante, tal como a história deste post...lá está: professora de português e está tudo dito.
Vou continuar a seguir este blog!
;)
Fica bem!
Sofia