Quando não me sinto velha, sinto-me distante de muita coisa. Como a Alice que não pode voltar atrás porque já não é a mesma. Começar a manhã a perceber que um dicionário vai estar na ordem do dia e nas bocas do mundo por uns bons tempos e pelas razões mais típicas deste país pequeno é coisa para me por a pensar na vida, pesando e sopesando opções.
Trabalho com dicionários amiúde. Um bom dicionário contém todas as palavras de uma língua. Por um lado, as palavras vivas, que impregnam a oralidade, que dominam a escrita, que surgem por imperativos tecnológicos, políticos, que servem o propósito da comunicação, etc.; por outro lado, as palavras que caíram em desuso mercê de mudanças estruturais, as que constituem testemunho documental e memória da evolução da nossa sociedade e da nossa mentalidade. Tenho uma opinião muito própria acerca dos Dicionários de Língua Portuguesa - faço notar o plural, pluralizei em consciência -; já fui professora, já fui aluna, quero ser mãe. Acredito que os palavrões possam ser um pesadelo para os pais. Acredito que os palavrões possam constituir, na mente de alguns professores, uma acha mais à indisciplina na sala de aula.
Na Primária, os meus pais compraram-me o dicionário que vinha no final da lista dos manuais - o Dicionário da minha mãe era um tomo, definitivamente não-transportável. Que me lembre, nunca abri o dicionário que os meus pais me compraram para a 3a. classe fora do âmbito escolar: nas aulas, quando assim era pedido em determinado exercício; em casa, quando o TPC o exigia. Era a melhor aluna e tinha uma predilecção especial pela área da Língua Portuguesa. Era também uma criança menos extrovertida e dinâmica que a generalidade dos meus colegas, dada aos meus pensamentos, reflexões e curiosidades pessoais - acho que foi só na pré-adolescência, numas férias de Verão, que descobri o valor lúdico do tomo da minha mãe. (Foi quando anunciei que iria decorar dez palavras do dicionário por dia.) Já minha irmã Teresa era o meu reverso: tocava às campainhas vizinhas e deixava-me a braços com a ira dos pais dos meus coleguinhas, subia as prateleiras dos arrumos, fazia da parede do quarto um quadro para desenhar, desaparecia para debaixo da mesa para comer doces à vontade e em sossego..., e, por isso, estou desde esta manhã ansiosa que chegue o final do dia para lhe ligar a saber se alguma vez andou à cata de palavrões no dicionário que, na sua 3a. classe, recebeu de mim.
Mas muito antes disso, por pura maldade, à minha irmã Teresa ensinaram no Infantário, ensinou a ajudante da Educadora, uma série de palavrões, interjeições, aforismos e quase diálogos, dignos de rivalizar com as bancadas por detrás da baliza do Estádio aqui a meia hora de casa. Escusado será dizer que os meus pais entraram em pânico, que os meus avós recusaram a ajuda no transporte de e para o infantário - a minha avó oferecendo-se para ficar com toda a gente, que tinha tempo e ninguém melhor que os avós -, escusado será dizer que se averiguaram responsabilidades, mas a Teresa acabou por ficar mesmo em casa, tal como ficaram os meus dois outros irmãos mais novos. E isso, se foi a melhor solução por um lado - efectivamente, afastada do local de "aprendizagem", acabou por se esquecer do "aprendizado", por outro lado, terá tido uma infância mais pacata do que a sua inteligência e surpreendente desenvoltura mereceriam.
Já dei aulas a turmas mais ou menos boas, mais ou menos más e terríveis. A turma mais terrível com que tive o prazer de trabalhar, orgulhava-se, disseram-me, de ter atirado para a Biblioteca uma professora absolutamente esgotada, a colega que fui substituir e que considero uma profissional a todos os níveis excelente. A verdade é que isso foi há algum tempo, hoje faço investigação e se o Ensino me continua a interessar é tão somente pela impressão de pouco futuro que me parece que legamos progressivamente, e mais ou menos conscientemente, aos vindouros. Em relação ao medo dos vulgarismos, do que vou lendo, das impressões que continuo a trocar com colegas, continuo firme na convicção de que a indisciplina tem uma única raiz: a falta de motivação. Ora, a falta de motivação radica numa série de factores (sócio-económicos, psíquicos, afectivos), porém, nenhum deles é remotamente próximo das entradas constantes num dicionário.
Fazer-se barulho porque consta do dicionário recomendado para o ensino básico, meia-dúzia de palavrões, a que alunos, pais e educadores estão expostos, abrindo uma janela, ligando a televisão ou no interior de um transporte público - na verdade, não é preciso ir a um estádio de futebol - parece-me dos absurdos mais deprimentes da portugalidade.
5 comentários:
É muito mais provável que um aluno do 1º ciclo ouça pelo menos um palavrão por dia do que abra o dicionário uma vez que seja no ano inteiro...
No entanto parece-me muito importante que haja um livro que lhe permita tirar as dúvidas sobre o significado das palavras que ouve na rua...
Entre um dicionário "com" ou "sem" palavrões escolheria o primeiro para o meu filho.
Anita,
Nem mais. :)))))
O grande problema é pretender-se pôr em questão a pedagogia e a didáctica de um dicionário enquanto instrumento de trabalho e conhecimento por conter meia-dúzia de palavrões.
Jinhos.
...aliás o tempo de se não dizerem palavrões ou palavras aparentemente ingénuas mas com o "peso" de palavrões, está há muito ultrapassado particularmente para uma certa élite social que,pelo contrário, os usa correntemente com uma desenvoltura que só a sua convicção de superioridade social lhe dá... Eu sei, eu conheço, Joaninha, e creio que já nem as pessoas da minha geração se chocam... Esta matéria daria até razão a um sério estudo socio-linguístico...
BJS.
Querida Maria de Lourdes,
Tem toda a razão, também. :))))))))
Jinhos.
Tão verdade. O pôr ou não põr as palavras em questão no dicionário não vai mudar aumentar nem diminuir em nada o seu uso. Concerteza que os miúdos não as vão aprender no dicionário. Caso as encontrassem e as aprendessem no dicionário seria muito bom; seria sinal que o dicionário era utilizado. :)
Enviar um comentário