quarta-feira, março 23, 2011

Coisas que lembram outras coisas - 2

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(...) Mas, do mesmo modo que uma série de acontecimentos que se afastam da mediania permitem que se faça com mais clareza a clarificação das normas do que é considerado como regra, esta história levou-me a compreender o sentimento amoroso em geral, na medida em que no amor, o outro - mesmo que não represente como neste caso Deus - é enaltecido de uma maneira quase mística tornando-se o símbolo de toda a maravilha. Amar, no sentido pleno do termo, é na verdade ser de uma exigência extrema para com o outro - e isto é inevitável tanto na simples embriaguez amorosa como na mais complexa das paixões. Por isso se espera que aqueles que foram "tocados" pelo amor "voltem" a eles mesmos a pouco e pouco, tanto por causa das necessidades da vida como por causa dos deveres que assumem perante o outro. Isto em nada impede que os implicados - os que estão tocados - sintam por esse estado em que se transborda de amor um sentimento único de gratidão, embora esse estado seja suspeito, criticável pelo lado da razão, transformado mesmo em "não racional" porque os seus critérios se opõem aos critérios habituais; e também porque ajuda ao aparecer do que para nós era o mais indispensável, o mais evidente antes que nos tivesse sido possível orientarmo-nos na realidade. O ser que teve o poder de nos fazer crer e amar fica no mais profundo de nós próprios o nosso Senhor, mesmo que mais tarde o venhamos a considerar como um adversário.

(...) A aparição violenta do sonho na realidade caminha a passo com a mais completa exigência para com uma outra pessoa; mas o ser amado não é na verdade nada mais do que o pedaço de papel que inspira o poeta a escrever uma obra, cujo conteúdo não tem relação alguma com o papel desse mesmo ser na vida real. Todos nós somos mais poetas do que seres razoáveis; o que somos no sentido mais profundo, como poetas, excede largamente aquilo em que nos tornamos - e isto não é uma questão de valor, é muito mais complexo, situa-se na necessidade imperiosa que a humanidade consciente tem de analisar o que a impele e deve permitir-lhe tentar orientar-se.

Lou Andréas-Salomé
A Minha Vida
Livros do Brasil
1991

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