quinta-feira, junho 28, 2007

Foi há oito dias.

Há oito dias, precisamente oito, percebi. Na última quinta. De aulas. De estadia. De Bélgica.
As pessoas são estranhas. A mais estranha de todas: eu. Obviamente.
As pessoas passam a vida a trabalhar, matam-se, literalmente, matam-se a fazê-lo. Não olham para trás, não olham para os lados, e até o olhar para a frente é um olhar cego. Demasiado cheio de nadas, grandes e pequenos, demasiado vazio do que é realmente importante.
As pessoas granjeiam reconhecimento, sobem na carreira, quase até ao topo, têm salários razoáveis, coleccionam relações, ganham uma família pelo meio, e um dia acordam. E acham que que a vida não pode ser apenas o que vivem e que os outros são prova disso.
As pessoas traçam então estratégias para, vivendo a sua vidinha, viverem em pleno. Desdobram-se. E os sorrisos chovem, e as fotografias multiplicam-se e as fãs, meu Deus, as fãs surgem de cada canto - as estratégias funcionam.
As pessoas querem tudo. Tudo de tudo. Todo o reconhecimento possível - trabalham para isso, todas as vidas possíveis, todas as fãs possíveis - e sobretudo a impossível.
As pessoas devem ver televisão e acham que o Impossible is nothing do anúncio é para valer. Se tudo fosse possível, não havia a palavra impossível. Os impossíveis existem. Fazem parte da vida, que é só uma: a que cada um escolhe, consciente ou inconscientemente, directa ou indirectamente, activa ou passivamente, para si.
As pessoas não vêem. Olhar cego, já disse. As pessoas não vêem, não ouvem, não entendem, não querem olhar o suficiente, ouvir o suficiente, falar o suficiente para perceberem o que lhes é dito. Confundem simpatia com interesse, cordialidade com disponibilidade, alegria com entusiasmo, genuinidade com exotismo...
As pessoas insistem no depois. No regresso a casa. Quando tudo já parece ter sido há milhentos anos-luz, num outro planeta, numa outra vida. A diferença é que agora a fala dá lugar à escrita - manda a distância que assim seja - e a escrita é clara, quase seca de tão impositiva: não é permitido olhar para o lado, repetir o pedido, servir-se da língua estrangeira para dizer que se não percebeu. E as pessoas percebem finalmente que o Impossível é real, concreto, e sobretudo definido. Existe. Mesmo.
Há oito dias envelheci bastante. E não foi por ter trocado a minha bela noite de descanso pelos copos que não bebi, as músicas que não dancei, as figuras - mais ou menos tristes, dependendo do sujeito em questão - que não fiz.
Foi só porque percebi que há pessoas que levam vidas muito vazias e não têm qualquer tipo de pudor em (tentar) arrastar os outros para esse remoinho.
Sei que não acontece só a mim, mas lá que há um padrão, há. Começa a haver. Very over the top.

quarta-feira, junho 27, 2007

Queixas

Left: A, my youngest sister; Right: Myself
A minha irmã T. queixou-se esta manhã de que só faço posts com a minha irmã A. A minha irmã T. tem razão em queixar-se. Mesmo agora quando procurava uma fotografia dela, sozinha ou só comigo, para um post comme il faut, apercebi-me de que não tinha comigo *a* que queria. Mas tinha esta, com a minha irmã mais nova, a A.
A minha irmã T. é um dos seres humanos mais perfeitos que conheço. Amo-a mais que à vida, de resto como amo a A. e o N., e isso exige um post perfeito.
A minha irmã T. nunca se queixa. Mas fê-lo hoje. Coisas que só o estudo para o exame da especialidade pode explicar. A minha irmã T. vai ter um ou mais posts neste blog, mas um já tem dia marcado e estrutura e temática bem delineadas. Este não é o post da minha irmã T. Este é o post das queixas.
Se as queixas da minha querida irmã T. se reduzem a este meu cantinho, as minhas não - as minhas queixas são profundas, estruturais, abrangentes, universais! As minhas queixas começam sempre nos outros e acabam sempre em mim. Porque, no fundo, no fundo, a culpa é mesmo minha. O denominador comum é um só: eu própria - dizem-me os meus.
São os livros que desapareceram - estão fora do sítio, Joana, é só isso. É a roupa que está na cadeira e... eu não gosto - sem palavras, Joana, nem comento. São os mais novos que tiveram algum problema grave, se não já estavam cá connosco há que tempos - estão atrasados , Joana, atrasados, é normal. É a comida que não existe, como é que se consegue ser vegetariano aqui, se fosse nos EUA... - já se vai resolver isso, Joana, Portugal não é os EUA, mas também não é o Sahara. São os amigos que morreram para o mundo - estão longe, a trabalhar, Joana, daqui a nada temos os nossos almoços e os nossos serões de volta. É o Doutoramento que parece inefável - é normal nesta fase, Joana, e vai ser recorrente, prepara-te.
É eu querer SEMPRE ir por acolá, quando TODA a gente quer ir por ali.
Sou uma pessoa difícil, braba - disseram-me há dias. (Quando contar o episódio da "braba" à minha mãe, além de a ter que a ouvir, terei que a ouvir rir-se, comigo de mim, por uma eternidade que ecoará uns bons tempos na minha cabeça.)
Hoje, quando uma das nossas amigas foi irmã (diz-se assim?) pela primeira vez, aos vinte anos, apercebi-me do quanto a primogenia nos molda o carácter, do quanto me queixo, eu de tudo - deles também, muito mais do que os meus irmãos, alguma vez, de mim. Quando o deviam fazer!... Com muito mais razão.

terça-feira, junho 26, 2007

Era tempo de escrever

Emiliana (Itália), Eu (de coração apertado), Evy (Grécia) Bélgica 22/06/2007


...já. ... por aqui.


Vai para quase uma semana desde a última vez. E na Bélgica. Onde tinha muito pouco tempo para o que quer que fosse.
Voltei. Com o coração apertado, pesado, e uma sensação triste de vazio que não consigo descrever melhor. Nem quero. (Deixei, sem querer, um bocadinho de mim lá. E, se bem me conheço, vai levar algum tempo até ser eu novamente.) Coisas que acontecem. Voltei. Com duas noites por dormir e mais peso do que a escoliose natural que todos temos suporta. Voltei. Por Lisboa. Porque a vida na sua essência é inefável. E boa. Voltei. Visitei uma Amiga. Tenho a certeza que de sempre e para sempre. Porque há coisas que não se explicam, as melhores coisas não se explicam, são como a rosa de Silesius, bela sem porquê. Algumas coisas são fáceis, simples e naturais. São as que permanecem. Inexplicavelmente. Para sempre.
Voltei. Consegui o último lugar no expresso que queria para o Porto. O lugar número 3. No 4 sentou-se o Filipe. Vinha de longe, do Algarve. "Ah sim? Pois eu venho de ainda mais longe." "De onde?" "Da Bélgica!" "Nunca fui à Bélgica..." "Mais ainda vais a tempo, quantos anos tens?" "13." "Pois. Isso é metade da minha idade, por isso, como vês, tens imenso tempo pela frente para ires à Bélgica e a todos os sítios que queres conhecer." Foi assim que soube gostava de conhecer a Austrália e de visitar a Grécia. Gosta de História, "... sobretudo da Idade Clássica." Foi assim que soube que ia passar as férias para a casa dos avós, em Braga, onde têm galinhas e porcos e até duas ovelhas. Foi assim que soube que terminou agora o oitavo ano e pratica basketball e natação, a níveis profissionais. Quer ser médico. "A minha irmã acabou este ano o curso. Um curso muito bonito, muito digno, mas muito trabalhoso também. Mas não te preocupes, tu tens ar de quem foi talhado para isso. De resto, tal como a minha irmã." Foi assim que soube que nas férias em casa, no sul, vai para a praia com os amigos e para o pontão - de onde pretende saltar este ano - e para o bar do pai de uma das amigas e diverte-se e gosta e à meia-noite está em casa. E o Verão é a melhor altura do ano! Foi assim que soube que tem uma irmã que o ensina a tocar guitarra, mas não lhe permite aproximar-se sequer na guitarra eléctrica, razão pela qual tem que experimentar baixinho uns acordezitos quando ela não está. Percebi ainda que tem com os pais uma relação de proximidade pouco comum. A mãe telefona-lhe de hora em hora a perguntar se já comeu e a pedir-lhe para não sair do autocarro. O pai ensinou-lhe a gostar de Pearl Jam e de Metallica; de Blasted Mechanism e Incubus e Red Hot aprendeu sozinho. "Gostas muito dos teus pais, já percebi." "Sim. A minha mãe fala muito comigo e leva-me a almoçar com ela quase todos os dias. O meu pai é que me ensinou a História do Rock, temos lá em casa uma data de enciclopédias sobre isso, e deixa-me ouvir a minha música na aparelhagem dele. E vamos os três, eu, a mãe e ele, ao Super-Rock ver os Metallica." "Muito bem. Já percebi que se dão todos excelentemente. Ainda bem." "Eles já estiveram separados..." Tinha que acontecer. De uma maneira ou outra acabo sempre por tocar nas feridas das pessoas e sempre sem querer. "Pois. Mas isso actualmente é muito comum". Objectividade, objectividade acima de tudo. A objectividade, por ser tão impessoal, não magoa. "O que não é comum é após isso, refazerem a vida, um com o outro, e aparentemente tão bem. Não é?" "É." Ufa! Acho que consegui. Depois, tinha que comer. Os atletas têm horas certas para comer. Queria partilhar a merenda comigo. Expliquei-lhe por que não podia ser. Falámos longamente de vegetarianices. "Na aula de inglês lemos um texto onde três pessoas falavam das razões porque tinham optado por ser vegetarianas." Obriguei-o a comer dos chocolates que trazia para a minha família. "Vá, mais um. Assim chegas a casa e já podes dizer que comeste chocolates belgas!" "Só mais um, o terceiro é o último. Estou em férias, mas não me posso descuidar." "Está bem, um de cada." E por fim estivemos os dois a ouvir Blasted e Metallica. Porque ele queria converter-me aos Metallica. Fez um óptimo trabalho - devo admitir. Chegados ao Porto, num ápice, na viagem mais super-sónica da história da minha vida, queria dar-lhe um abraço e um beijinho e tirar-lhe uma fotografia. Para mais tarde recordar. Mas não. Melhor não. Optei por: "Filipe, gostei muito de te conhecer. Esta foi a minha melhor viagem: mais rápida, mais interessante, mais divertida e agradável, graças a ti. Obrigada. Umas boas férias e um bom regresso às aulas. Ah, e nada de saltar o pontão. Vidas perfeitas estragam-se por causa de momentos assim... de pura adrenalina." Riu-se. "Também gostei muito de a... te conhecer. Bom São João!"

Primeira coisa quando cheguei a casa: "Conheci um miúdo no autocarro de quem seria uma honra ser mãe. Passei uma manhã maravilhosa com a M.L. Até me tinha preparado um brunch! Começámos a conversar e nem demos pelo passar das horas! E quase me esquecia: Tenho saudades da Bélgica... acho." Fartaram-se de rir. Os meus irmãos. Por isso também começo a perceber um pouco as pessoas que passam por aqui e reviram os olhos e acham este cantinho absolutamente surreal(ista). No entanto, acreditem ou não, é verdadeiro - e sentido - tudo o que escrevo. Porque sou uma privilegiada - cada vez mais tomo consciência disso. São excepcionais as pessoas que surgem na minha vida.

quarta-feira, junho 20, 2007

Ainda faltam dois dias...

... mas as saudades já apertam.

terça-feira, junho 19, 2007

Quando o conhecimento ocupa lugar

A minha avó costumava ouvir um programa de rádio a cargo das Irmãs Paulinas chamado “O saber ocupa lugar”. O título do programa de divulgação de literatura religiosa dessa mesma editora assentava portanto na contradição do adágio “O saber não ocupa lugar”. E ainda tinha o mérito de possibilitar o trocadilho da estação de rádio: “O saber ocupa lugar aqui no PEF, não sei quantos AM, outros tantos FM, todas as terças-feiras às dez horas da manhã com a Irmã X.”
“O saber não ocupa lugar”. Percebo perfeitamente o provérbio popular, quanto mais conhecimento se tiver/cultivar, melhor para nós, para o futuro, sobretudo dos mais novos. Sim. Até concordo.
Mas o saber ocupa lugar. Reafirmo. Há um espaço limitado para armazenamento do saber. Creio. Ou antes, segundo a actual compartimentação do cérebro – ou seja, de acordo com o que conhecemos actualmente – a área da memória difere da das emoções, que difere da da aprendizagem, que difere de outras tantas. Existe portanto uma área mais ou menos especifica para cada tipo de informação a processar pelo cérebro, o que me leva a pensar se o “espaço em disco” não será efectivamente limitado, advindo do extravasamento desse “espaço” (em disco) reservado para cada área, as depressões, os esgotamentos, as obsessões, os complexos, os comportamentos anti-sociais… etc. Enfim… teorias minhas.
Tenho uma amiga que se pergunta constantemente como é que atrai pessoas tão emocionalmente complexas para o seu grupo de amigos, quando ela não o é de todo. Não percebo porque se questiona. Já lho disse. Acho que todos atraímos aquilo de que (mais) temos medo. Sempre.
Pessoalmente, atraio para o meu grupo de amigos pessoas muito diversas. Ainda não percebi bem qual o critério, qual o denominador comum. Suponho que é por considerá-los todos (note-se que são poucos) boas pessoas. Mas, de algum tempo a esta parte, também pelas funções que exerço, dou-me com uma série de pessoas com peculiares características comportamentais que têm, todas, em comum o facto de serem extraordinariamente inteligentes. Pessoas que lêem vinte jornais de grande tiragem (como o NY Times, o El Mundo, o Le Fígaro) online diariamente; que têm conhecimentos suficientes para comparar a política do Médio-Oriente, pasta ministerial por pasta ministerial, com a dos países nórdicos; que sabem de cor toda a rede viária dos EUA; que conhecem a fauna e a flora da Nova Zelândia; os escândalos político-económicos de países como o Burquistão e afins. Pessoas com formação na mesma área que eu. Pessoas admiráveis. Pessoas que só dormem quando têm tempo. Saber mais é que é realmente essencial. Pessoas que só tomam banho quando se lembram. Pessoas que conseguem fazer um trabalho de semanas ou meses, numa ou duas noites, em que trabalham non-stop. Pessoas que olham para todos os sítios possíveis e imagináveis excepto para a cara do interlocutor. Pessoas que falam muito rápido, coçam a cabeça, o pescoço, o braço. Pessoas com uma agitação interior profunda. Pessoas de que gosto muito, admiro sobretudo. Pessoas que percebo. Pessoas que investem demasiado em determinadas áreas em detrimento de outras. Não porque achem que isso lhes é suficiente para se imporem nas outras, não. Não creio. São boas pessoas. Realmente boas. O saber tem uma imensa bondade subjacente. Cada vez mais me apercebo disso. As pessoas mesquinhas são as mais pequeninas. Em saber também. Como alguém que me disse que ia desistir de uma aula porque o professor é… Mas, … ele sabe tanto! Disse eu. Sí, mas és tan abhorrido!
Que justificação tão ridícula. Pensei. Somos tantos os aborrecidos, lentos, monótonos, nestas áreas! Por questões de personalidade. Por questões de prioridade. Somos, são, somos, és, é, sou, somos. É. Assim. Como com os meus amigos, os que atraio agora e com quem me dou. E gosto. Falam de tudo. Mais ou menos interessantemente, mais ou menos monotonamente. Mas nunca lhes reconheci qualquer tipo de subjectividade maldosa. O saber enciclopédico que alojam é tendencialmente objectivo. Encantadores, apesar de e sobre tudo.

domingo, junho 17, 2007

O único problema do B.

Eu gosto do B. Já devem todos ter percebido. Aí. Cá, as pessoas têm como certo que nos conhecemos há muito tempo, que somos uma espécie de amigos de longa data. Por acaso não somos, mas também explicar-lhes isso parece-nos ridículo e portanto as coisas são como são e nada mais.
Ontem finalmente fui conhecer a cidade. Tive tempo. Também tive sono. Por isso reparti o dia entre uma e outra actividade. Acordei mais tarde e dediquei a manhã, bem o dia, até as quatro da tarde, a explorar esta cidade, pequenina, mas muito bonita, com cheiro a orvalho, flores e frutos e crianças pequenas e alegres. Às quatro estava exausta, possivelmente porque o périplo pelos mercados e pelos monumentos tinha deixado um escasso par de horas, mais do que isso se calhar, para ver lojas e procurar prendas.
À hora do lanche, quando já tinha tudo visto e comprado, lembrei-me do almoço que me tinha passado ao lado. E então fui comer, porventura demasiado - porque fiquei cheia de sono. Fui dormir, claro! A chuva lá fora também não era especialmente convidativa...
Acordei às sete – bem à hora do meu passeio vespertino diário, a pé – com alguém que tinha pejo em abrir à força uma porta vizinha, resultado: batia à porta com a força que toda a intenção de arrombamento tem. Despertei. Sobressaltada. Olhei as horas, levantei-me, fui arranjar-me para o dito passeio. Entretanto, entra alguém no quarto, uma nova colega, com quem falei ainda um pouco; muito genuína, muito simpática, e a quem deixei pouco depois. Porque estava na hora do meu passeio. Porque queria que ela se instalasse à vontade. Ela insistia que não era necessário. Mas é. Eu teria gostado que me fizessem o mesmo.
Vou. Já não chove, mas está fresco, demasiado fresco para o casaquinho de manga curta que tenho sobre o top. Enfim..., pensando já onde é que havia de ir – agora já conheço tudo! –, pensamento nas nuvens, cabeça no ar e sorriso (típico destas alturas de intrsopecção) naturalmente apalermado, quase embato de frente num sorriso conhecido: era o B.
O B. e o respectivo clã. E a irmã. Apresentações da praxe, a mulher do B. é adorável, a irmã também muito simpática, “Vem comer connosco!” “Não.” “Porquê?” “Porque não quero incomodar, é um jantar de família, é melhor não.” “Vem. Nem a S., nem a minha irmã falam Português, mas tu falas inglês, anda.” Fui. Para surpresa dos filhos do B., que são como eu com a idade deles, muito envergonhados. (Ainda assim, acho que era mais…) Os miúdos vêem, se calhar pela primeira vez na vida, alguém que não conhecem, sem cabelos loiros e a falar outra língua e ... desconfiam, naturalmente.
O B. vive num duplex, a menos de cinco minutos de mim – descobri ontem, tem um quintal na parte de trás onde há um escorrega e baloiços para os miúdos e onde têm uma mini-horta – de onde a S. foi buscar menta para fazer o chá mais delicioso que bebi nos últimos tempos! Tal como eu, a S. e o B. são vegetarianos, por isso, felizmente, a comida não foi um problema. A irmã do B. não é, mas os dotes culinários da S. conquistam qualquer um. A lasagna estava divinal!
Eles têm uma rotina engraçada com os bebés. Os bebés são o M. e a R. O M. tem cerca de três anos, a R. um e meio. Primeiro comem os bebés. A R., cookie monster, segundo um B. babadissimo, está a deixar as bolachas, senão daqui a nada não consigo pegá-la ao colo. Risos. Não consegui evitar. O M. está bem, mas também acho que tem muito apetite, não pode comer tudo o que quer. Quando a R. acaba o leitinho, o B. vai dar-lhe banho e pô-la a dormir. Quando finalmente conseguimos esconder as batatas fritas do M., a S. vai dar-lhe banho e pô-lo a dormir. Antes disso, beijinho a toda a gente. ... Exactamente como nós, quando éramos miúdos...
Bebés a dormir, adultos na conversa. Descobri que a S. dá aulas numa escola a sessenta quilómetros daqui, o que o B. considera de demasiado longe de casa. Descobri que o namorado da irmã do B. é angolano, planeiam ir a Lisboa um destes verões, planeiam mesmo ir viver para Angola porque ele quer regressar. Descobri que a irmã do B. trabalha numa ONG e vai para a África do Sul no Outono, e no entanto, quando chegar a altura de ir viver para Angola, estará disposta a trabalhar no que quer que seja. Antes de partir para a África do Sul vai haver uma festa de despedida, com todos os amigos e familiares próximos. But the thing is, I know B. and he’s the kind of person that never forgets a story and goes to the person with whom that happened and says: So you are the one that… My sister told me… And guess what, it’s deliberate, just for a laugh, just to make me feel uncomfortable! Percebi, mas achei graça. B. is like that, actually that’s B.’s only problem. – acabou por concluir a S. Assenti. Sorri. Mas não disse nada. O único problema do B. Fiquei a pensar. O único problema do B. O senão – afinal é mesmo só um! – do belo do B.
Há uma menina no Oriente que é considerada uma divindade na sua terra-natal e foi recebida nos EUA como se do Dalai-Lama se tratasse porque tem, aparentemente, “trinta e duas perfeições”. O B., e isso vejo, sinto e vivo todos os dias, têm n-1 perfeições. E quando esteve nos EUA passou pela alfândega como toda a gente, viveu com a família num condomínio de estudantes como toda a gente, aqui anda de bicicleta como toda a gente, fala e ri com toda a gente, almoça com toda a gente, fica até mais tarde se for preciso, por toda a gente. E tem que dormir como toda a gente, trabalhar como toda a gente, viver como toda a gente.
O que acontece é que o B. quando fala sorri, quando trabalha esclarece, quando ensina orienta, quando apresenta sorri, esclarece e orienta, quando anda com os filhos às cavalitas ou aos beijos transcende-se, quando está com a mulher fica pequenino e isso… tão completamente, bem, como poucas pessoas que conheço.
Soube-me muito bem o jantar. Soube-me. Pela vida.

sábado, junho 16, 2007

E ja passou

... uma semana.

Se a proxima passar assim depressa, vai custar-me partir. Tenho a certeza. No entanto, prometo aqui solenemente deixar as saudades todas para depois do Sao Joao!

O que e que ha de tao importante em Portugal daqui a uma semana que nao podes regressar no Domingo ou na Segunda?

Fartam-se de me perguntar. Com uma semana de antecedencia. Percebendo, nao entendo a pergunta; assim como eles, percebendo, nao entendem a resposta. Inicialmente tentava explicar. Agora ja nao. Escuso-me.

A Linguistica e uma coisa fantastica!

sexta-feira, junho 15, 2007

Aviso

Aparentemente as insonias entraram de ferias, por isso - e porque nao tenho quase tempo nenhum - passarei a escrever menos.

Se conseguir as certas, postarei algumas fotografias. (As dos filhos do B. estao loiramente, azulmente, belgamente... lindas!)

Nao vejo a hora de saber mais do que ja, nee, kopieren, aanmelden, afmelden, maken... talvez este fim de semana, se nao sair... enfim!

terça-feira, junho 12, 2007

Dia 3

As pessoas, como elas sao.

O dia 3 foi hoje. Nao sei quanto tempo trabalhei, mas estou exausta.

Nao ha muito para dizer. Se descrevesse as aulas a historia seria outra, mas as aulas nao sao
para aqui chamadas...

As meninas do accueil ja me sorriem. Mais. Acho que por causa do B. Pelos vistos amigo do B. e amigo de toda a gente, delas tambem. (Eu que nem sabia que era amiga do B.)

Ja conheco a seccao mediterranea do curso: italianos, gregos, turcos, uma galega emprestada... Para nao variar dou-me melhor com os daqui, espalhafatosos q.b., muito trabalhadores, conversadores, mesmo simpaticos.

Conheci uma rapariga de Teerao, absolutamente fantastica.

A maior parte das pessoas daqui percebe as minhas piadas. E ri-se com elas.

Dia 2

Dia dos favores e dos sorrisos

Manhã cedo levanto-me, banho tomado, roupa vestida, corro. Desço para a cozinha, agarro um croissant, deixo a chave em cima da mesa – como combinado, pego num cartão – para mais tarde recordar, puxo a porta para fora, subo a rua, atravesso para o outro lado, não corro porque o peso da minha mala puxa o meu lado direito para baixo, o do computador – mais leve mas ainda assim pesadíssimo – o lado esquerdo. A pensar na escoliose que andar muito assim não fará, perco-me. A rua onde me encontro está em obras, a paragem de autocarro que me certifiquei que havia, e onde era, tinha desaparecido; transportes alternativos (metro, táxis) nenhuns, cabines telefónicas, nada – o tempo a passar, o comboio a passar ainda mais rápido na minha cabeça – comércio aberto – para telefonema de urgência – uma única pastelaria. Será que as pastelarias de cá são como os cafés em Portugal – têm sempre um telefone a um canto do balcão para situações como a minha, urgentes e (quase) desesperadas?! Não. Não têm. Telefone. Mas o cheirinho a manteiga e a açúcar e a forno quentinho abre o sorriso (e o apetite) a qualquer pessoa. Foi com esse sorriso que entrei e “Bonjour Monsieur!” Oops, saiu. E o meu Orientador que foi incansável em me avisar para não falar francês – alguns deles têm uma aversão assinalável aos franceses, ainda a prejudicam.
Favor um: Devo ter tido sorte. O rapaz da pastelaria era árabe e não me pareceu ter qualquer problema com a França. Aliás, quem tinha um problema era eu. “Est-ce qu’il y a un téléphone prés d’ici d’ òu je peux appeler un táxi?” Não. Não havia. Já disse. Nem perto, nem ali – disse-me o rapaz, a modos que surpreendido e simultaneamente divertido com a situação em que me encontrava. “Mais atends, je reviens.” E desceu para as profundezas, suponho que o grande forno do estabelecimento, sorriso largo, semblante desperto, sem qualquer réstia de sono às sete da manhã. Voltou. Com um grande tabuleiro de pão acabadinho de fazer nas mãos, o mesmo sorriso e o telemóvel dele, para mim, número marcado e tudo, ao ouvido, enquanto não chegava ao meu pé. Depois de uma universal eternidade à espera, lá atenderam. “Óu sommes nous?” Ele disse-me. Repeti igualzinho – embora sem perceber. Ça n’existe pas! Plim. Desligaram. “C’est pas vrai, je vais essayer moi!”. Tentou, tentou, tentou… mas ninguém o atendeu. Disse-lhe para desistir. Às vezes é preciso. É o melhor. Que fosse o que Deus quisesse. “Alors, combien je vous dois?” Não havia maneira de permitir que eu pagasse. Fiquei envergonhada. Agradeci o gesto, mas comprei, sem qualquer tipo de necessidade, especialidades da casa num valor aproximado. “Mais tu vas óu?” “À la Gare de…” “Ça c’est facile: monte lá, tourne à droite, et voilá.. metro diréccion …” Monte, droite, direccion. Direcções. A minha especialidade. “Ah oui? Merci, Monsieur. Au revoir. Tentei. Como era de esperar, não consegui. Mas encontrei um táxi na subida. “Êtes-vous en service?” “Non, mais je peux pas, óu allez vous, MAdemoiselle?” (Inicialmente para a paragem do autocarro que desapareceu, para o metro ainda há pouco, para o comboio daqui a nada…) Para … - o sítio dos encontros. É suficientemente longe, perdão: rentável, para o fazer mudar de ideias. “Bom ce qui se passe, c’est que je viens de travailler la nuit et je vais rendre le táxi à mon collegue. Mais attendez.
Favor dois: “T’es pas prêt? J’ai rencontré une demoiselle qui a besoin d’aller à… Je te l’amenerais en dix minutes. Sois prêt. Sois prêt!” Vira-se para mim, mas não em discurso indirecto como eu estava a prever: Mademoiselle, mon collégue habite tout prêt d’ici, je peux vous y amener, c’est tout prés de l’église de… - ia explicando o senhor, cheio de cautelas, já que, efectivamente, se tratava de uma situação pouco comum. Porém o tempo continuava a passar, o comboio estava praticamente perdido e eu também – estaria – se não aproveitasse este pequeno milagre. Não fui irracional, porque nunca sou, e as pessoas inspiram-me sempre, bem ou mal, à partida. Este senhor, inexplicavelmente, inspirava-me confiança. Acho que tem a ver com o discurso. As palavras dizem sempre muito acerca de nós. O “vousvoyer” e o constante “demoiselle” do senhor indiano não me pareceram de risco. Em menos de cinco minutos estávamos em frente à igreja, em menos de nada chegou o colega. Agradeceu o serviço (longo) ao outro, que tratou com amizade e sem formalidades – o que me surpreendeu porque sendo este francófono, não se comportou como a maioria dos franceses com os emigrantes – e deixou-o em casa, também. Mais, só depois disso ligou o taxímetro, que eu reparei bem. Voámos pela auto-estrada, o que fez com que chegasse à hora prevista. E isto apesar de me ter esquecido de imprimir a minha reserva com o endereço do sítio onde estou e respectivo número de telefone.
Favor três: “Pas de probléme, j’appéle aux renseignements.” Com o nome, ainda que “macarronificado” por moi-même chegou-se ao número de telefone, com isso se ligou para saber a morada detalhada a introduzir no gps – melhor invenção humana depois da roda e da nimesulida (para as minhas amigas dores) – que nos deixou lá em minutos. Levou das gorjetas mais agradecidas da minha vida. Espero que a partilhe com o senhor indiano.
Nova correria: deixar a mala, check-in para mais tarde, receber mapa da cidade (nem sei bem para quê), correr até ao banco, voltar, atravessar a rua, o túnel, descobrir a estação, rezar para o autocarro ainda não ter saído, descobrir os cais, não encontrar *o* cais, perguntar a um transeunte se se pode comprar bilhete no interior do autocarro, descobrir o cais, chegar o autocarro, entrar, comprar, sentar, querer dormir, não poder, estar atenta à paragem para sair, chegar, correr até à entrada, faltam vinte minutos, faltam vinte minutos para o fim, chegar, registar-me, curiosamente sem fila nem demoras. Enquanto me registava, amargo de boca conhecido, já me tinha esquecido o quanto é difícil para um povo do norte da Europa ser abertamente caloroso. Estas meninas do accueil… só com algum esforço, da minha parte, é que esboçaram um projecto de sorriso. Sentar. Querer descansar. Olhar janela fora, descobrir nos bosques quatro tonalidades de verde e duas de bordeaux-violeta, na folhagem das árvores, descansar finalmente, senão o corpo, o espírito. Quase adormecer. Melhor não, ainda tinha trabalho para fazer. E calhava bem ultimá-lo antes de começar as aulas. Trabalhar. Soprar o sono para longe, para debaixo das árvores.
Acordar do trabalho com um “Olá!” vindo de cima. Responder, olhando para lá com a cara típica do quem-és-tu-que-aqui-ninguém-fala-português-nem-sequer-me-conhece-e-já-devo-estar-corada-de-tão-envergonhada. Estende-me a mão: “Sou o B.” Sorri-me. Sorri-me como eu queria que tivessem sorrido as meninas do accueil. Bem, talvez nem tanto. Sorriu-me como se fossemos amigos desde há séculos e eu lhe tivesse batido à porta, meio perdida. Ganhou-me aí. Os sorrisos são importantes.
Na realidade não somos completamente estranhos. O meu Orientador arguiu a tese dele o ano passado, e claro deu-me um exemplar a ler. Também é por ele que estou cá: apesar de ter tido conhecimento ainda nos EUA, assim que cheguei em Janeiro, já o meu Orientador tinha um mail dele a convidar-me a vir. Porque está na organização já trocámos uma data de mails. Mas não fazia ideia quem ele era e não percebi como sabia que eu era eu. (Deve ter falado com as meninas do accueil.) Foi simpático. Não estava à espera. Não por não ser simpático, a segunda palavra que o meu Orientador mais usa para falar do B. é “prestável”. Qualquer problema já sabe, diga ao B. Já lhe mandei um mail. Foi por isto. O meu Orientador é muito paternal e deve ter dito ao B. o que a minha mãe disse a todos as nossas professoras primárias no primeiro dia de aulas das nossas vidas: “Deixo-lhe aqui a minha encomendinha. Trate bem dela.” Ainda hoje me lembro disto. Posto isto, o B. fez o que lhe competia. Mas a minha surpresa vem da palavra que o meu Orientador mais usa para falar do B.: tímido. “O único problema do B. é ser tímido.” Nunca percebi porque é que na interacção, absolutamente profissional, comigo que sou das pessoas mais tímidas que pode haver – especialmente com algumas pessoas –, isso seria um problema. Por isso tentei sossegá-lo, embora admita que não da melhor forma: “Professor, eu também sou tímida e por isso não vem nenhum mal ao mundo.” “Pois, lá isso é.” Não percebi. Desconcertante.
Mas o B. continuava: “Cansada?” (Ui, notar-se-á assim tanto?) “Um pouco.” (Tímida. Pois sou.) “A viagem deve ter sido longa!” “Nem por isso, duas horas, não mais.” Riu-se. Não percebi. “Está a perceber tudo o que lhe digo?” (Os nossos mails foram todos em inglês.) “Sim, perfeitamente. Percebo Português através do Espanhol mas entendo-te bem.” “Ainda bem. O meu Orientador manda os seus melhores cumprimentos.” Voltou a rir-se. “Está bem, até breve então.” “Até já.” E voltei ao trabalho até a bateria ter acabado e eu ter descoberto que precisaria de dois metros de homem e um peso equivalente para conseguir ligar o cabo do meu computador à corrente. Favor tres: “Hi again, could you help me with this? I can’t plug it in.” O B. riu-se. Desta vez percebi porquê. “Peço desculpa, saiu-me, estava a ler um artigo em inglês.” “It’s ok.” Riu-se e voltámos novamente aos nossos afazeres. Daí a nada o meu bem português estômago alertou-me de que seria hora de almoço. Aí. Aqui não. Mas como já não me conseguia concentrar fui para o jardim apanhar sol. Acho que adormeci por momentos. Acordei com alguém, ao longe, a observar-me sorridente. Depois foi o almoço e a aferição do primeiro nome de toda a gente pelo B. – que mania do último nome têm estes francófonos: ninguém assina com o primeiro! – Yours I know, Joana. Foi a minha vez de me rir.

E ficar a pensar se a densidade de pessoas prestáveis, mais ou menos sorridentes, não será maior neste país.

Dia 1

Dia das rosas mais bonitas do mundo que fazem chorar, da Catedral das praças e das esplanadas, do soninho na espreguiçadeira, do melhor e do pior desta cidade.

Quando fui estudar para Paris estava apaixonada, agora que penso nisso deve ter sido a paixão mais fraquita que tive por alguém, mas, ainda assim, era o suficiente para, sempre que estava num sítio bonito, quase sem querer, dizer dentro “Quem me dera que o … estivesse aqui. Um dia hei-de mostrar-lhe isto tudo!” Não sei se ficou dessa situação ou tem a ver mesmo comigo, ou com a Humanidade – creio que todos somos assim: dar a conhecer ao maior número de pessoas aquilo que se ama, seja isso uma religião, uma teoria filosófica ou somente um livro de um bouquiniste à beira do Sena, o senhor dos cachorros e dos pretzels na esquina do Central Park com a Casa Frisk ou uma dúzia de espreguiçadeiras num jardim em frente a uma Catedral. Ainda agora, quando vou a qualquer sítio, continuo a pensar mostrá-lo a alguém. Sempre. É engraçado.
É engraçado. Especialmente pelo que me custa chegar a algum lado. Trabalho digno de Hércules para quem descobriu há dias que não distingue a esquerda da direita, a (indicação de) subida da descida, o norte do sul. Daí as milhentas vezes em que me perdia, sem perceber nunca como, quando vivia em Paris, daí a minha permanência forçada na linha F do metro em NY durante uma hora (em que apanhava sempre o que ia para a mesma direcção) para desconsolo e preocupação de quem estava à minha espera à saída do metro, porque contigo é melhor assim, nunca fiando. A tarde de compras no Soho resumiu-se a horas e um muito necessário e tardio, mas delicioso, almoço às cinco da tarde. Mea culpa.
Hoje conseguiu ser pior, a minha inaptência geográfica: quando devia subir, desci, que é sempre o que faço, porque leio ao contrário as indicações dos mapas, ou melhor leio bem, processo-as é ao contrário. Desci. Cheguei a uma zona estranha, escura, suja, malcheirosa, em que toda a gente olhava para mim como a carta fora do baralho. Sou estrangeira, claro, mas vim aqui do lado, não dou assim tanto nas vistas. Os senhores, as senhoras e as meninas indianas acharam que sim. Os meninos não, até me mandaram a bola de futebol, eu é que estava com demasiado sono para ter reflexos (e força) para a mandar de volta. Termino o périplo por essas ruas. Que cidade tão estranha! Meto pela rua que resta, uma rua cheia de contentores do lixo a abarrotar, em frente, uma linha de comboio em constante funcionamento. Nada a assinalar na paisagem. Volto-me para as montras dessa rua, mais lojas indianas…? Não podia ser, porque nas milhentas ruas acima, tudo o que é loja tem cabides, com roupa, à porta. Estas não tinham nada à porta à excepção de dois ou três homens que andavam para cima e para baixo, perdão para trás e para a frente, a mirá-las. Bem, para a generalidade dos homens que conheço – vá, com certeza apenas os de casa, concedo – se há coisa que os irrita é olhar montras. Francamente a mim também, porque sou mais consumista do que devia e portanto quanto mais longe da vista melhor, mas nunca com aquele enfado tão típico dos xy lá de casa. Quanto ao que por cá aconteceu, foi o inevitável e já usual para os meus conheciments geográficos: também na capital da Europa existe um Red Light District, vizinho imita vizinho, e foi aí que fui parar. Euzinha. (Os meus irmãos vão achar particular graça a isto, só quem me conhece para saber a assimetria que é). Euzinha. Sozinha. Ensonadona – este é que foi todo o problema. Na realidade não houve problema nenhum, mas se estivesse mais alerta podia ter evitado coisas desagradáveis. Ando ultimamente com a lágrima à solta. E foi preciso uma eternidade, saldada em três montras, até que conseguisse dar meia volta! Fiquei triste, com raiva, contra mim própria, porque a dada altura não consegui disfarçar uma lágrima e a menina, era uma menina – se tinha dezasseis anos não parecia –, fugiu, foi para dentro. Eu não queria. Mesmo. Escapou ao meu controlo. Foi vê-la tão miúda, tão sozinha, tão escanzelada por detrás da lingerie. Ainda a vejo agora. A fugir. As outras não, as outras mantiveram-se na(s) sua(s). Normalmente. Reparei que eram muito bonitas. E com idade para saberem o que estão a fazer. Agora, aquela menina… ainda vai levar tempo até a tirar da cabeça.
É claro que isto não hei-de mostrar a ninguém, mas seria a única coisa para mostrar se não tivesse tido a, tardia, clarividência de avançar no sentido oposto. Aí sorriram-me as praças, os palácios, as esplanadas e os canteiros de flores à janela, aí as pessoas sorriram-me também e eu, envergonhada, por não perceber a inclusão no baralho, sorri-lhes. A Catedral gótica desta cidade é de uma imponência, sem opulência, única! As paredes e os tectos são brancos, há quadros da escola flamenga, naturalmente, nas primeiras junto com obras de pintura modernas, e incrustrações em metal (ouro?) nos segundos; os confessionários são em carvalho trabalhado mas não barroco, há peças decorativas de carvalho que, desconfio, terão levado anos a fazer; o Cristo no tronco é enorme, forte e ao mesmo tempo terno; os santos do altar são em ouro, mas têm nas caras e nas vestes, uma simplicidade desarmante; o próprio altar é arejado, ou arrojado, conforme; tampo de vidro transparente, dois pelicanos como estruturas de suporte. E eu adoro pelicanos! A lágrima também concordou. São feios, passavam a vida a dizer-me isso, mas mais nobre que o pelicano que sempre alimenta de si as crias, não conheço nenhum animal. Prossegui, o sol finalmente iluminava a tarde, ou o pouco que restava dela. Saí. À frente da Catedral há um jardim, em nada extraordinário senão nas espreguiçadeiras. Não resisti. Pensei no quanto, um dia, havia de…, estiquei-me – as coisas que uma pessoa faz em terra alheia! – e da junção alquímica de uma noite, a anterior, em claro, comuma boa dose de sol e pensamentos bons, surgiu o soninho, um soninho descansado, de minutos, que me soube muitíssimo bem. Não fosse eu, eu, e não havia máquina de fotografar, nem telemóvel, nem carteira que me fizessem acordar. Mas eu continuo sendo eu e portanto a segurança ainda pode sempre mais que tudo o resto… Fui ao Museu de Arte Moderna, um dia também hei-de perceber-lhe a essência, ou melhor ver valor na sua essência, que perceber, percebo, mas não gosto. Cheguei a tempo da Feira de Artesanato Urbano que decorria ali perto, não me perdi (em gastos) por pouco – foi o meu deus ex-machina, tirou-me dali um ápice, como sempre. Estaquei na Praça Real, tão bonita, um dia hei-de…, comi um morango com chocolate branco na Godiva – não sou muito adepta de chocolate, mas branco com morango agridoce até…, fui às Galerias Reais, o centro comercial do centro da cidade, de estilo renascentista italiano – o meu tipo de arte…, que tem uma livraria de arte simplesmente fantástica e uma loja de decoração de interiores ao mesmo nível e inúmeras lojas de chocolates, que já não passaram pelo meu crivo gustativo, mas não escaparam ao estético: havia numa um arranjo de rosas, uma espécie de árvore que não é roseira, nem cameleira, mas uma planta sintética que ostentava em cada ramo a Primavera como sempre a imaginei, desde miúda, quando nos ensinam “Primavera das flores, como esta não há mais…”: inúmeras rosas brancas marcadas de rosa forte no bordo das pétalas. Uma imagem do outro mundo. Depois passei por uma série de lojas de roupa, griffes certamente algumas mas só parei na perfeição de um mundo real ao serviço da imaginação: uma loja de rosas, reais, que vivem e morrem, mas simultaneamente surreais, no tamanho, no vigor, nas cores. Bem, essas rosas em arranjos absolutamente inusitados, dentro de aquários, em ramos com búzios a enfeitar o caule, um sem número de junções como eu nunca vi – e gosto muito de arranjos florais – que funcionavam lindamente. A lágrima também achou que sim.
Agora vou dormir que o meu dia começa de madrugada amanhã de manhã e adivinha-se duro. Um dia hei-de… deixar de ser assim – penso eu, esperam alguns (muitos?), mas por enquanto… não.

sábado, junho 09, 2007

Antes de me ir embora

Porque eu não mereço. Tanto, tanto, tanto.

"...O amor é o sangue do sol dentro do sol. A inocência repetida mil vezes na vontade sincera de desejar que o céu compreenda. Levantam-se tempestades frágeis e delicadas na respiração vegetal do amor. Como uma planta a crescer da terra. O amor é a luz do sol a beber a voz doce dessa planta. Algo dentro de qualquer coisa profunda. O amor é o sentido de todas as palavras impossiveis. Atravessar o interior de uma montanha. Correr pelas horas originais do mundo. O amor é a paz fresca da combustão de um incêndio dentro, dentro, dentro, dentro, dentro dos dias. Em cada instante de manhã, o céu a deslizar como um rio. À tarde, o sol como uma certeza. O amor é feito de claridade e da seiva das rochas. O amor é feito de mar, de ondas na distância do oceano e da areia eterna. O amor é feito de tantas coisas opostas e verdadeiras. Nascem lugares para o amor e, nesses jardins etéreos, a salvação é uma brisa que cai sobre o rosto suavemente."

José Luis Peixoto, Uma Casa na Escuridão


Agora vou. Tenho um itinerário triplo para acabar, um bilhete de comboio para comprar, duas malas para fazer, um avião para apanhar, um hotel , um autocarro e um centro de congressos para descobrir até amanhã... Depois, depois vão ser duas duras semanas e estou com medo, como sempre. Tentarei postar. Fui.

A outra face


Lembro-me como se fosse hoje.

Não me recordo o dia nem o mês, dados laterais, mas o episódio permaneceu na minha memória com grande limpidez.

1996. Campo Maiorense FC - FC Porto. Jogo para o Campeonato Nacional, nessa altura ainda era essa a designação, no Estádio Capitão César Correia, designação do estádio do Campomaiorense para o senso comum, Estádio da estalada para mim, a partir daí.

A determinada altura, vejo o Presidente do clube da casa a dar um estalo no Vítor Baía e a voltar costas e seguir o seu caminho como se nada fosse, estava em casa, pois claro! Vai daí, o Vitinho que não é de se ficar - percebi (só) nessa altura - usa da sua superioridade física, uma passada do Baía seriam umas quatro ou cinco do senhor Presidente, e dá-lhe um pontapé. Em resposta.

No dia seguinte, em todos os jornais e serviços noticiosos, o triste episódio fazia manchete. E as paragonas eram todas centradas no Baía, se fisicamente superior, mediaticamente supremo, "Não sou de dar a outra face". Lembro-me tão bem!

Não sou de dar a outra face. Anos e anos de endeusamento para o lixo, em minutos. nem tentei justificar-me (-lo?) à minha família, mas eles queriam, esperavam divertidos alguma resposta, um qualquer tipo de argumentação. Mas não.

Em 96 entrava na melhor fase da adolescência, aquela em que se começa realmente a crescer - por dentro. E este episódio de extemporânea revelação da humanidade do meu deus não só fez-me abrir os olhos para a facilidade com colocamos no mais alto pedestal aqueles de quem gostamos, mas também, porventura consequentemente, fez-me trilhar um plano de vida: Daria a outra face. Sempre e apesar de tudo.

Ele até tem razão - os deuses têm sempre razão - quem dá a outra face é tonto; gosta de apanhar; mas por outro lado, ser-se referência para alguém, motivo de noites mal dormidas, de mil e um pensamentos, de necessidade de afirmação, comunicação, saliência dos demais, não terá apensa uma série de responsabilidades, entre as quais a de ser-se sempre mais e melhor, entre as quais a de ser-se exemplo? - cheguei a dizer na altura.

Em 96, O Vítor Baía tinha quase a minha idade e não hesitou em responder. Porque é instintiva a busca de protecção face à agressão. Porque o ataque é a defesa mais imediata, emotiva, humana. E não se trata de uma questão de idade, trata-se de uma questão de vida. De vida vivida. De ensinamentos, de manancial ético e de personalidade em constante formação, que as situações negativas, por que todos passamos de quando em vez, nos dão. Para o futuro.

Dois anos antes tinha saído o Forrest Gump, filme que gostaria de ter visto mas não vi, nessa altura as finanças lá de casa estavam como os meus pais - ainda em formação - e como não era bem de primeira necessidade o filme passou sem que o tivesse visto. Foi em 96 que vi o Forrest Gump. Pela primeira vez. Na aula de Moral. E se nessa altura o meu projecto, de dar a outra face, estava mais ou menos delineado, mais marcado ficou. Tive a sorte de ter Moral com um padre absolutamente extraordinário, muito velhinho por fora, incrivelmente jovem por dentro, que teve o condão de trazer o Forrest para a nossa turma, para a nossa casa, para a nossa rua, para a ilha, para dentro de nós.

Desde então já conheci tanta gente, já fui Forrest para tanta gente! Ainda sou. Para o bem e para o mal. E não escrevo isto com qualquer tipo de orgulho ou arrogância - era tão bom se fosse assim! - sofro isto, escrevo isto sofridamente. Só eu sei por que passei quando fui para Houston e quem me devia receber, sem eu nunca perceber porquê, me infernizou a vida de uma maneira... Só eu sei o que me custou libertar-me do jugo dessa pessoa e simultaneamente ter que lhe sorrir e frequentar os mesmos eventos e trabalhar com ela e fazer-lhe favores. Só eu sei o que me custou ouvir-lhe descrever-me a grande parte do Departamento como a anormal que se queria aproveitar da sua boa vontade, de resto como tudo o que é Europeu! Só eu sei o que me custou. Ser eu. Conquistar aquela parte do Departamento. E mostrar-lhe como eu sou eu e não a imagem que, nunca percebi como, compôs de mim. Só eu sei o prazer que hoje é tê-la como amiga.

Como ela, anda muita gente por aí a pensar que eu sou as piores coisas e totó, não aquele totó bom que se chama a quem se ama; mas aquele totó horroroso, palerma, que roça o anormal. Anda muita gente por aí a pensar em mim. Devo ser importante. Anda muita gente por aí a gastar o seu tempo a ler-me. Devo ser importante. Anda muita gente por a deixar de dormir para me ler e ME criticar. Devo ser importante. Não para criticar a postagem, ou a escrita, não: para criticar a situação, o meu posicionamento na situação, a minha conduta, a minha maneira de ser, a minha maneira de pensar. Devo ser importante. Anda muita gente por aí a pensar que é só chegar à casa dos outros, ir entrando e ir batendo, é só ir ao blog dos outros e vomitar-se-lhes as frustrações do dia-a-dia. Na cara. E assim ganhar protagonismo. E assim apoucar o outro. E assim limitar a liberdade do outro. No seu espaço. No espaço que o outro criou para si. Apenas. Anda por aí muita gente a achar que é tão importante que vai ser impedido de entrar, como anónimo, como cor, como substância ilícita... A achar que é tão importante que vai causar a restrição a leitura pública deste blog. Anda muita gente por aí a pensar que vou dar luta. Na mesma moeda. E descer a níveis idênticos, subterrâneos. Não vou. Não tenho a passada, nem o passado, do Baía. Sem ser totó, mas sendo, darei a outra face. Sempre e apesar de tudo.

Stupid is as stupid does.

sexta-feira, junho 08, 2007

Vou


... mas volto.

quinta-feira, junho 07, 2007

Três

Entraram os três. Sentaram-se os três. Trabalham juntos, pensei. Só isso justificava aquele agrupamento.

Explico: três homens completamente diferentes. À primeira vista, na idade e da roupa. Apenas. Um teria quarenta e alguns anos, risca ao lado, um bigode imenso, dentes separados, camisa e calças escuras, mas leves, cinza talvez. Português típico, nortenho ainda mais típico, um palavrão ou dois por cada frase, em média. O outro era o calado. Sentou-se ao lado do primeiro, teria mais de trinta anos, era alto e magro, vestia normalmente, camisa leve e clara, calças de ganga ou sarja, que hoje está muito calor, já às sete e meia da manhã. O terceiro era o mais novo e estava sentado em frente ao primeiro. Suponho que teria a minha idade, mais ou menos. Não consigo precisar porque estes óculos que há agora, os dele, de lentes verdes, repescados dos anos 70 (será?), tapavam-lhe demasiado a cara. Porque era muito magro também, demasiado magro, e muito moreno. E muito arranjado. Também. Quase metro. Crista discreta, gel no cabelo, brinco, anel, mega relógio, terço ao pescoço, jeans e camisola rosa. Vá, o rapaz esforça-se. Tenho que lhe conceder isso.

Depois deste breve, e maldoso, pensamento estético, voltei à Maria do Rosário Pedreira, que agora não há viagem de comboio sem livro na minha semana. Voltei, para pouco depois regressar ao banco dos três. E não pela quantidade, crescente, de palavrões, nem sequer pelo teor da conversa – o nosso bom português lidou muito mal com o facto de a mulher ter passado pelo trauma da iminência da morte devido a um cancro – a ver pela palavrinha do mais baixo dos registos de língua com que designava a mulher, a ver pelo substantivo de natureza fisiológica, baixo também, que adpunha aos nomes dos tratamentos; bem… a ver pela totalidade amarga do discurso, impregnado de expressões despiciendas, baixas, extremamente desagradáveis. Não foi por isso, mas devido a isso. Voltei-me para o rosto sumido por detrás dos óculos de sol. Era-me difícil acreditar. Porque é mais cómodo estar calado. Como o segundo, o trintão. Como eu. No meu canto.

Mas o representante da minha faixa etária, esse, não só ouvia com atenção as lamúrias brejeiras do mais ancião, como ainda lhe ia respondendo. Que sim, que entendia, que já tinha vivido uma história idêntica, mas com um final bem diferente, muito mais trágico, que essas coisas acontecem, mas que o futuro é hoje, que então faz ela muito bem, que a hidroginástica faz bem, dá saúde e prolonga a vida.

É bonito. Dá vontade de lhe dar um beijinho só porque sim ou então ao menos um sorriso – de admiração.

Às vezes a vida pode ser cor-de-rosa. De um rosa suave e fresco que brota de dentro, do rosa que o rapaz de rosto sumido no meio dos óculos envergava em cada frase, do mesmo rosa da t-shirt lavada, larga, sobre o corpo magríssimo.

terça-feira, junho 05, 2007

O espaço pessoal

Nem 8, nem 80!

Aqui na net existem muitos. Mas o espaço pessoal a que me refiro é aquele, de natureza mais ou menos psicológica, muito em voga no inconsciente colectivo norte-americano, e o qual devo ter assimilado de modo mais ou menos (in)consciente quando estive lá ou então sempre esteve cá mas latente.
Na realidade, não suporto o Sr.-A-menina-tirou-Direito-na-UM, desde a primeira vez por, para me arrotar aquele discurso todo, sair do seu lugarzinho e vir colocar-se bem à minha frente. (Sem um Desculpe, posso?, sem um Com licença!, sem nada!)
Invasão despudoradamente intrometida do espaço pessoal - diriam os americanos.
Invasão despudoradamente intrometida do meu espaço pessoal - sinto eu.
O espaço pessoal têm uma área definida, pelo psicólogo autor do conceito, em metros quadrados que não me recordo qual é, mas que sinto. Porque para sentir não é necessária a matemática.
Ainda há pouco, voltei a senti-lo e por estes lados, cibernéticos, onde se sente francamente pouco, se matematiza ainda menos, mas se calcula infinitamente, se magica desalmadamente, se rompem barreiras, fronteiras, espaços pessoais. Recebo pela enésima vez um convite de Messenger de uma pessoa que não conheço, ou não me recordo de conhecer, mas que teima em se auto-convidar, em se me impor, sem se revelar. (Sim, porque eu já tentei que se revelasse. Até por uma questão de consciência, que isto de mandar pessoas para o lixo é processo delicado.) No entanto, Messenger por hora espurgado, permanece apertada e amarga a sensação de se chegar a casa e se dar conta de uma tentativa de arrombo da porta. Apetece mudar de casa ou até mesmo de local de residência e não voltar mais, desaparecer do mapa: não mandar mais mails a ninguém, evitando só assim que alguém que eu não conheço tenha acesso ao meu mail.
Se calhar exagero, sou complicada; mas caiu-me mal. (E sim, também sou tímida, mas não é por isso.)

Há uma quase absoluta segurança na imagem. Na imagem viva. E nem precisa ser uma imagem fotográfica, física, real. Pode ser a imagem que compomos, interiormente, de uma pessoa, por aquilo que já lhe ouvimos, pelo que sabemos, lemos, falamos, ouvimos, dela; por aquilo que já fez.

Tenho amigos no Messenger: amigos, colegas e conhecidos. Também recebo convites de muitas pessoas com as quais não me relaciono, mas sei quem são; algumas nunca vi sequer, mas conheço razoavelmente; agora surgir alguém do nada, e insistente, é demasiado, inconcebível, não-assimilável pelos meus quadros cognitivo-conceptuais.


Se o "senhor penetra" me conhecesse minimamente, por certo já saberia das contingências do meu espaço pessoal.

segunda-feira, junho 04, 2007

Sant' Iago


Novamente.
Como eu gosto desta cidade!
Aqui o calor nunca é demasiado, nunca é abafado; é o calorzinho, o quentinho bom que se sente num abraço. Aqui o frio nunca é frio, nunca é cortante, gélido. Aqui o vento nunca é vento, intempestuoso; é brisa, beija-me, brinca com o meu cabelo. Aqui o verde é mais verde, os sorrisos sao mais sorrisos e as horas mais longas e, paradoxalmente, o tempo mais curto. Aqui a noite desce devagarinho por entre a gargalhada de uma rapariga, o beijo apaixonado de dois adolescentes e meu quase sorriso silencioso, feito daquele silêncio bom das recordaçoes que vao desfilando na memoria.
Gosto desta cidade, está visto. Gosto muito, nao me importava de viver aqui (nao precisavam de pedir muito!...) Bem, se calhar é porque nao conheço outras cidades espanholas tao bem, mas conheço relativamente bem duas das mais bonitas e famosas e amadas cidades do mundo, Paris e Nova Iorque, e nunca constariam nas minhas primeiras opçoes de bom sítio para se viver, apesar da inegável oferta cultural e da vida própria, inigualável portanto, dessas cidades. Enfim, coisas minhas...
É que aqui respira-se uma paz, uma doce ternura que eu nao consigo explicar - quem consegue explicar sentimentos? - mas que me faz muito feliz. A felicidade é uma coisa tao simples!
É ter chegado ao fim da tarde e ter andado uma meia hora até ao hotel por entre monumentos seculares e as pessoas de mil nacionalidades e adolescentes totalmente, marcadamente galegos. É ter pedido uma informaçao e terem dado mil, demasiado rápidas, mas bem dispostas e pacientes com a minha expressao baralhada. É ter quase embatido num monumento local, penso eu, mas nao secular, if you know what I mean... É ter jantado magnificamente. É ter dado um passeio pelo centro nao histórico ao cair da noite. É ter dormido mal e ter a sensaçao de que as noites sao muito longas aqui e só aqui, culpa da ansiedade, nao do hotel que é fantástico. É ultimar os meus trabalhos e ter a perfeita noçao da responsabilidade, do peso dos meus interlocutores, da Universidade... É ter-me levantado esta manha e, primeira coisa do dia, ter ido à missa na Catedral. É visitar o meu Sant'Iago, meu santo predilecto nao sei porquê - novamente! É comprar um livro e dizerem-me Eso és en Português! Tienes la certeza que..., dizer Sim, tenho a certeza, sorrir, e pedirem-me galegas desculpas porque pensavam que eu era... Nadi. Nadi. Enfim! É vir de lá para aqui, estar a escrever, nao fazer ideia de como colocar um til - estes teclados espanhóis! - e nao me importar muito... É isto tudo e tudo o mais de que nao me recordo de momento porque deixei os olhos e a memória num pequeno almoço indecente (para a linha e para a sanidade mental de uma pessoa de bem comme moi), um batido de baunilha e uns churros...
Bem, vou-me.
Volto brevemente.

sexta-feira, junho 01, 2007

Dia Mundial

Da Criança.
É hoje.
Esforço-me por tentar lembrar que tipo de comemoração ensaiavam os meus pais neste dia. Continuo sem recordar. Se calhar traziam-nos um bolo (de pastelaria) a cada um - se fosse de aniversário lembrava-me!, se há coisa a que não resisto é bolo de aniversário! -, acho que a minha mãe nos costumava dar um beijo e dizer "Feliz Dia da Criança! Hoje é o vosso dia!", tenho essa imagem muito vaga, porém muito presente. Mas beijos dá sempre, ainda agora, tal como ainda agora acha que todos os dias são nossos por muito que eu já conte com vinte e seis e a mais nova vinte anos.
Quando estava no Liceu, foi com estranheza que presenciei o uso a ironia fina ao serviço deste Dia: "Já deste os parabéns ao X? Hoje é o dia dele. Minha esperteza do costume: "Dia do X? Mas ele já fez anos, foi a semana passada, lembras-te?" "Oh pá, Dia da Criança! X...Criança... Ai!" Pois, eu e os trocadilhos maldosos... raramente chego lá (e acredito em tudo, tudo, tudo o que me dizem - por mais estapafúrdio que seja!).
Sempre quis ter filhos. Ainda quero, um dia. Nunca quis dar aulas a miúdos. Continuo sem querer. Além de a matéria ser demasiado básica, os próprios miúdos não estão na escola para aprender mas para que se lhes dê educação. E isso faz-me um pouco de confusão porque o meu curso é Ensino do Português e das Línguas Clássicas e não em Educação mais ou menos clássica a certos portugueses. (A educação que tive é impossível de ministrar a estes miúdos - bem entendido.) Os meus alunos mais novos até hoje foram de sétimo e oitavo ano e guardo-os na memória como as minhas turmas mais difíceis, já tive uma de nono dificílima, mas essa não conta porque no fim de contas é uma das que recordo com mais saudade - é sempre assim! Os alunos de Secundário nunca me deram problemas, e os da Faculdade - a maior parte mais velha que eu na altura - mau seria se causassem qualquer tipo de transtorno. Não, não aconteceu e ainda bem.
Nestes últimos tempos, como me tenho dedicado à investigação, não dou aulas e se isso é bom por um lado - optimiza as minhas capacidades de trabalho, tenho o privilégio de poder dedicar-me em exclusivo a um área que gosto imenso - por outro é uma actividade muito solitária - não trabalho com ninguém, dependo unica e exclusivamente de mim e das orientações, sábias e muito presentes, do meu supervisor. De qualquer maneira, o contacto social não existe e isso custa-me um pouco. Por isso, fiquei muito contente, quando uma amiga que trabalha numa espécie de ATL me pediu, num tom tão descontraído que incialmente até pensei que fosse brincadeira, se podia dar uma mãozinha (ou as duas!) no sítio onde ela trabalhava, os dias que eu quisesse por semana, voluntariamente (ou voluntariosamente?). O sim saiu-me imediato e portanto não houve volta a dar. O grande problema é que miúdos com mais de quinze anos - a minha faixa etária de eleição, os miúdos que empatizam logo comigo e eu com eles... - não frequentam ATLs. Por outro lado, "São miúdos do ensino básico, além do que apenas tens que os entreter: cantar umas músicas, fazer uns jogos, não é dar aulas, é brincar!" - atalhava a minha amiga. Big problem. Several big problems. Ensino Básico... primária...primária...miúdos pequenos...cantar música menos mal...joguinhos...menos mal também... agora brincar!? (Nunca gostei de brincar em miúda, quanto mais agora! "Nunca brincaste? À Apanhada... Nem com bonecas?" Nop, nop, nop. Era do estilo observador, já te disse. De bonecas não gostava, de sujar os vestidos e estragar o penteado e perder os anéis também não.). Fartámo-nos de rir, bem fartou-se ela, que eu estava a ver o meu caso (muito) mal parado.
No dia combinado fui e não gostei. Nem a ânsia de sair do meu gabinete, atolado de livros e fotocópias mas vazio de gente, me salvou. Dei por mim a chegar a casa ao fim do dia e a dizer as mesmas enormidades que a minha amiga me costumava dizer ao telefone. E eu não sou assim: continuo a querer ter filhos. Mas há crianças a quem raptaram a criança que eles deviam ser nem sei quando (à nascença?). Há miúdos que desaparecem e continuam a dormir em casa todos os dias e a tomar o pequeno almoço, mais ou menos saudável, em casa todos os dias. Há miúdos que são raptados pelos pais, pelos irmãos, pelos primos, pelos tios, pelos vizinhos, sem nunca desaparecerem de casa. Há miúdos que são raptados pelos colegas - a que chamam de amigos e a quem dão a mão a cada toque para o recreio... São os que não têm pai, são os que têm a mãe com a mais liberal das profissões, são os que vivem com a avó porque o pai está preso e a mãe matou-se, são os que têm ambos os pais, mas cada um à vez, porque esta era semana do meu pai mas ele telefonou que não podia e a minha mãe também não pode, posso ir para a sua casa?, são os normais, com pais e mães e irmãos e famílias perfeitamente funcionais, são os hiperactivos, sim que hoje uma turma só é turma se tiver pelo menos um (Será por causa dos Morangos?), dizia eu são os hiperactivos, perdão os mal educados e com um problema de gestão da raiva, para quem brincar é bater, são os hiperactivos, perdão os mal educados puros, do "... estás a guardar a bola para quê? A bola é minha, ai, passa-me já a bola senão parto-te a boca toda!", são os hiperactivos, perdão os mal educados com falta de atenção e outras carências afectivas, do "... e quê, vais bater-me agora, não? Chamo já o meu pai-cigano - que na realidade não tem - e logo vês quem apanha!" São os autistas que, com este alvoroço todo, passam muito mal, são os hiperactivos reais, mas ainda não diagnosticados O meu filho, não, o meu filho não é tonto! O meu filho é igualzinho a mim!, que, ajudados pelas meninas amorosas da primeira classe, Professora, olhe o X, o X bateu-me, deu-me um pontapé! Quero o meu avô!, ampliam descomunalmente o alvoroço até se conseguir reforços, literalmente, e então separarmos os focos de distúrbio e se assistir, acalmando, o miúdo mais sobressaltado.
A minha amiga acabou por confessar que a abertura a voluntários se devia a alguma impossibilidade de controlo. ...alguma... Continuei a ir. Não os dois dias. Um só. Deixei o dia mais problemático, começava a afectar o meu trabalho - aquele que sempre me deu gozo, o que quero fazer a vida toda - e isso, por muito que preze a minha amiga não posso permitir. Ela concordou, Sempre é melhor que nada - disse-me, com uma alegria que ainda não consegui perceber. Fui. Vou. Irei, logo à tarde. Pelas meninas da primeira classe, por um da terceira - o Ricardo, por dois da quarta. Seis. Seis miúdos num universo de quarenta. Seis. O trigo no meio do joio. O Ricardo.
O Ricardo está na terceira classe, veio do Brasil no ínicio do corrente ano lectivo, não tem os dois dentes da frente, mas tem a educação e o equilíbrio emocional que falta à generalidade dos miúdos da sala dele. Não fala aos berros, não corre na sala, não é mentiroso, não rouba material dos colegas, não corre para me abraçar, não me baba a cara com beijos, não me agarra as mãos, não me bajula com as boutades típicas: A professora é muito bonita!, De que clube é?, Onde mora?, Um dia vou casar-me consigo!. Na realidade, o miúdo é discreto. Só não passa despercebido porque é dos poucos que se senta, ouve e faz o que se manda, com interesse e naturalmente.
Não sei porquê, de algum tempo a esta parte começou a ficar para trás no fim, leva mais tempo do que é necessário a arrumar e acabamos por sair sempre os dois. No outro dia emocionei-me a valer e sem querer.
-Ricardo, o casaco!
-Obrigado, proféssora, si ocê não me avisasse, ia esquécê!
-Pois é, é sexta feira, quer correr para casa, depois esquece-se, tome lá. ( Tique da Faculdade, ser-me difícil tratá-los por tu... o que vale é que para este é igual).
-Adeus proféssora, bom fim dji semana prá você!
-Adeus Ricardo, para si também.
-Proféssora, cê não quer mudar dji iscola?
-Mudar, mudar porquê, Ricardo?
-Minha mãe vai mi mudá dji iscola para o ano qui vem. Vou para as... acho qui é colégio dji freira.
-Porquê, Ricardo?
-Porque os mininos aqui são muito ruins, o P.C. quase todos os djias me batji, o H. ou o T.A. me roubaram a borrácha daquela veiz, cê lembra, proféssora?
-Sim, nunca encontramos.
-É, então é isso.
-Mas é o melhor aluno, Ricardo!...
-É, sou sim, mais a Matemátjica sou médjio e no Braziu era o melhó em tudo. Aqui, com esses mininos não dá.
(Chega cá, herda logo as tão portuguesas dificuldades a Matemática, porque será, senhores que elaboram os manuais?)
-Cê não qué vir comigo para as..., proféssora? Lá nas... os mininos são bonzinhos.
Não consegui responder-lhe. Abafei as lágrimas num abraço que se prolongou mais do que devia e, mais recomposta, dei-lhe dois beijinhos.
- Bom fim de semana, Ricardo.
-Até à semana que veim, proféssora!
E fiquei longamente a vê-lo afastar-se ao fundo do corredor, aos pulinhos, mochila às costas, bola de futebol numa mão, casaco na outra. E detive-me nas palavras que me bailavam na cabeça. E demorei-me na ternura daquele anjinho.
Hoje é Dia Mundial D'ele.