quinta-feira, novembro 22, 2007

Linda's pumpkin pie

A memória é uma coisa estranha. Mais do que a partir de imagens, a memória constrói-se através de emoções: cheiros, sensações. A memória fala, sussurra-nos mundos ao ouvido. Sobretudo quando o corpo que sente, o ouvido que escuta, os olhos que se fecham para ver, estão longe do coração. Que o coração, às vezes, parte-se e reparte-se por muitos cantos do mundo.
Hoje é Dia de Acção de Graças, Thanksgiving, nos EUA. Há duas semanas que ando a falar nisto. Nunca me lembro do dia. Sei apenas que é uma quinta feira de Novembro e portanto a cada quinta aborreço toda a gente daqui a perguntar pelo Thanksgiving. É hoje. Entro no Facebook e o status da Linda diz-me que ela cozinha a sua deliciosa tarte de abóbora, o ex-libris da quadra festiva. O da Vica convida todos os amigos a mergulharem no perú, no puré e no cranberry sauce. Saudades!!!...
O Thanksgiving é culturalmente, objectivamente e para todo o americano que se preze, a primeira das comemorações mais ou menos familiares que anunciam o Natal. (Cá entre nós, porque entre eles também, bem bem no seio da festa, o Thanksgiving é a "consoada (que começa ao almoço e só termina com a ceia) dos amigos", claro que os pais fazem questão, claro que os filhos acabam por ir, mas na eventualidade de não se poder atravessar o estado, vários estados, o país para uns, um oceano para outros, não há ninguém que passe sozinho este dia! Mesmo aqueles que não têm amigos, que também os há, são sempre energicamente puxados para a casa de alguém. E acabam por surpreender-nos, os sozinhos, muitas vezes... E cozinha-se e fala-se e ri-se e joga-se e não se faz nada e a felicidade senta-se connosco nesse ócio tão americano.
Passei dois Thanksgiving nos E.U.A. e de ambos recordo com carinho, e saudade - admito -, da espontaneidade e da alegria com que se é recebido na típica casa americana. Sempre. Num tempo em que "americano" é tantas vezes sinónimo de "prepotente" (e "odioso" e "tirânico" e tudo o mais...) o que me apetecia mesmo agora era a pumpkin pie da Linda, enquanto olhava, divertida, o Pascal diligente na mui máscula tarefa de lavar a loiça às meninas. O que eu queria mesmo era a conversa de engate do Chris, o contínuo arrotar de saber enciclopédico do Schmitty, o ter que enxotar o Raj, podre de bêbado, do meu colo e apressar-me para a minha maratona de tricot com a Gu-Jing, enquanto a Vica se ri, desbragada, da minha saída estratégica.
Apetece-me hoje, Dia de Acção de Graças nos E.U.A., o mesmo que me apetecia quando estava lá e lembrava-me das castanhas do senhor das castanhas do Marquês, do cheiro das mãos da minha mãe ou do som dos meus beijos na sua pele, dos lanches especiais da Rua de Santa Catarina ou do cheiro a terra molhada depois de chover na Madeira.
O que me apetece e eu quero mesmo, queria muito, era ter o coração de volta, assim, aqui, todo inteiro, meu, muito meu.

3 comentários:

Anónimo disse...

Querer estar em todo o lado, ter o coração espalhado por sítios distantes, aqui e ali... Bendita a memória, que nos conforta e faz a distância parecer quase inexistente!

rui disse...

Olá Joaninha

Que texto mais lindo!
Quando escreves assim, com toda esta intensidade, penso que sinto o que estás a sentir.
Como devem, ter sido lindos, esses momentos que recordas aqui!
O que eu quero mesmo, é enviar-te, mesmo cá do fundo, um grande abraço, com um leve cheirinho a terra molhada depois de chover.

Fica bem, menina Joana
Beijinho

Rui Caetano disse...

A memória é uma coisa maravilhosa, gostei do teu texto. Interessante.