isto.
E para sempre. Ou de como é tão difícil ser-se indiferente a São Paulo.
Quando desisto de pensar muito e recordo apenas, chego à esquina inevitavel, incontornável, da conclusão de que sou velha - a idade fora, há pessoas que passam por tanto como vivessem muitas vidas, de cada uma guardando reflexos de luz, bocadinhos de gente instante, o hábito de aproveitar o sol na busca fora-de-horas de um calorzinho bom e o de cair de pé. Coisas de animais com muitas vidas por vida, também.
O ir-se ficando velho muda-nos, muda-me desde dentro. Muitíssimo. Muda até o modo como penso acerca da minha velhice de mundo: agora tenho vindo a achar que sou uma velha rapariga velha cheia de sorte, por exemplo. Recordo os lugares por que passei e penso há gente que dava tudo para, que quer muito, que sonha um dia.
Quando fui para a Sorbonne fazer Erasmus e fiquei a viver no Foyer La Maison em Montparnasse, como o foyer era dirigido por religiosas, havia uma imposição, mais ou menos regulamentar, mais ou menos tácita, de participação em actividades de carácter religioso que elas costumavam desenvolver ao longo do ano.
De todas, a recordação mais viva que tenho foi a de um fim-de-semana de retiro que passámos no Sacré Coeur. Terá sido no início do ano lectivo, e por conseguinte da minha estadia, porque me lembro bem da minha tarde pasmada a olhar as fachadas floridas de uma e outra casa, as pracetas pejadas de telas e bóinas ávidas por caricaturizar as meninas que passavam - a Montmartre romântica e boémia que se dava a conhecer enquanto eu roía, uma após outra, uma quantidade absurda de maçãs caramelizadas.
Não me lembro do acolhimento na basílica, não me lembro do alojamento, na basílica também, creio, não me lembro de muito para além daquela noite da chegada em participámos da adoração perpétua e do dia seguinte em que formámos grupos para um trabalhinho simples de brainstorming acerca de qual a parte da Bíblia que mais nos tocava e as razões da escolha. Lembro-me de enfrentar alguma resistência face ao meu São Paulo, que toda a gente o tem sempre na ponta da língua, que é escolha automática, imediata, conhecida, a fácil.
Nesse semestre enfrentei muita resistência face a muita coisa minha. Mas um percurso de vida que se altera radicalmente, por amor, uma vida que é vivida mundo fora e que desagua numa escrita com todo o ardor, capaz de mudar mentalidades, alterando o próprio pensamento religioso, numa época tão difícil, não pode deixar de ser cativante. E desafiador. Não pôde - foi o que me disseram, depois de todas fotografias na imponente escadaria da basílica, quando já descíamos para Paris.
Cinco anos depois, deparei-me com isto no Museu da Blaffer Collection. Estava fora do ninho pela segunda vez. Desta vez on my own e com um coração bem mais pesado que todas as maçãs caramelizadas da última vez em que nos tínhamos encontrado no dentro mais dentro que ninguém sabe.
Esta manhã, as escrituras lembraram-me disto. (E do Ubi Caritas de Taizé, outro lugar.tempo que passou em mim para permanecer.)
No outro dia, olhando as minhas mãos e vendo-lhes as veias salientes, tive a impressão íntima de vir a herdar pelo sangue dos dias as mãos da minha avó. As mãos da minha avó eram todas sinais, um mar deles, e veias furiosas, encavalitadas nos ossos, a quererem romper a pele. A minha irmã mais nova inveja-me o pressentimento. Diz que também queria, que se lembra bem delas, que eram bonitas assim.