segunda-feira, agosto 30, 2010

Hegeliana

Estava, por uma vez, fora de mim. Só isso justificava ter acabado de pontapear o balde de tinta – eu a olhar-me incrédula, a minha irmã a olhar-me incrédula, ele, lânguido, “Má ideia.”, o tempo a parar, o tempo, todas as coisas à espera, a minha irmã à espera, eu, ele, à espera, até eu à espera, da réplica naturalmente espirituosa de quem pontapeia as latas de tinta amarela que encontra a meio da estrada. Enfim, o tempo a parar e eu a não conseguir aproveitar o insterstício para arranjar um púcaro de onde tirar uma boa ideia – qualquer coisa, que eu não sou esquisita, qualquer coisa condizente com aquele arrojo, algo mais e melhor do que o sorriso embaraçado que eu, que prendi o tempo, me obriguei a dar-lhe.

Ele tinha razão. Coisas perigosas, as ideias. Não há ideia que não atormente. As ideias atormentam – é essa a sua natureza íntima. Atormentam-me as boas: quando me faltam; quando não me faltam mas são apenas imagens; quando não me faltam, não são apenas imagens – ou são, mas consigo desenvolvê-las – e não lhes sei dar seguimento; quando [tudo o que está para trás] e lhes sei dar seguimento, mas temo por elas no caminho – o caminho é sempre um problema: se há escolhos, ponho em causa o caminho, há tantos caminhos!; por fim, quando são boas e me sobram, temo que me enjaulem, receio que me absorvam pelos tempos dos tempos, duvido sobreviver-lhes. Atormentam-me as más. Más ideias não são ideias boas que se transviam e implodem – essas ideias permanecem-me boas e ideias: guardo-as (as supernova têm dias marcados). Más ideias são concepções falhas da realidade. Toda a ideia de futuro, toda a ideia de falta, a própria ideia de falha é má. Más ideias.

As ideias são organismos vivos: irrompem pelos sonhos, sono adentro; interrompem a noite, o descanso, o trabalho, os dias. Todas as ideias intentam irromper na vida – um fenómeno próprio do presente de cada dia. Não se pode ser/fazer futuros no presente; não se pode ser/fazer futuros com faltas; não se pode ser/fazer futuros com falhas. As falhas, as faltas e até o futuro são monstros que criamos dentro, muito dentro. Não se pode ser perfeito no presente, também. A ideia de perfeição é a da completude, a do puro acabamento. A ideia de futuro é a da projecção esquemática. Viver, que é aproveitar o dia, não visa uma nem outra. Aproveitar o dia é ser o que se é, fazer o (melhor) que se pode – de preferência aquilo que se estabeleceu antes de o dia ser dia – com o que se tem. Aproveitar o dia não é coisa de férias, Sextas ou Sábados à noite, feriados, dias santos, fins-de-semana. Aproveitar o dia é coisa séria, exigente, do tipo contratual – estipula dedicação exclusiva cada dia, todos os dias.

O que torna preponderante uma ideia, boa ou má, é a sua anterioridade a mim, a sua independência de mim e o seu provável desenvolvimento sem mim. Acolher ou rejeitar uma ideia é negar-se uma série de possibilidades – tarefa para muito mundo numa vida. O que torna desafiante uma ideia é o facto de a sua ausência da minha intimidade chegar a ser proporcional à sua presença na minha mente, e, por consequência, à sua intenção de presença na minha vida (o pretender-se minha e não ter, na realidade, o meu cunho ainda). Mesmo se as concebemos e construímos, as ideias ligam-se a nós porque existem independentes de nós. (Como o é, porventura, tudo o que se nos liga.)

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