De manhã passei por duas velhas senhoras, como passo por senhoras novas, senhoras mães, mães adolescentes, adolescentes de toalha de praia ao ombro, enfim. A diferença é o fragmento de conversa que cada transeunte vai deixando para trás como perfume.
No caso das duas velhas senhoras que passaram por mim de braço dado e sorridentes, mais a confidente que a confessora, mais a que não dá o braço, segura do braço da amiga, que a outra: o meu melhor namorado é nota para todo e qualquer perfume que existe, na mesma e exacta medida que há-de ser para todos os aromas que ainda não foram combinados, todas as fragrâncias que ainda estão por vir. Mesmo desconhecendo o verbo que viria a seguir - não quis abrandar o passo, arriscar o pescoço, as costas, uma escoliose - mesmo dizendo de mim para mim que permanecerem estas coisas entre uma e outra é que está certo, a persistência da memória na velhice, na doença, é algo que tem entrado recentemente na minha vida e das mais diversas maneiras. Como se, com a proximidade do fim, se desprendesse do silêncio mais dentro de cada um a nota mais sonante, expressão viva das paixões da alma.
*
Aproxima-se a olhar para a vitrine dos bolos. Do outro lado do balcão, a rapariga diz que já não tem natas, que acaba de as de meter no forno. “Não faz mal. Já são horas de almoço e hoje nem...” mas uma nata sabe sempre bem com o café, não é? atalha a rapariga. Sorri à rima, pede o café, paga-o certinho, agarra no pires, no troco, no telemóvel, na carteira, no tabaco, com o atabalhoamento da pressa – como se quisesse fugir; volta-se rapidamente para divisar a saída mais próxima, não me vê, olha de soslaio para a mãe que partilha um palmier com o filho, desculpa-se ao passar pela mesa deles baixando o olhar, entra no pátio. Pousa tudo na mesa e senta-se como se enfim chegasse a casa e desabasse no sofá. É meio-dia e sobra-lhe um cansaço com história. Bebe o café aos golinhos, entremeia-o com um cigarro, dois cigarros; o terceiro fuma-o no depois. Fuma supensa de alguma coisa, talvez de tudo o mais, talvez de si, brinca com os fósforos para disfarçar, enquanto o fogo cresce no cinzeiro. O fogo a querer transbordar, ela com os pássaros. O desânimo em círculos de fumo voando até às árvores.
Cá dentro a olhá-la, penso na simpatia rimada da rapariga do outro lado do balcão. Faz o mesmo comigo, deve fazer assim com toda a gente. Antes de eu chegar, já vai tirando café e nata, não diga nada que eu já sei. Não sei como sabe – venho para cá há pouco tempo e nem sempre é ela que me atende. O ofício deve ter destas capacidades divinatórias que depois calcificam. No final do terceiro cigarro, depois de deixar no cinzeiro o maço que amarrotara no interior da mão, esfrega muito a testa – um tique que reconheço de quando me dói a cabeça ou a vista, recosta-se na cadeira, suspira. Tenho quase a certeza de que procura esta hora do dia, demasiado serôdia para o almoço, demasiado tardia para a pausa da manhã para café, para poder estar sozinha. Sabe do pátio vazio, sabe do café às moscas. Não há filas, alvoroços, rumores, crianças pequenas. Ninguém com quem dividir o sossego.
Vou-me embora. A intrusão é um roubo crudelíssimo.
4 comentários:
também gosto de reparar nesses pormenores quando me sento sozinha numa mesa de café.
olhamos e somos olhadas. é a vida. :)
beijinho*
Verdade. :)))))))))))
Jinhos.
Ó Doutora, às vezes, a espaços, a"introsão" pode signiicar "dar notícias" e, ao invés de "crudelíssima" é "dulcíssima"...
...e bem-vinda.
Querida Maria de Lourdes,
Obrigada. Sempre tão querida :)))))))))))))))))))))
Jinhos.
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