sábado, agosto 07, 2010

Da normalidade

Não sei se porventura se tem presente que normalidade é uma palavra deadjectival. Isto quer dizer que a sua origem radica no adjectivo normal que, por sua vez, vem do substantivo norma. Antes de ser a regra e se revestir de carácter mais ou menos impositivo, a norma é tão somente a conformidade com aquilo que os Latinos primeiramente designaram de consuetudo, o costume. É normal, ou entra na normalidade, tudo aquilo que é segundo a norma, i.é. o conjunto de convenções sociais pré-estabelecidas, inerentes à vida da comunidade e operativas da vida em comunidade.

Numa época de confusão geral, se não está confuso é porque não está por dentro do seu mundo, as palavras confundem-se também. De resto, só se podia confundir o pensamento, confundindo as palavras. A semântica é desde sempre a janela pela qual concebemos (e conceptualizamos) o o mundo - o nosso, interior, e aquele que habitamos e herdámos das gerações que nos precederam. Vivemos um presente que confunde os significados, as designações, os sinónimos, cria a extensões de sentido tão numerosas e variadas que não raro tremelicam de falta de sentido na nova acepção, algumas. Arrisco que muitas vezes confundimos operacionalidade com funcionalidade. Confusão perniciosa. Clarificando: a funcionalidade é uma propriedade dos objectos; pelo que um utilitário é um objecto, qualquer objecto, funcional - por funcional entenda-se a assunção da capacidade de cumprir uma função, idealisticamente aquela para que foi concebido o objecto. Um leque, por exemplo, é funcional e por isso um utilitário: mediante acção humana, duas mãos voluntariosas, mantém fresquinha a área que vai do meu pescoço à minha testa. A operacionalidade é outra coisa. A operacionalidade funciona como reguladora da normalidade, não se enquadrando na categoria 'propriedade de um objecto' - não é uma capacidade para -, é um valor - o que contém a agilização de um ou mais processos, geralmente se não complementares, pelo menos co-ocorrentes. Um motor, por exemplo, é um mecanismo operativo, ou seja um conjunto de circuitos que asseguram o bom funcionamento, i.é., constituem o meio privilegiado de operacionalidade de uma máquina, qualquer - pensemos numa ventoinha. Agora que o dei como exemplo, ocorre-me que a operacionalidade caracterizar-se-á a maior parte das vezes, também, como factor determinante da existência ou duração dos tais processos em curso, bem como da própria autonomia, mais ou menos relativa, da máquina.

A normalidade precisa de uma apologia. Quando se perceber que normalidade é vida, que as pequenas coisas, como as grandes, de que se compõe um dia, uma rotina, são as que dão sentido a quem o vive, a quem a pratica, perceberemos muito mais acerca de nós próprios e, consequentemente, dos outros. Somos todos muito mais iguais do que parecemos - mesmo que não o pareçamos, mesmo que não o queiramos demonstrar; queremos todos as mesmas coisas - mesmo que não as nomeemos pelas mesmas palavras, mesmo que não nos apareçam urgentes na mesma altura. No fundo, os leques estão condenados a sessenta minutos de Domingo de missa. A ventoinha não, a ventoinha está sempre ali, connosco todo o dia, a ventoinha não se perde no fundo de gavetas, não gasta, à vez, os braços, não refresca parcialmente; a ventoinha dispõe bem, a ventoinha ajuda a trabalhar, e é para sempre. A ventoinha é para sempre.

7 comentários:

Maria Rita disse...

Confesso que a maior parte dos dias me apetece ser fora no normal, fugir de alguns padrões com os quais não me identifico. Mas a verdade é essa, no fim todos queremos o mesmo, todos queremos um grande objectivo final em comum: a felicidade; ou, citando Kandisnky, encontrar a verdadeira "necessidade interior da alma".

Que nunca deixe de me por a pensar!, Joaninha. :)

Beijinhos*

Joana disse...

Frida,

A normalidade não é a mediania. Também faço por sair da mediania todos os dias. ;) E sim, o Kandinsky lia-nos bem. :)))))))))))))))))

Falava da normalidade como uma estrutura que se busca, na qual somos o que de melhor podemos ser, uma série de circunstâncias/condições que nos levam a agir, realmente agir sobre o que é nosso/de todos no sentido da optimização. Felicidade sim, necessidade interior da alma sim. :D

Nunquinha, enquanto me der para pensar também, eheheheh! está prometido, Ritinha! ;)

Jinhos.

Vanessa disse...

já ontem li isto e não consegui comentar. mas sabes que - mesmo quando não parece - concordo contigo. :)

beijo e até logo*

Joana disse...

Vanessa,

Ahahahahah!!! Não conseguir comentar é bom, muito melhor que concordar ou discordar. O objectivo não é esse. Importante é eu pensar sobre e vocês pensarem com(igo). Ai caramba que isto saiu egoísta! :S


Jinhos.

Vanessa disse...

eu percebi. eheh! e é das coisas que já não dispenso, isso de pensar contigo. ;)

Ouriço-Cacheiro disse...

A normalidade precisa de uma apologia. A normalidade que cada um pratica através do cumprimento das suas normas que são, como dizes, tão parecidas com os outros. Afinal somos todos da mesma espécie. Só temos de treinar um bocadinho mais a interpretação das normas do próximo e talvez daí retirar qualquer coisa que aperfeiçoe as nossas. Ah, a normalidade...
:-)

Unknown disse...

a normalidade é um conceito cientifico com o que isso, estranhamente, tem de mais redutor na pragmática da comunicação humana. mas entendo bem o que pretendes dizer (e muito bem)

beijinhos