terça-feira, outubro 11, 2011

Funchal

Tomas Tranströmer (1931 - )
Imagem daqui

O restaurante do peixe na praia, uma simples barraca,
construída por náufragos.

Muitos, chegados à porta, voltam para trás, mas não assim as
rajadas de vento do mar. Uma sombra encontra-se num
cubículo fumarento e assa dois peixes, segundo uma antiga
receita da Atlântida, pequenas explosões de alho.

O óleo flui sobre as rodelas do tomate. Cada dentada diz que o
oceano nos quer bem, um zunido das profundezas.

Ela e eu: olhamos um para o outro. Assim como se trepássemos
as agrestes colinas floridas, sem qualquer cansaço.
Encontramo-nos do lado dos animais, bem-vindos, não
envelhecemos. Mas já suportámos tantas coisas juntos,
lembramo-nos disso, horas em que também de pouco ou nada
servíamos ( por exemplo, quando esperávamos na bicha para
doar o sangue saudável – ele tinha prescrito uma transfusão).
Acontecimentos, que nos podiam ter separado, se não nos
tivéssemos unido, e acontecimentos que, lado a lado,
esquecemos – mas eles não nos esqueceram!

Eles tornaram-se pedras, pedras claras e escuras, pedras de um
mosaico desordenado.

E agora aconteceu: os cacos voam todos na mesma direcção, o
mosaico nasce.

Ele espera por nós. Do cimo da parede, ele ilumina o quarto de
hotel, um design, violento e doce, talvez um rosto, não nos é
possível compreender tudo, mesmo quando tiramos as roupas.

Ao entardecer, saímos. A poderosa pata, azul escura, da meia
ilha jaz, expelida sobre o mar. Embrenhamo-nos na multidão,
somos empurrados amigavelmente, suaves controlos, todos
falam, fervorosos, na língua estranha. “ um homem não é uma
ilha.“ Por meio deles fortalecemo-nos, mas também por meio de
nós mesmos. Por meio daquilo que existe em nós e que os outros
não conseguem ver. Aquela coisa que só se consegue encontrar
a ela própria. O paradoxo interior, a flor da garagem, a válvula
contra a boa escuridão.
Uma bebida que borbulha nos copos vazios. Um altifalante que
propaga o silêncio.

Um atalho que, por detrás de cada passo, cresce e cresce. Um
livro que só no escuro se consegue ler.

Tomas Tranströmer
(Trad. Luís Costa a partir de Hans Grössel)

sexta-feira, outubro 07, 2011

De livros

Recebido desta menina.

1. Existe um livro que lerias e relerias várias vezes?

Há três que levo comigo para todo o lado para reler, e de facto já os reli com frequência: a Poesia, Daniel Faria (Quasi), A Origem da Tragédia no Espírito da Música, Friedrich Nietzsche (Edições 70), Mrs. Dalloway, Virginia Woolf (Vintage International).


2. Existe algum livro que começaste a ler, paraste, recomeçaste, tentaste e tentaste e nunca conseguiste ler até ao fim?

O Renascer: Diários e Apontamentos 1947 - 1963, Susan Sontag (Quetzal). Pese muito embora o facto de permitir perceber o percurso intelectual de uma pensadora brilhante, dá na mesma medida a sua fragilidade íntima (emocional, psicológica, anímica...) de um modo tão pungente e tão triste que, assumo, de todas as vezes me deixou de rastos.

3. Se escolhesses um livro para ler para o resto da tua vida, qual seria ele?

Não percebi se é um dos lidos, se um dos por ler. De qualquer das formas, a minha bíblia, depois da Bíblia, é o Livro das Horas, Rainer Maria Rilke (Assírio e Alvim).


4. Que livro gostarias de ter lido mas que, por algum motivo, nunca leste?

São muitos. E nunca é uma palavra demasiado definitiva. Os três do topo da pilha que re-organizei, por ordem de urgência, este verão: Ulysses, James Joyce (Vintage International), Rayuela - O Jogo do Mundo, Júlio Cortázar (Cavalo de Ferro), Guerra e Paz, Lev Tolstói (Presença).


5. Que livro leste cuja 'cena final' jamais conseguiste esquecer?

Ah, Perto do Coração Selvagem de Clarice Lispector (Relógio d'Água). Leiam, leiam.


6. Tinhas o hábito de ler quando eras criança? Se lias, qual era o tipo de leitura?

O que toda a gente leu: as Anitas, os Tintins, os Tios Patinhas, os Zé Cariocas, as colecções Cinco e Uma Aventura porque estavam lá em casa. A Alice Vieira, a Sophia e a Maria Alberta Menéres, por causa da escola.


7. Qual o livro que achaste chato mas ainda assim leste até ao fim? Porquê?

Havendo livros que custam mais do que outros a ler, não há livros chatos. A leitura, a leitura de literatura (de ficção, ensaio científico, etc.) é exigente. É um exercício de nós contra o texto contra nós (e o contrário: de nós com o texto connosco). E é por isso que vale a pena e é por isso que é formativa.

8. Indica alguns dos teus livros preferidos.

Há livros que nos tocam particularmente, porque nos encantam ou nos fustigam e interpelam. Há livros que nos mudam a vida (ou, se calhar, a vida é que nos muda e depois acontece os livros cairem-nos no colo...) e são alguns desses que vou nomear: O Nome das Coisas, Sophia de Mello Breyner Andresen (Moraes Editores), Cartas a Lucílio, Lúcio Aneu Séneca (FCG), A Mãe, Máximo Gorki (Editorial Caminho), Giulietta, Frederico Fellini (Círculo de Leitores), Hunger, Knut Hamsun (Vintage International), Alguns Gostam de Poesia, Czeslaw Miloz e Wislawa Szymborska (Cavalo de Ferro).
9. Que livro estás a ler neste momento?

A Casa Amarela de Martin Gayford (Bertrand) no metro e à noite Vivre Avec Picasso, Françoise Gilot (Carlton Lake).

10. Indica dez amigos para o Meme Literário:

Todos os seguidores, leitores e comentadores estão convidados.

terça-feira, outubro 04, 2011

domingo, outubro 02, 2011

Coisas do outro mundo - 2

Há pouco mais de meio ano que vivo neste T1 de duas janelas. Há pouco mais de meio ano que, naturalmente, uso o estendal da roupa. Dei por ele, logo de início: sinistro, sumamente sinistro, qualquer coisa entre o predador e o doente mental com atraso. É velho de uma velhice grosseira e desleixada. De manhã corre o estore em pijama, abre a janela, e coloca sobre o parapeito, e para o dia, um descansa-cotovelos de um florido muito gasto. Antes do almoço, posta-se na sua guarita. Depois do almoço posta-se na sua guarita. Não fala com ninguém. Estranho não falar com ninguém. Das outras janelas as vizinhas falam-se: contam-se das férias, das doenças, dos filhos, dos netos, dos mortos. É o único homem sozinho que vem à janela na minha rua. Um homem quieto e calado, assustadoramente quieto e calado. Passa a tarde dentro de casa. À noite, volta à guarita. Nunca sai. Mora sozinho. Imagino-o a roer côdeas de pão, a beber café fraco, a falar com os móveis, a cortar laranjas aos quartos, a contar os badalos do relógio - vislumbrei há dias um relógio de badalo no fundo da janela - no desespero perigoso, o do silêncio entre quatro paredes. Quando é sábado ou domingo e o meu namorado está cá, não nos demoramos à janela: o meu namorado fuma depressa e eu agradeço. Enigmaticamente, sorri-nos. Sentimo-nos muito sem ar, muito sem paz, da janela dele à nossa três metros de fio de repelência, despudor e susto. Levou mais de meio ano a meter-se comigo no estender mecânico da roupa. Sempre pensei que o fosse fazer usando o pscht, pscht menina. Mas não. Optou por um assobiar doce de passarinho seguido de arenguice em baixo volume. Fui para dentro.

sábado, outubro 01, 2011

quinta-feira, setembro 29, 2011

quarta-feira, setembro 28, 2011

Tu estás aqui

Estás aqui comigo à sombra do sol
escrevo e oiço certos ruídos domésticos
e a luz chega-me humildemente pela janela
e dói-me um braço e sei que sou o pior aspecto do que sou
Estás aqui comigo e sou sumamente quotidiano
e tudo o que faço ou sinto como que me veste de um pijama
que uso para ser também isto este bicho
de hábitos manias segredos defeitos quase todos desfeitos
quando depois lá fora na vida profissional ou social só sou um nome e sabem
o que sei o
que faço ou então sou eu que julgo que o sabem
e sou amável selecciono cuidadosamente os gestos e escolho as palavras
e sei que afinal posso ser isso talvez porque aqui sentado dentro de casa sou
outra coisa
esta coisa que escreve e tem uma nódoa na camisa e só tem de exterior
a manifestação desta dor neste braço que afecta tudo o que faço
bem entendido o que faço com este braço
Estás aqui comigo e à volta são as paredes
e posso passar de sala para sala a pensar noutra coisa
e dizer aqui é a sala de estar aqui é o quarto aqui é a casa de banho
e no fundo escolher cada uma das divisões segundo o que tenho a fazer
Estás aqui comigo e sei que só sou este corpo castigado
passado nas pernas de sala em sala. Sou só estas salas estas paredes
esta profunda vergonha de o ser e não ser apenas a outra coisa
essa coisa que sou na estrada onde não estou à sombra do sol
Estás aqui e sinto-me absolutamente indefeso
diante dos dias. Que ninguém conheça este meu nome
este meu verdadeiro nome depois talvez encoberto noutro
nome embora no mesmo nome este nome
de terra de dor de paredes este nome doméstico
Afinal fui isto nada mais do que isto
as outras coisas que fiz fi-Ias para não ser isto ou dissimular isto
a que somente não chamo merda porque ao nascer me deram outro nome
que não merda
e em princípio o nome de cada coisa serve para distinguir uma coisa das
outras coisas
Estás aqui comigo e tenho pena acredita de ser só isto
pena até mesmo de dizer que sou só isto como se fosse também outra coisa
uma coisa para além disto que não isto
Estás aqui comigo deixa-te estar aqui comigo
é das tuas mãos que saem alguns destes ruídos domésticos
mas até nos teus gestos domésticos tu és mais que os teus gestos domésticos
tu és em cada gesto todos os teus gestos
e neste momento eu sei eu sinto ao certo o que significam certas palavras como
a palavra paz
Deixa-te estar aqui perdoa que o tempo te fique na face na forma de rugas
perdoa pagares tão alto preço por estar aqui
perdoa eu revelar que há muito pagas tão alto preço por estar aqui
prossegue nos gestos não pares procura permanecer sempre presente
deixa docemente desvanecerem-se um por um os dias
e eu saber que aqui estás de maneira a poder dizer
sou isto é certo mas sei que tu estás aqui

Ruy Belo aqui

segunda-feira, setembro 26, 2011

De outonos que são como primaveras *

António Machado (1875 - 1939)
Imagem daqui

Caminante son tus huellas
El camino nada más;
caminante no hay camino
se hace camino al andar.
Al andar se hace camino
y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.
Caminante, no hay camino
sino estelas sobre el mar.
¿Para que llamar caminos
A los surcos del azar...?
Todo el que camina anda,
Como Jesús sobre el mar.

Yo amo a Jesús que nos dijo:
Cielo y tierra pasarán
Cuando cielo y tierra pasen
mi palabra quedará.
¿Cuál fue Jesús tu palabra?
¿Amor?, ¿perdón?, ¿caridad?
Todas tus palabras fueron
una palabra: Velad.
Como no sabéis la hora
En que os han de despertar,
Os despertarán dormidos
si no veláis; despertad.



* palavras desta menina.

sexta-feira, setembro 23, 2011

quarta-feira, setembro 21, 2011

terça-feira, setembro 20, 2011

segunda-feira, setembro 19, 2011

De outras Joanas - 8

O Silêncio

Era complicado. Primeiro deitou os restos de comida no caixote do lixo. Depois passou os pratos e os talheres por água corrente debaixo da torneira. Depois mergulhou-os numa bacia com sabão e água quente e, com um esfregão, limpou tudo muito bem. Depois tornou a aquecer água e deitou-a no lava-loiças com duas medidas de sonasol e de novo lavou pra­tos, colheres, garfos e facas. Em seguida passou a loiça e os talheres por água limpa e pô-los a escorrer na banca de pedra.

As suas mãos tinham ficado ásperas, esta­va cansada de estar de pé e doíam-lhe um pou­co as costas. Mas sentia dentro de si uma gran­de limpeza como se em vez de, estar a lavar a loiça estivesse a lavar a sua alma. A luz sem abat-jour da cozinha fazia brilhar os azulejos brancos. Lá fora, na doce noite de Verão, um cipreste ondulava branda­mente.

O pão estava no cesto, a roupa na gaveta, os copos no armário. O vaivém, a agitação e o tumulto do dia repousavam.

Havia um grande sossego. Tudo estava ar­rumado e o dia estava pronto.

E Joana atravessou devagar a sua casa.

Ia abrindo e fechando as portas, abrindo e fechando as luzes. Os quartos desapareciam no escuro e surgiam do escuro na claridade.

Um doce silêncio pairava como uma sede estendida.

O silêncio desenhava as paredes, cobria as mesas, emoldurava os retratos. O silêncio escul­pia os volumes, recortava as linhas, aprofunda­va os espaços. Tudo era plástico e vibrante, denso da própria realidade. O silêncio como um estremecer profundo percorria a casa.

As coisas conhecidas — o muro, a porta, o espelho — mostravam uma por uma a sua bele­za e a sua serenidade. E nas janelas abertas a noite de Junho mostrava o seu rosto constelado e suspenso.

Joana deu lentamente a volta à sala. To­cou o vidro, a cal, a madeira. Há muito já que cada coisa tinha encontrado ali o seu lugar. E era como se esse lugar, como se a relação entre a mesa, o espelho, a porta, fossem a expressão de uma ordem que ultrapassava a casa.

As coisas pareciam atentas. E a mulher que lavara a loiça procurava o centro dessa atenção. Sempre o procurara, mas quem o po­de captar?

O silêncio agora era maior. Era como uma flor que tivesse desabrochado inteiramente e alisasse todas as suas pétalas.

E em roda deste silêncio os astros da noite exterior giravam lentamente e o seu movimen­to imperceptível tomava em si a ordem e o si­lêncio da casa.

Com as mãos tocando a parede branca Joa­na respirou docemente. Era ali o seu reino, ali na paz da contemplação nocturna. Da ordem e do silêncio do universo erguia-se uma infinita liberdade: Ela respirava essa liberdade que era a lei da sua vida, o alimento do seu ser.

A paz que a cercava era aberta e transparente. A forma das coisas era uma grafia, uma escrita. Uma escrita que ela não entendia mas reconhecia.

Atravessou a sala e debruçou-se na janela aberta em frente do puro instante azul da noi­te.

As estrelas brilhavam, íntimas e distantes. E pareceu-lhe que entre ela e a casa e as estrelas fora estabelecida desde sempre uma aliança. Era como se o peso da sua consciência fosse ne­cessário ao equilíbrio das constelações, como se uma intensa unidade atravessasse o universo in­teiro.

E ela habitava essa unidade, estava presen­te e viva na relação das coisas e a própria reali­dade atenta a abrigava em sua imensa e aguda presença.

No ar, na cal, no vidro, tocava a sua felici­dade e essa felicidade era no seu centro unida­de.

Debruçou-se na janela e apoiou os braços na pedra fresca do parapeito.

Uma leve brisa agitou os ramos dos cedros. No rio, rouca, apitou uma sereia. Na torre o si­no bateu duas badaladas. Foi então que se ouviu o grito.

Um longo grito agudo, desmedido. Um grito que atravessava as paredes, as portas, a sa­la, os ramos do cedro.

Joana virou-se na janela. Houve uma pau­sa. Um pequeno momento imóvel, suspenso, hesitante. Mas logo novos gritos se ergueram, trespassando a noite. Estavam a gritar na rua, do outro lado da casa. Era uma voz de mulher. Uma voz nua, desgarrada, solitária. Uma voz que de grito em grito se ia desformando, desfi­gurando até ficar transformada em uivo. Uivo rouco e cego. Depois a voz enfraqueceu, bai­xou, tomou um ritmo de soluço, um tom de la­mentação. Mas logo voltou a crescer, com fúria, raiva, desespero, violência.

Na paz da noite, de cima a baixo, os gritos abriram uma grande fenda, uma ferida, E as­sim como a água começa a invadir o interior en­xuto quando se abre um rombo no casco de um navio, assim agora, pela fenda que os gritos ti­nham aberto, o terror, a desordem, a divisão, o pânico penetravam no interior da casa, do mundo, da noite.

Joana afastou-se da janela que dava para o jardim, atravessou a sala, o corredor e o quarto e, no outro lado da casa, debruçou-se na janela que dava para a rua.

A mulher via-se mal, agarrada à parede, na meia-luz, do outro lado do passeio. Os seus gritos nus, próximos, desmedidos enchiam a penumbra. Na sua voz a terra e a vida tinham despido os seus véus, o seu pudor e mostravam o seu abismo, revelavam a sua desordem, a sua treva. De uma ponta à outra da rua os gritos corriam batendo contra as portas fechadas.

Era uma rua estreita, apertada entre edifí­cios sem cor, pesados e tristes. Ali a noite era cinzenta, o ar baço, parado e pegajoso.

Cães vadios farejavam o chão dos passeios e rebuscavam os caixotes do lixo tentando agar­rar sob as tampas os restos, as cascas, o pescoço da galinha degolada.

O edifício enorme da prisão enchia todo o lado esquerdo da rua com as altas paredes cor­tadas por pequenas janelas de grades. A essa parede estava encostada a mulher. As vezes er­guia a cara e então via-se o rosto torcido e desfi­gurado pelo grito. Ao seu lado desenhava-se o vulto de um homem. Era tarde. As portas e as janelas estavam fe­chadas sobre gente adormecida e na rua não pas­sava mais ninguém. Só de longe a longe se ouvia um chiar de carros na viragem das esquinas.

O homem procurava arrastar a mulher e, quando os gritos diminuíam um instante, im­plorava-lhe que se calasse, pedia:

— Vamos embora.

Mas ela não o ouvia. Gritava como se esti­vesse só no mundo, como se tivesse ultrapassa­do toda a companhia e toda a razão e tivesse encontrado a pura solidão. Gritava contra as paredes, contra as pedras, contra a sombra da noite. Erguia a sua voz como se a arrancasse do chão, como se o seu desespero e a sua dor bro­tassem do próprio chão que a suportava. Erguia a sua voz como se quisesse atingir com ela os confins do universo e, aí, tocar alguém, acordar alguém, obrigar alguém, a responder. Gritava contra o silêncio.

Às vezes calava-se um momento e inclina­va a cabeça para trás como quem espera ouvir uma resposta.

Então, de novo, o homem implorava:

— Cala-te, cala-te. Vamos embora daqui.

Mas ela recomeçava a gritar e batia com os punhos na parede da prisão como se quisesse forçar a pedra a responder. Gritava como se quisesse atingir um ausente, acordar um ador­mecido, abalar uma consciência impassível e, alheada, tocar o coração de um morto.

Através das paredes, das portas, das ruas, da cidade, gritava para o fundo do universo, para o fundo do espaço, para o fundo da ocul­tação da noite, para o fundo do silêncio.

De repente calou-se, curvou a cabeça, ta­pou o rosto com as mãos. Então o homem co­briu-lhe os cabelos com o xaile, afastou-a da parede, passou-lhe um braço em roda dos om­bros, e, devagar, juntos, desceram a rua e vira­ram a esquina.

Durante algum tempo flutuou no ar pesa­do da rua um eco de soluços e de passos que se afastavam e diminuíam. Depois voltou o silên­cio.

Um silêncio opaco e sinistro onde se ouvia o esgravatar dos cães.

Joana voltou para a sala. Tudo agora, des­de o fogo da estrela até ao brilho polido da me­sa, se tinha tornado desconhecido. Tudo se tinha tornado acidente absurdo, sem ligação, sem reino. As coisas não eram dela, nem eram ela, nem estavam com ela. Tudo se tornara alheio, tudo se tornara ruína irreconhecível.

E, tocando sem os sentir o vidro, a madei­ra, a cal, Joana atravessou como estrangeira a sua casa.



Sophia de Mello Breyner Andresen
Histórias da Terra e do Mar
Figueirinhas
2006

quarta-feira, setembro 14, 2011

Gente gira - 6


Karen Blixen e a sua pequena coruja africana
Imagem daqui

terça-feira, setembro 13, 2011