sábado, abril 22, 2006

House, M.D.


A vida tem coisas engraçadas. Desde há algum tempo tenho notado que a minha existência teima em entrecuzar-se, entrançar-se e, as mais das vezes, emaranhar-se com a Medicina. Nem sempre de forma pacata. Infelizmente.
Primeiro foi no fim do liceu. Recebi milhentos “Parabéns, tem uma média digna de Medicina!” babadíssimos… de boa educação (alguns), admiração (no sentido da surpresa – claro! – muitos), inveja (um sem-número) e por aí fora… Uma média digna de Medicina… que paráfrase tão inesperada para traduzir uma média a roçar os…! (não vale a pena especificar, todos sabemos as cifras em questão) É sintomático do país que temos, suponho.
O que vale é que as Humanidades eram a minha área e decidi abraçá-las como carreira de futuro com a mesma dedicação e entrega com que teria abraçado a Medicina ou outro campo qualquer do saber se tal me tivesse despertado interesse. “Que desperdício, podia ao menos ter enveredado pela Magistratura!” Ainda ouvi. Será que em Portugal só é importante que é médico ou juiz? Não se incomodem, eu sei a resposta. Infelizmente. A pergunta é mesmo retórica. É que isto de ter DR antes do nome é muitíssimo bom… Duas letrinhas apenas, mas que abrem muitas portas, muitos sorrisos e fazem desdobrar toda uma panóplia de infindáveis e subservientes atenções. Em Portugal. Só. Graças a Deus.
Fiz o meu curso na minha paz de espírito e terminei-o basicamente com a mesma média do liceu. É claro que, sendo professora, ao fim do curso seguir-se-ia necessariamente o desemprego. E lá ouvi outra vez “E a Medicina, isso é que é uma carreira de futuro!... 22 anos, tão jovem, ainda vai tão a tempo, prometa-me que vai pensar nisso…”, curiosamente da boca de um dos meus professores, enfim… até o entendo. Mas Medicina… ainda não.
Esqueci-me de mencionar que, em parte, a minha paz de espírito (e consequentemente alguns bons resultados) ao longo do curso também se deve à Tuna de Medicina do Porto que vi pela primeira vez actuar em 98 ou 99, não me recordo ao certo, ainda no mítico Teatro Circo em Braga. Lembro-me de ter ficado completamente estupefacta e com as lágrimas a correrem-me incessantemente pela cara… A partir dessa altura guardei-lhes uma devoção extrema que conservo tal como os cds que adquiri posteriormente e que até hoje me acompanham quando estou longe de casa. E apesar de os tempos terem mudado, as pessoas serem outras e termos tido as nossas grandes diferenças, a devoção mantém-se quase inalterada (acreditem eles ou não) na esperança de voltar um dia a ficar estupefacta e chorar com a mesma alegria pura…
Bem, depois do curso não fui para o desemprego, salva pela média (dá sempre jeito ter uma média de Medicina!…) e fiquei a dar aulas na Faculdade. Descobri que essa minha actividade não o era – apenas e simplisticamente – em boa verdade, já que todos a encaravam (menos eu, até ao momento do embate com a realidade) como um cargo que, curiosamente, também se incluía no escalão DR, independentemente de ter ou não um Doutoramento – a ver não tanto pelo (sempre cordial) tratamento dos meus alunos – mas mais até pela abertura quase automática não tanto de portas, mas de sorrisos e delicadezas. Na realidade o que acontecia era o seguinte: como não me tinha ainda apercebido da importância do “cargo”, quando inquirida a esse respeito, dava invariavelmente uma definição genérica da actividade. “Dou aulas. Sou Professora.” Suspiro. Sorriso condescendente. Sorriso amarelo. Sorriso cínico. “…na Faculdade. Dou aulas na Faculdade.” “Ah, muito bem.” “…bem me queria parecer que a menina…” E assim foi-me revelada a POLISSEMIA da palavra “professor” na Língua Portuguesa, ou melhor, no país pequenino que é Portugal. É como se de repente nascesse o Sol, um sol enorme, nos olhos pequeninos dessas pessoas ainda mais pequeninas e a iluminação da constatação tomasse todo o espaço envolvente. Abrem-se sorrisos, desdobram-se atenções. Isto sem esquecer o louvor da inteligência que se impõe após a iluminação. “Tão nova…, deve ser muito inteligente...”
Acho que não existe algo denominado “oscilação de QI”. Se existe, não considero que padeça dessa maleita. Portanto, era tão inteligente nos anos em que leccionei no Ensino Superior, como naqueles dois em que dei aulas no Ensino Básico e Secundário (houve até um ano em que cheguei a trabalhar simultaneamente no Básico e na Universidade). Sou tão inteligente agora que faço investigação, como o seria se tivesse optado por constituir já família e dedicar-me a ela em exclusivo. A inteligência não é uma questão de resultados. É uma questão de abordagem, interpretação e (re)solução de problemas. Sejam eles de que ordem forem: intelectuais, sociais, emocionais, pragmáticos/quotidianos. Daí falar-se frequentemente em vários tipos de inteligência.
Tenho a certeza de que sou, em alguns campos, muito menos inteligente do que alguns meus colegas (que, sim, estão no desemprego – ou muito longe de casa, ou numa outra qualquer actividade menor, as mais das vezes exploratória e portanto mal paga – porque, pura e simplesmente, são jovens licenciados, professores, em Portugal.) E, porque já lhes disse e falámos longamente sobre isso, sei que só eu é que lhes reconheço essas qualidades. Infelizmente.
Entristece-me profundamente o facto de a Universidade não só não o ter feito – o que é gravíssimo –, mas pior, surpreende-me, como não os conseguiu motivar para o demonstrarem mais abertamente. Nem toda a gente é observadora como eu.
Fico feliz por estarem a investir em mestrados e pós-graduações, pois no dia em que depender de mim, e esse dia vai chegar, quero-os a trabalhar comigo. Definitivamente. E se não for comigo, quero-os pelo menos no cargo que a inteligência que revelam merece. Objectivamente.
Mas voltando à Medicina. Impor-se-ia agora a alusão óbvia à conjuntura (estrutura?) nacional: a inflação das médias para esse curso (sintomática do poder de certos lobbies e da luta destes pela manutenção do status quo e pelo assegurar do “negócio de família”), a assimetria entre os dezanoves e a cultura (ou falta dela) que ALGUNS futuros médicos revelam, a aberração que é ALGUNS optarem pela área ou para seguirem a tradição familiar ou para resolverem as frustrações profissionais dos pais, a enormidade que é MUITOS abraçarem tão nobre e sagrada actividade com o fito nos rendimentos (com tudo o que daí advém) só porque é a única carreira de futuro, estável e segura economicamente, no nosso país.
Não vou falar disso. Conheço gente que contradiz todos os exemplos que acabei de dar. Factualmente. Felizmente. E, apesar guardar estórias (reais, pessoais) pouco abonatórias para a classe em termos humanos e até de competência profissional, tenho fé que as novas gerações conseguirão inverter a tão portuguesa tendência da crítica gratuita com exemplos, bons exemplos, de profissionalismo e humanidade. Porque o mal das pessoas pequeninas do nosso pequenino país é considerarem os médicos criaturas sobre-humanas (seja pelos sinais de riqueza que ostentam, seja pelo esforço constante que deve ser não soçobrarem quando as cargas horárias de trabalho são francamente inumanas). Convenhamos: eles não são deuses, mas tão-somente pessoas normais, com qualidades e defeitos como as outras, humanos como nós. Admito que por vezes isso seja difícil de percepcionar até porque o português comum mais frequentemente (e conscientemente, invejosamente se calhar também…) se cruza com os que passeiam o descapotável ou jantam em restaurantes de primeira categoria do que com os que, em missões nacionais ou internacionais, tantas vezes se esquecem de si próprios em prol dos outros. São pessoas. Como nós. E os que trabalham horas e horas a fio, de dia e de noite, e passeiam o cão ao Sábado de manhã e vão ao supermercado? Pessoas. Como nós. Será que o português comum os conhece? Até é possível. Mas nunca os associará à classe. Não da mesma forma subserviente e gulosa. Portuguesa.
Mas talvez… um dia… quem sabe?...

Quando cá cheguei, tratei de arranjar alojamento e por uma série de razões acabei por alugar um apartamento num dos muitos condomínios adjacentes ao reputadíssimo Centro Médico de Houston, pelo que os meus vizinhos são TODOS alunos de… Medicina. E, acabei por perceber, têm um perfil que é universal. Ou pelo menos igualzinho aos congéneres portugueses. Têm o mesmo aspecto (típico!). Vestem igual. Estudam na mesma proporção. E falam das mesmas coisas: Medicina, Medicina, Medicina… Assim fiquei a aprender que: as cadeiras difíceis são… as mesmas (!); a actual rotação dos blocos é sempre mais injusta do que a da turma anterior; também cá existem professores a leccionar quando já deviam estar a gozar a reforma e que muitos dos profissionais pouco ou nada ligam aos estudantes que povoam os corredores. Enfim, recapitulação das estórias que sei de cor e que ouvia com fraternal atenção (e francamente com uma curiosidade infantil de tão intensa) quando estava em Portugal. A diferença é que aqui todos os futuros médicos, tal como os mais comuns dos mortais, andam de autocarro. É aí que as ditas conversas têm lugar. E, na paragem, deixam passar as meninas à frente. Mesmo que isso implique ir de pé no autocarro. Esta manhã passei à frente de uns dez, só porque, chegando na hora h, o primeiro da fila me deu o lugar. Ainda olhei para os outros com um pedido de desculpas tímido e embaraçado nos olhos. Mas todos me abanavam a cabeça que sim e sorriam. Pura e simplesmente adoráveis!
Sábado comprei uma televisão. Um colega cá do Departamento queria ver-se livre da dele e estava a pedir 10 dólares. Ainda hesitei porque estes três meses sem televisão têm sido fantásticos para mim. Tenho lido e escrito muito mais do que é costume. Já dormi ao relento apenas pelo gozo de olhar o céu, já apanhei uma senhora molha… E tudo porque só há pouco me apercebi que se não viver o momento que passa intensamente jamais o poderei capturar na memória. Porque se esvai na efemeridade do tempo. Tem-me feito bem. Muito bem, aliás. Mas, como a módica quantia de dez dólares não é nada módica em argumentos, conseguindo até ser muito persuasiva, lá sucumbi ao ímpeto consumista. Porque ver televisão é importante. Até em termos sociológicos. Sobretudo em termos sociológicos. Porque de resto, é tal como em Portugal: quase nada se aproveita. Os blocos informativos, porém, têm a duração de 30 minutos. Ah, civilização!...
Então, assim que liguei a televisão, pasmei ante a natureza dos anúncios publicitários deste país. Qual sumo, qual pacote de bolachas, qual detergente, qual esfregona mágica!?… Aqui anuncia-se saúde. Medicação para tudo. Medicação. Para baixar o colestrol, para as falhas de memória, para a insónia, para a disfunção eréctil, para a depressão… Quase exclusivamente medicação. De quando em vez, muito de quando em vez, um cartão de crédito, um ou outro restaurante de comida rápida, um carro (Chevrolet, o “chevy” dos americanos, pois claro!). Fiquei extremamente surpreendida. Apanhou-me desprevenida. Mas estive a pensar e faz todo o sentido. Num país onde circula tanto dinheiro, onde tudo é adquirível por (quase) todos, a única coisa que lhes falta, por não ser, precisamente, adquirível, é mesmo a saúde. Se calhar, por isso também (porque ninguém está imune) é que abundam as séries televisivas que espelham ou retratam (ou, mais realisticamente, pretendem impor) uma mundividência hospitalar baseada no dia-a-dia, nas relações humanas referentes aos doentes e muito especialmente ao pessoal médico. Senão vejamos: E.R., Scrubs, Grey’s Anatomy, House, M.D. – as que conheço até agora, pode haver mais…
Quando era adolescente vibrava com o “E.R.” Acho que toda uma geração passou pelo mesmo. Já vi cá episódios actuais e, como todas as séries televisivas que se estendem para além do admissível, desiludiu-me um pouco. Mudaram as personagens, mudaram os cenários, mudou o carácter dos que ficaram, mudou o olhar… É como se de uma outra série se tratasse. E essa será porventura a melhor maneira de a ver: fugindo às comparações – dessa maneira já não desilude. “Scrubs” é do tipo de comédia que me passa absolutamente ao lado. Não gosto. Já tinha visto na TV Cabo e não gostei e apesar de aqui estar muito avançada, continuo a não simpatizar com o personagem principal e com a orgânica da série em geral. “Grey’s Anatomy” parece-me um decalque baratinho dos bons tempos do E.R. e dispenso fotocópias ou imitações (apesar do trocadilho/jogo de palavras que preside ao ao título ser excelente!). “House, M.D.” vi há dias o primeiro episódio da segunda temporada na Fox, não conhecia. Surpreendeu-me quase tanto como a profusão de propaganda médica nos intervalos para publicidade. É claro que é mais uma série, americana, e desta feita, uma série de suspense. Puro suspense. Pelo que me foi dado a entender, de cada vez, uma pessoa com sintomas estranhíssimos vai ter ao hospital onde trabalha o House, M.D. (importante, não esquecer!) e ele, numa luta, desigual e injusta, contra o tempo, tenta salvar o paciente em questão. Suponho deve ser bem sucedido a cada episódio. Ontem foi. Mas os insucessos também lá estão, num passado que paira sobre a cabeça do dito qual espada de Damócles. A série não ganhou, por agora (não tenho tempo!), mais um espectador, mas gostei do ambiente humano, da história e dos perfis que traçaram, especialmente para o House: meia-idade, esbanjando charme, louco – unanimemente considerado louco, audaz, determinado, incansável, altruísta, louco, louco, louco. Louco ao ponto de deixar um jantar de caridade, chiquíssimo, uma pilha enorme de fichas ganhas à colega cheia de si e o amigo, marido da colega, para atender um miúdo de sete anos, paciente da colega, com aparentes sintomas de desidratação provocados por uma diarreia. Louco ao ponto de trazer consigo da festa os três internos para juntos tentarem perceber o que se estava a passar e procederem às análises/despistagens necessárias. Louco ao ponto de em circunstância alguma retirar à colega o sabor da vitória ao jogo, ardilosa e conscientemente instilado por ele via telemóvel através do amigo. Louco por persistir. Louco por acreditar. Louco por ser como é.
Apesar da loucura e da pouca ortodoxia dos métodos deste homem, eu que tenho pavor à doença e consequentemente aos médicos, sentir-me-ei segura se houver nearby um médico assim.
Parece-me que a série está a passar agora em Portugal. Acho que quando regressar terei mais tempo livre e portanto vou dar uma hipótese ao House. Aliás, basta atentar no percurso de Hugh Laurie - de britânico típico a médico americano atípico! -, de George, príncipe-regente da 3ª série de Blackadder, passando por pai do Stuart Little, a House, M.D. - genial!

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