terça-feira, janeiro 22, 2008

Dos dias em que se morre mais

“Ah, não fiz a cama! Esqueci-me. Saí de manhã e nunca mais voltei aqui ao quarto.” Constatou, ficou triste, quis desculpar-se.Quis desculpar-se quando não tinha que o fazer. Não comigo. Nunca comigo. “Oh, é natural, quantas vezes saio e também deixo a minha por fazer.” Disse eu, para amainar o turbilhão de vergonha, ansiedade, angústia e mais vergonha, que, sabia, se ia seguir. Na realidade, sabíamos bem as duas que mesmo que nunca mais tivesse voltado ao quarto, não saíra dali de casa, e portanto deixamos a cama por fazer por razões infelizmente, tristemente, distintas.

Eram quatro da tarde e tinha-se esquecido de fazer a cama. Aquela coisa básica que se fartava de nos obrigar a não esquecer nunca a cada verão e a sermos rápidos a por em prática de manhã, logo após o banho“... que se abrirem a cama ao levantar, tem tempo suficiente para arejar...” – tinha-se apagado da sua memória, das prioridades do dia, pelo menos.

Ao resto já me habituei, ao resto, à sequência das mesmas perguntas sobre os assuntos de sempre: eu, a minha mãe, os meus irmãos, o meu pai, o meu tio, o sobrinho-neto, ao resto, ao ter de responder eu sempre de maneira diferente para não ficar triste ao perceber que acabou de me fazer a mesmíssima pergunta, ao resto, às advertências sempre sentidas, importantes, sinceras, mas despropositadas, acerca do nosso clã, ao resto, aos reparos sucessivos sobre um qualquer pormenor da minha roupa ou do cabelo, ao resto, ao atafulhar-me a pasta, a mala, os bolsos, de coisas absolutamente sem valor, estranhas e supérfluas, a isso tudo já me habituei, obrigou-me de certo modo a isso, também. Ao ter-se esquecido de fazer a cama, não. Ainda não.

Todos os dias morremos um pouco, morrem-nos não sei quantas células, mas há dias em que, morrendo-nos o mesmo número de células do dia anterior, morremos mais. Dias bonitos, como ontem, como hoje, dias de sol, dias frios, dias claros, dias de Inverno; dias tornados noite, dentro, onde não chega o frio, nem o sol descobre uma certeza pequenina, a de que vamos ser eternos na memória dos que amamos.

11 comentários:

Maria de Lourdes Beja disse...

Joaninha: quanto carinho!...E tão triste,para os meus fantasmas!

Musicologo disse...

A última frase diz tudo.

Joana disse...

Maria de Lourdes,

O carinho tem um condão especial: o de afastar fantasmas.:)

Musicólogo,

Sou perita em últimas frases. E tu devias ser professor de Escrita Criativa (o meu está-me sempre a dizer o mesmo que tu ;))

Jinhos a ambos.

100 remos disse...

Olá...lindo o teu texto. Vê o video lá no cem ( o do CSI )...kep the faith.Bjos

Oásis disse...

"vamos ser eternos na memória dos que amamos"... E é esse amor que te faz doer o coração quando a vês agora mas também que faz com que persistas em vê-la e em não esquecer que ela precisa desse amor, mais do que nunca.

Elipse disse...

texto tristinho este! mas bonito nas palavras.

rui disse...

Olá Joaninha

De certeza que sim. Nunca esqueceremos aqueles que amamos.
Lindo texto.

Beijinhos

Paulo disse...

O amor...

Joana disse...

Paulo,

A memória... e... A vida...

;) Jinhos.

Rui Caetano disse...

Um texto tão bonito e cheio de reflexão existencial POr morrermos um pouco todos os dias é que devemos viver a vida o máximo que conseguirmos.

Anónimo disse...

adorei*