terça-feira, janeiro 08, 2008

Eu, aqui, ainda de férias, longe da net, a ler...


... uma pilha de livros que a minha Mãe não me deixa comprar deles tão cedo...


Um pé de Alegra-Campo

O alegra-campo enroscava-se preguiçosamente nas estacas da latada, encobrindo alguns ramos da videira de americano.
Ao aproximar-se da Festa, o arbusto sabia que a podoa lhe seria apontada sem piedade. Ia para a lapinha, deixando campo aberto para as cepas que, depois de acordadas pelo podão, voltariam a se estender sobre as varas do pinheiro.
A casa era grande, mas nela vivia apenas uma mulher com mais de oitenta anos. O filho estava na África do Sul, desde os dezasseis anos de idade. O marido morrera, há mais de vinte, depois de tantos anos emigrado naquele Cabo da sua desventura. Quase toda a vida estivera só.
Governava a fazenda com mão de ferro. Desconfiada, deitava-se e levantava-se a fazer contas, com receio de vir a ser enganada, por não saber ler. MAS o seu nome, os meses do ano e alguns números conseguia por no papel. Costumava ter o modelo, no verso de uma gravura de calendário, sempre à mão, na gaveta do armário da cozinha. Quando precisava de passar o recibo da renda, fazia uma cópia demorada.
No ano em que lhe morreu o marido, não deixou de armar a lapinha. Dizia que dava azar não fazê-la. Só que não a construiu na sala, mas na arrecadação do rés-do-chão. Dessa vez, parece que foi maior que nos anos anteriores. A rochinha enchia por completo o quarto. Abria-se a porta que dava para o terreiro e de fora admirava-se o seu presépio. Eram montanhas altas cheias de musgo e algodão branco, deslizando pelas encostas abruptas. Na planície, dezenas de pastores, rebanhos de ovelhas e lagos de fragmentos de espelhos com muitos patos. Na gruta, a cena de Belém, rodeada de passarinhos na lapinha e jarras de vidro com junquilhos e sapatinhos do seu jardim.
No ano seguinte, o presépio voltou à sala de visitas que quase sempre permanecia fechada. Era grande, com uma mesa ao centro, sobre um tapete bastante colorido, e uma dúzia de cadeiras desconfortáveis a toda a volta. Nas paredes, a Ceia do Senhor e o Imaculado Coração de Maria em molduras douradas.
Preferia receber amigos e familiares na cozinha, à volta da mesa com toalha aos quadrados vermelhos e sentados em bancos pintados de azul. Lembro-me do seu sorriso, ao retirar do cântaro de avenca do centro da mesa, dobrar a toalha, abrir a gaveta e atirar as cartas para o jogo da bisca. Eram horas de partidas renhidas.
Depois começou a perder a paciência, deixou de sair, incompatibilizou-se com velhos conhecidos e cada vez estava mais só.
A erva crescia com abundância entre as bananeiras. Algumas latadas haviam caído. O fundo das levadas tinha muitas camadas de terra. O alegra-campo estava maior. No Natal, já não lhe cortava um ramo grande. Minguava a sua presença na lapinha. Ela já não podia subir o escadote, para dependurar a verdura nos pregos da parede, sobre as montanhas de papel pintado.
Há cinco anos, depois de Santo Amaro, não desarmou o presépio. Retirou as searas, o alegra-campo e as cabrinhas e depois estendei um plástico sobre a rochinha. “para a Festa, já não tenho trabalho”, disse-me.
Nos últimos quatro natais, plantou o milho e o trigo em pequenos vasos, mandou cortar um ramo do seu alegra-campo e acendeu a lamparina ao Menino Jesus. MAS já não rezava o terço junto da lapinha, como era seu hábito. Sentia muito frio e o sono abeirava-se dela, a meio do segundo mistério. Metia-se cedo na cama e pedia perdão a Deus, Nosso Senhor, por já não conseguir desfiar as contas do seu rosário.
Morreu só, há alguns meses.
O filho voltou depois do enterro. Desmanchou a lapinha, vendeu os móveis. Fez obras e pintou a casa. Comprou outras mobílias e cortinados, decorou tudo ao gosto da mulher. E cortou o alegra-campo pela raiz, porque dizia que aquele matagal matava a vinha.

Nelson Veríssimo, Passos na Calçada

2 comentários:

musqueteira disse...

Bom Ano...se começa sempre com livros!

rui disse...

Olá Joaninha

Ora viva!
De férias, rodeada de livros e num paraíso, a menina joana, não precisa de mais nada!
Já ouvi falar neste livro do Viríssimo, mas ainda não o li..., este excerto aguçou-me o apetite.

Continuação de umas repousantes férias e boa leitura.

Beijinhos