Já não saía de casa há muito tempo. Sair de casa é bom, quase tão bom quanto ficar em casa, ainda que por estas razões, enfim. Quando não saio de casa, faço aquelas coisas que uma pessoa, como eu, gosta sempre de fazer, especialmente porque sabe que em princípio não deverá fazer disso vida na vida que é a sua, a vida que é a sua, toda, a ser vivida mais ou menos à margem disso. Limpar, lavar roupa, loiça, cozinhar, passar a ferro, dar uns pontinhos, limpar, lavar roupa, loiça, cozinhar, passar a ferro. Coisas boas, coisas que deixam a cabeça livre para aquela musiquinha, os pensamentos todos no ar, dourados, a misturarem-se com o pó, a cairem sobre os móveis, o meu dedo a desenhar formas tontas na superfície de cada móvel, eu contente.
O meu irmão, andas contente, não andas?, tens um bebé para cuidar, refeições com horas, antibióticos com horas, casa arejada, pós longe, tudo controladinho, estás no céu, por isso andas assim contentinha, não é?, vê lá se arranjas um avental! Eu, uma pessoa doente não é um bebé, a mania do controlo já era, não ando contentinha, nem de avental, mas, pulga atrás de orelha contente, não contentinha, contente, não resisto - para a minha irmã: achas que eu vou ser uma boa mãe?, tu? péssima!, só sabes dar mimo!, só?, só!, pobres miúdos!, insuportáveis e obesos, mas..., mas eu, mas nada.
Não sei se destes diálogos elogiosos, se da incrível agilidade mental e intelectual que é necessária à confecção de refeições e demais actividades de manutenção de uma casa, depois de uma compra rápida na farmácia, dei comigo na reprografia cá do sítio, muito inteligente, a responder com risinho irónico ao senhor que especificava ... cêntimos, menina, dez cêntimos. Evidentemente, eu a pensar uma fotocópia e um envelope nem em Portugal a inflação sobe assim numa semana - mas não isso chegou para o senhor, um sorrisinho irónico é um perigo, às vezes magoa, e eu sem querer, o senhor achou que devia explicar-se, sabe porque é que lhe digo isto, menina?, eu, sorriso polido, não sei, diga por favor, porque se digo dez, como lhe disse primeiro, tenho sempre um ou outro cliente que me pergunta mas dez quê?, eu sorriso reluzente de polido, pois, de facto..., adeus, obrigada sorrido, boa tarde.
Gosto do meu sorriso quando digo obrigada, tenho para mim que o senhor também. E agora regresso aos tachos que é hora de jantar e o mimo que não vai dentro de um envelope, serve-se sempre, mas sempre, quentinho.