Nunca dês um nome a um rio:
Sempre é outro rio a passar.
Mário Quintana
No metro das sete já não vai o rapazinho da poupa cor-de-abóbora. Nem o senhor que lê O Jogo encostando empates e derrotas à mochila que encosta à parede. Nem eu - mas vai o meu telemóvel e, com ele, uma miúda que flutua a pensar na sorte que é as coisas serem o que são. Em São Bento já não me cruzo com a senhora que sai ao mesmo tempo que eu da outra linha, parece-me - mas o telemóvel e a miúda que flutua devem saber melhor que eu. De resto, tudo igual.
O meu lugar de janela à espera - os outros à espera das pessoas de sempre -; a confusão barulhenta, adolescente, na Trofa; a chegada indolente a Braga; a subida vertiginosa, de rápida, até ao café; a senhora do café diligente na discussão, seríssima, de figurinos - depois de admirar o meu, de soslaio, enquanto ajeita os guardanapos -, do seu estacionamento forçado em segunda fila, do tempo, da economia; a chegada à porta da Biblioteca com os bons-dias mais esquisitos do universo - estamos num dia bom: há bons-dias de fugida ao acelerar do passo; a chamada matutina, enquanto não dá a hora, que a minha mãe, como sempre, não ouviu; a senhora mais serena que conheço daqui a colher, olhos fechados, coração aberto, os primeiros raios de sol antes de entrarmos; o costume.
Às vezes precipitamo-nos na vida a fazer planos. Emparedamo-la com planos bês - depois dos depois, os que cremos nossos de alcance. Cada plano bê, um círculo; cada círculo, um nome, uma definição; um espaço, um tempo; uma causa, uma consequência; uma pergunta, uma resposta - a segurança na nossa cabeça; a segurança, um círculo que se vai apertando, que nos vai apertando, progressivamente, no sufoco de já não sermos; um círculo à volta da nossa casa, do nosso quarto, da nossa cama, do nosso corpo, do mundo que a vida nos fez pensar um dia que era o nosso-mesmo-nosso; fora daí, monstros, fora daí, nada. Os nossos pés à procura de caminho, as nossas mãos perdidas, aquela coisa de no princípio e no fim de tudo estarmos sozinhos a guilhotinar-nos o espírito, a cabeça que pesa, encolhida entre os ombros, dentro do círculo.
Vinha a pensar nisto esta manhã no comboio. Vinha a pensar nisto porque definitivamente a Primavera desconhece o nome das coisas. O nome das coisas, o espaço dos meses, as causas da beleza. Recomeçou. Depois de cinco dias de chuva contínua, os passarinhos de pouco depois das seis à minha janela não se enganavam. Primavera. Há manhãs de Primavera em Novembro. Como se nada continuasse, como se tudo recomeçasse no mundo. Por entre as rotinas, pessoas, dias, vida - a vida. Nada continua, tudo recomeça: abra-se a janela ao amanhecer.
Nada continua. Tudo recomeça. A minha mãe diz muitas vezes que parar é morrer. A minha mãe é de uma geração que, felizmente, desconhece o morrer que é continuar. Já eu que sou de uma outra... Gosto de janelas e Primaveras inusitadas de passarinhos às seis da manhã. E às sete. A música que se lê na palma da mão que o telemóvel incendeia. O comboio que é outro comboio. O ruído dos carris, outro, sobre o pensamento. Nada continua, tudo recomeça - a Primavera, uma verdade de janela, a dar saúde e a fazer crescer, aos pulinhos, para fora do círculo. Há mais terra para além da pouca-terra.*
12 comentários:
De cada vez que faço planos, que tento ordenar as coisas, aparece sempre um imprevisto. Mas ainda os faço.
Tudo recomeça sem mudar assim tanto, à primeira vista...
Jinhos.
Marisa,
Eheheheh!!! Acontece-me também. ;)
"Tudo recomeça sem mudar assim tanto, à primeira vista..." I say: a primeira vista tem de ir ao oftalmo. :D
Jinhos.
sabes uma coisa? este texto merece ser emoldurado. tenho dito.
:)
(obrigada.)
Vanessa,
...
Jinhos.
gosto gosto destes teus pensamentos tornados escrita :) acrescenta sempre algo ao meu dia :)
"minha mãe é de uma geração que, felizmente, desconhece o morrer que é continuar" ... a minha também, felizmente. [esta frase atravessou-me um peito de tão verdadeira]
Ana,
Ehehehe! Digo o mesmo do teu cantinho. ;)
Pois. (É geracional...)
Jinhos.
O melhor plano mesmo é não fazer planos. Sou o examplo disso: não fazer planos e ir onde a vida me leva... e eis senão quando tenho tido as minhas melhores manhas de Primavera de todos os meus Novembros.
Um beijinho*
(e eu também gosto muito de ti, apesar de ainda se notar menos.:P)
Frida,
Também já me rendi a essa evidência. Não fazer planos, deixar as coisas acontecerem, a maior sabedoria. :)
Molti bacini, Bella!
P.S. Gostas e eu sei. Mais, menos, não há no gostar. :D
As muitas primaveras dos nossos dias (que por vezes são de muito inverno, daqueles sem lareiras e pantufas quentinhas)fazem-nos sempre recomeçar. Nem vale a pena dizer que adorei, porque já sabes que adorei.
Ouriço,
Sejam muitas, sim!
(Pois. Andas a habituar-me mal... :)))))
Jinhos.
Lindas reflexões.
Adorei vir aqui.
bjs
Jugioli,
Obrigada pela visita e pela simpatia. Também gostei muito dos seus espaços. A porta está aberta em permanência. :))))
Jinhos.
Enviar um comentário