domingo, novembro 08, 2009

Eyes shut


A minha irmã mais nova está doente. Fomos ao médico na quinta-feira, voltámos na sexta, devemos fazer o mesmo amanhã. O corpo dos outros, o nosso, o que fazemos ao nosso, o que este tempo de américa e televisão faz ao nosso; o corpo, um mundo imperscrutável, eu a pensar enquanto olho, na sala de espera, as fotografias de nus do pior gosto que já alguma vez vi.

Entrámos. Auscultação a medo, ao de leve do medo, diagnóstico à distância, e verde, inacreditavelmente atirado ao tecto com um sorriso - a ver se cola com um sorriso -, rabiscos de um antibiótico, o primeiro que lhe veio à ponta dos dedos, se tiver febre, já sabe, então, as melhoras; nós a olharmo-nos incrédulas, eu a pensar nestes médicos de centro de saúde, meninos pequenos aterrorizados com o escuro da gripe; a minha irmã, mais prática, a pensar que tinha que ligar ao meu pai, demasiado velho, e/ou - e - à minha outra irmã, demasiado nova, para terem medo à gripe.

Quando preciso de ir a casa - às vezes fora do Verão e do Natal vou a casa porque é preciso - apanho um avião. A minha casa, que a é dos meus pais, é longe e a única ponte que há para lá é a aérea. A viagem costuma demorar uma hora e trinta minutos e quando a fazia ao fim do dia de sexta-feira, e tinha a sorte de não encontrar turbulência - ou de encontrar pilotos experientes o suficiente para a contornarem -, dormia a duração da viagem. Um dia, claro, cresci e os pilotos deixaram de ser aqueles senhores de meia-idade, garbosos e profissionalíssimos a sobrevoar toda a metereologia; foi quando uma turbulência fez desfilar-me, muito depressa dentro da cabeça, a vida, pequena e oca aos vinte anos, uma idade estúpida para morrer.

Tudo o que é muito fora de nós, muito dentro do outro, é bruma e sombras, mistério e dúvida. Sempre. Pilotar a saúde dos outros, sem um fio colado ao tecto do mundo para não se cair, sem o mesmo fio para se sair de labirintos, não deve ser fácil. Mas pensar demasiado, medir distâncias, enviesar com isso avaliações e diagnósticos, pensar tanto que o pensamento tolde as respostas, prenda os movimentos, atravanque a simplicidade das soluções, é trabalhar ao contrário.

Entregar-se a vida nas mãos de alguém é uma coisa muito importante, demasiado importante para ser obliterada pelo escuro - da dúvida, do pensamento, do medo, coisas que apoucam a nobreza, às vezes a saúde, de quem se entrega. Quando não estou a limpar pós ou a aspirar, nem a mudar roupas de cama e pijamas, nem a fazer canjas ou sopas, chás ou gemadas, nebulizações ou emplastros, e tenho tempo para encostar as costas um bocadinho à primeira cadeira que me aparecer à frente do cansaço, e sinto telemóvel no bolso do casaco, pego-lhe como se fosse um tesouro, é um tesouro - toda a gente devia ter um telemóvel assim, leio e respondo, às vezes só leio, sorrio e adormeço. Dois, cinco minutos, às vezes mais, de todas as vezes: um bocadinho de céu. Um bocadinho de céu, uma entrega que é mútua, a adormecer-me a sorrir. É sempre assim quando ando segura. Em sossego. O sossego é o único preâmbulo que o meu corpo conhece para uma verdade maior.

Entregar-se a vida nas mãos de alguém, assim, eyes shut para o escuro, tão bom.

9 comentários:

Vanessa disse...

lindo. :)

Joana disse...

Vanessa,

Eu sei. :)))





Jinhos.

Maria Rita disse...

Sempre tão bonito :)

Bacini*

Joana disse...

Frida,

Oh!, só para alguns corações... ;)





Baci mille, bella!

Ouriço-Cacheiro disse...

Assim começa uma semana de trabalho com um sorriso. Obrigada

Joana disse...

Ouriça,

Que bom! :))))





Jinhos.

Joana disse...

Ouriça,

Que bom! :))))





Jinhos.

ana salomé disse...

«o sossego é o único preâmbulo que o meu corpo conhece para uma verdade maior».



(o que dizer a isto, jo?)

*

Joana disse...

Ana Salomé,


Nada. Não se diz nada. É assim e pronto. :)))




Jinhos, Nita.