quinta-feira, abril 29, 2010

terça-feira, abril 27, 2010

Transparecências

Ontem fui aos correios cá da praça tentar enviar um pacote. Ontem estava calor e eu cheia de frio, ontem as pessoas vestiam de Verão e eu vestia o meu nariz, o meu nariz a meter um medo de psoríase às pessoas como eu - com medo de tudo o que seja doença nos outros, psoríase e tudo o mais que não se sabe, mesmo que tudo o mais não seja nada, e a psoríase não o seja de facto, mas tão somente o descascar, a abrasão típica de um fim-de-semana de lenços.

Nos correios estava-se bem. Está-se sempre bem nos correios. Acho que aqueles dois funcionários únicos que demoram no atendimento, fazem-no deliberadamente, a pensar muito no bem-estar das pessoas, de cada uma das pessoas em particular, para que uma pessoa se dê conta do quanto se está bem lá dentro. O fresquinho que corre no Verão, o calorzinho quando é Inverno, tudo pago por nós, tudo nosso para gozar, com tempo.

Em virtude dessa atenção também, premiu o número da minha senha uma das funcionárias mais rápidas e eficientes dos correios cá da praça - não sei se é exemplar aos olhos dos colegas, aos meus é inexcedível. E eu que estava a habituar-me ao desfile de carácteres ao balcão, eu a surpreender-me e a divertir-me com eles, muito para dentro, do banco onde me sentei sozinha, nas traseiras para não contagiar ninguém.

Querendo, ou não, as pessoas entregam-se ao balcão. Uma senhora em idade da reforma, se não tiver cabelos brancos, sapatos rasos, sacas de plástico ou mala de nylon - azul escura ou preta -, não diz mais que o essencial, em bom som mas com muito frete, ao balcão. Um senhor trabalhador - era pintor de obras - se atender uma chamada, possivelmente da obra, possivelmente do patrão a pressionar, distrai-se da sua vez e, obrigado a fazer pela vida e não roubar mais tempo ao patrão, tem de interromper o passo da senhora reformada a encaminhar-se para o frete e tem de pedir desculpa que estava ao telemóvel e não se deu conta, uma e outra vez, tem de o fazer muitas vezes, a senhora impávida.

Enviei o que tinha a enviar, as cascas do nariz e a minha voz de cana-muito-muito-rachada a anteciparem-se-me no pedido do formulário, a funcionária a sorrir, eu a perguntar-me por que sorriria ela antes de lhe perguntar se aquela modalidade também era acompanhável pela net. Um siiiiiiiimmmmm! muito longo, compreensivo, maternal, sorrido. Como se soubesse do conteúdo do pacote: eu, uma adolescente a cometer uma loucura doce. (A última parte da proposição é verdade.) As pessoas entregam-se ao balcão.

domingo, abril 25, 2010

Hoje era só isto



Foi bonita a festa, pá
Fiquei contente
Ainda guardo renitente
Um velho cravo para mim
Já murcharam tua festa, pá
Mas certamente
Esqueceram uma semente
Nalgum canto de jardim

Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei, também, quanto é preciso, pá
Navegar, navegar
Canta primavera, pá
Cá estou carente
Manda novamente
Algum cheirinho de alecrim

sábado, abril 24, 2010

Mandado, vivamente recomendado, pela Vanessa


Diz que aos 29 só se pode ser feliz.

You know I dreamed about you
for twenty-nine years before I saw you
You know I dreamed about you
I missed you for
for twenty-nine years

sexta-feira, abril 23, 2010

De dias mais que bonitos

A minha avó faz anos hoje. Faria 88 se fosse viva. A minha avó, que me dava a comida à boca tardes inteiras percorrendo o nosso jardim, olha que flor tão bonita, e esta, e aquela, vê..., vomitas nada, se vomitares, comes novamente; a minha avó que me comprava chapéus e entrançava os meus cabelos sem a pressa da minha mãe a olhar o relógio, a ver se a minha irmã Teresa já estava a comer; a minha avó que comprava Helena Curtis, amaciador e champô, para ver os meus cabelos crescerem fortes como as suas flores; a minha avó que segurava as pautas do Cévcic ao peito, como quem segura um cartaz nas chegadas do aeroporto, para eu estudar violino, toca para avó ouvir, vá..., morreu em 1998, no ano em que entrei num outro mundo, numa outra vida, no Setembro em que entrei na Faculdade.

Por vezes a minha mãe fala da sua mãe na juventude com alguma mágoa, a educação tão tradicionalmente opressiva da minha avó, a minha avó - os namorados que não pode ter, a carreira que não pode escolher, o tanto que não pode ser - sempre viva na sua memória. Coisas de facto importantes, coisas que, possivelmente graças a isso, eu nunca vou poder dizer da minha mãe, por exemplo. Mas para mim a minha avó foi, será sempre, de todas as avós do mundo, a melhor avó que se pode ter.

Hoje em dia a única pessoa que entende como eu a divindade da minha avó é a minha tia. Acha que somos o que somos por causa dela, que os vossos pais sempre trabalharam muito, sabes? Sei. (E é possível, mas não em absoluto.) De qualquer maneira gosto de quando a minha tia se recorda da minha avó. Recordar é uma coisa que lhe começa a ser rara - e cara - e para mim, a primogénita, a minha avó e a minha única tia materna são a minha infância feliz e cheia, o mimo que nunca acaba.

Só no depois nos damos conta de quando as pessoas começam a despedir-se. Já mais grandinha, quando chegava a casa ao fim dos dias cheios que sempre tive - penso que foi a partir do desaparecimento do meu avô - dava com ela a rezar o terço das 7.30 da Renascença, e eu que queria falar do meu dia!... A minha mãe na pós-graduação, o meu pai a desdobrar-se em plantões e serviços e eu a querer falar, agora não, espera mais um bocadinho que a avó precisa disto para desconto dos seus pecados. Eu a pensar nos pecados. Que pecados teria a minha avó que na Primária me tirava as galochas rosa com um truque só seu e que, escolaridade fora, nunca me deixou de fazer quadradinhos de laranja com açúcar para a sobremesa? Eu muito nova para perceber que desolhava o essencial, a palavra desconto.

A minha mãe costuma dizer que não me devo ter podido dar o tempo essencial ao luto pela minha avó. Porque, volvida uma semana, já estava de cara pintada na Faculdade. A minha mãe é capaz de ter razão. Fui para a Faculdade e o dia 23 de Abril passou a ser o Dia do Livro depois de. Saí da Faculdade, permanecendo, para permanecer, do lado de lá do estrado, e o dia 23 de Abril passou a ser o Dia de Livro por causa do Dia de São Jorge, depois de. Fui para os EUA e o dia 23 de Abril passou a ser o Diada de Sant Jordi, dia dos namorados em Barcelona, Dia do Livro por causa do Dia de São Jorge, depois de. Isto tudo sempre, no tamanho mais pequeno de letra que encontrar, no verso da folha que houver, nas entrelinhas que conseguir, isto, isto tudo depois de ser o dia de anos da minha avó.

A minha avó faz anos hoje.

quinta-feira, abril 22, 2010

Coisas do melhor mês do ano


Achando ou descobrindo, há 510 anos encontrámo-nos com o Brasil.
E nunca mais fomos os mesmos.

quarta-feira, abril 21, 2010

Primavera, Verão, Outono

A rotina que eu prezo e que me estrutura os dias é, às vezes, um problema. Por exemplo, de tanto ter vindo para a Biblioteca, alguns utentes, igualmente frequentes, já me conhecem: cumprimentam, dão os bons dias, perguntam está para breve, Dra. Joana?, como se o trabalho fosse uma coisa muito muito diferente do que é; eles a dizerem-no ao mundo, eles a pretenderem que o trabalho me enche e me dá a medida da vida, eles a baralharem-me a perspectiva, e isto de uma maneira tão impressiva que o mundo, utentes menos frequentes, mais novos, inibem-se até de entrar antes de mim, Dra. Joana, toda trabalho, faça favor de entrar. Quero o ano passado, o tempo quando quase ninguém ainda me conhecia e podia estar à espera da abertura da Biblioteca em sossego a ver a vida que desfilava na praça para se aninhar na parte de trás da minha cabeça.

No Verão passado, por exemplo, quando ainda vinha para a Biblioteca todos os dias – agora trabalho mais em casa, recordo o quanto me entretinha a observar a meia-dúzia de pessoas que atravessava a praça cedinho. Lembro-me sobretudo de um casal que costumava passar por mim um quarto de hora antes das nove e que, com a regularidade da passagem e um quanto de inefável, me prendia cada dia um olhar de franca curiosidade. Eram muito novos. E tão naturais juntos como se fossem muito velhos.

Com o final do Verão e o trabalho em casa, nunca mais me lembrei deles, até há dias. Há dias vi o rapaz. À hora costumeira. E então veio tudo à tona da memória – estou convencida de que a tona da memória fica na parte de trás da cabeça, um sítio que às vezes sinto cansado... -, e por isso, agora, das poucas vezesm em que estou à espera que a Biblioteca abra e chove; quando faltam quinze minutos para as nove e o dia ameaça ser de sol; quando as outras pessoas que costumavam passar antes e depois deles, continuam a passar antes e depois da hora deles sem eles, lembro-me do Verão, lembro-me deles.

De alguma forma, na minha cabeça, eles são o Verão. O Verão que não é um verão, mas o Verão, um que pode ser Primavera, até Outono!, um que ultrapassa todos os verões, os de casa, os da Biblioteca, os antigos, os que hão-de vir. Não sei explicar melhor. Ela radiante, ele orgulhoso de a levar dentro da mão, e o cuidado...; ela com o cabelo claro todo entrançado de lado, saias coloridas, brincos compridos, imponentemente hippie e grávida; ele sóbrio, de t-shirt, jeans e sapatilhas todos os dias, simples, quase descontraído - não fosse tão visível o esmero da barba aparada, e toda respeitinho. O sorriso natural dela, luminoso como um dia de Agosto, e os olhos dele que nunca vi, adivinho só, por detrás dos óculos-de-sol.

Há dias vi-o. Voltou a passar por mim um quarto de hora antes das nove. Sem óculos e sem ela, só o esmero da barba o denunciou. Tem uns olhos bons, mais do que bonitos, castanhos, e, no andar, a mesma leveza de quando a levava pela mão. Às vezes o Verão enche-nos os olhos em Março, quase Abril.

segunda-feira, abril 05, 2010

e faz o que quiseres

Quando a minha avó partia as laranjas aos quadradinhos e as abafava com açúcar, quando as férias se seguiam rápidas umas às outras até serem muito muito longas, quando as tropelias da minha irmã Teresa às campainhas de todas as portas sobravam para mim no caminho para a escola, ou em casa ao fim do dia, foi quando o meu pai herdou parte da Biblioteca de um tio distantíssimo, solteiro, pio, antigo seminarista.

A minha mãe não gostou. Os dedos indicadores da minha mãe a ganharem vida, uma Biblioteca não é peixe, uma série de argumentos acerca do atum fresco, acabado de chegar do Mercado, na bancada da cozinha, a treparem pelas paredes, "... uma Biblioteca não se corta às postas!", eu a imaginar livros de atum. Quando os livros chegaram, em caixotes de cartão, cheirando a livros e não a lota, a minha mãe encarregou-se do armstício: desencaixotou-os, separou-os, ordenou-os, arrumou-os e arrumou o assunto. Só muito tempo depois é que se voltou a tocar neles, o assunto já lá atrás, o assunto longe.

A maioria dos livros, acerca de música sacra, interessavam ao meu irmão; as "Confissões" de Santo Agostinho, um compêndio e uma gramática latinos e vários cadernos de exercícios vieram juntar-se aos meus livros nas estantes. Quando andava no Secundário, li as "Confissões". O Verão ainda é maior que nós aos quinze anos. Ama e faz o que quiseres, não. Ama e faz o que quiseres é do nosso tamanho.

Depois o tempo mingua e as copulativas diluem-se. Amamos de outra forma. A vida amadurece-nos ao impor ao nosso mundo uma nova ordem: uma ordem em que o açúcar da infância e os poucos imperativos aceites na adolescência são pontinhos no horizonte; uma ordem exigente nas copulativas; uma ordem em que cada coisa, para ser inteira, tem um tempo; em que cada coisa merece ser vivida na sua completude, a seu tempo, não antes, nunca depois. E cada vez mais penso que é do nosso tamanho, não importa a idade que se vá tendo, assim.

sábado, abril 03, 2010

sexta-feira, abril 02, 2010

De causas que me são caras

Pelo aniversário de Hans Christian Andersen, todos os anos, se comemora o Dia Internacional do Livro Infantil. Esta mensagem do Dia Internacional do Livro Infantil é uma iniciativa do IBBY - International Board on Books for Young People, difundida em Portugal pela APPLIJ - Associação Portuguesa para a Promoção do Livro Infantil e Juvenil, Secção Portuguesa do IBBY e pela Direcção Geral do Livro e das Bibliotecas.


Había una vez

un barquito chiquitito,

que no sabía,

que no podía

navegar.

Pasaron un, dos, tres,

cuatro, cinco, seis semanas,

y aquel barquito,

y aquel barquito

navegó.

Se aprende a jugar antes que a leer. Y a cantar. Los niños de mi tierra entonábamos esta canción cuando aún ninguno sabíamos leer. Nos juntábamos en corro en la calle y, disputándonos las voces con los grillos del verano, cantábamos una y otra vez la impotencia del barquito que no sabía navegar.


A veces fabricábamos barquitos de papel y los poníamos en los charcos y los barquitos se hundían sin conseguir alcanzar ninguna costa.


Yo también era un barco pequeño fondeado en las calles de mi barrio. Pasaba las tardes en una azotea mirando ocultarse el sol por el poniente, y barruntaba a lo lejos ‐no sabía aún si a lo lejos del espacio o a lo lejos del corazón‐ un mundo maravilloso que se extendía más allá de donde alcanzaba mi vista.


Detrás de unas cajas, en un armario de mi casa, también había un libro chiquito que no podía navegar porque nadie lo leía. Cuántas veces pasé por su vera sin darme cuenta de su existencia. El barco de papel, atascado en el barro; el libro solitario, oculto en el estante tras las cajas de cartón.


Un día, mi mano, buscando algo, tocó el lomo del libro. Si yo fuese libro lo contaría así: “Un día la mano de un niño rozó mi cubierta y yo sentí que desplegaba mis velas y comenzaba a navegar” ¡Qué sorpresa cuando por fin mis ojos tuvieron enfrente aquel objeto! Era un pequeño libro de pastas rojas y filigranas doradas. Lo abrí expectante como quien encuentra un cofre y ansía saber su contenido. Y no fue para menos. Nada más empezar a leer comprendí que la aventura estaba

servida: la valentía del protagonista, los personajes bondadosos, los malvados, las ilustraciones con frases a pie de página que miraba una y otra vez, el peligro, las sorpresas…, todo, me transportó a un mundo apasionante y desconocido.


De esa manera descubrí que más allá de mi casa había un río, y que tras el río había un mar y que en el mar, esperando zarpar, un barco. El primero al que subí se llamaba La Hispaniola, pero lo mismo hubiese dado que se llamase Nautilus, Rocinante, la nave de Simbad, la barcaza de Huckleberry, ...todos ellos, por más que pase el tiempo, estarán siempre a la espera de que los ojos de un niño desplieguen sus velas y lo hagan zarpar.


Así que…no esperes más, alarga tu mano, toma un libro, ábrelo, lee: descubrirás, igual que en la canción de mi infancia, que no hay barco, por pequeño que sea, que en poco tiempo no aprenda a navegar.



Eliacer Cansino



Em Português aqui.

quinta-feira, abril 01, 2010