Quando a minha avó partia as laranjas aos quadradinhos e as abafava com açúcar, quando as férias se seguiam rápidas umas às outras até serem muito muito longas, quando as tropelias da minha irmã Teresa às campainhas de todas as portas sobravam para mim no caminho para a escola, ou em casa ao fim do dia, foi quando o meu pai herdou parte da Biblioteca de um tio distantíssimo, solteiro, pio, antigo seminarista.
A minha mãe não gostou. Os dedos indicadores da minha mãe a ganharem vida, uma Biblioteca não é peixe, uma série de argumentos acerca do atum fresco, acabado de chegar do Mercado, na bancada da cozinha, a treparem pelas paredes, "... uma Biblioteca não se corta às postas!", eu a imaginar livros de atum. Quando os livros chegaram, em caixotes de cartão, cheirando a livros e não a lota, a minha mãe encarregou-se do armstício: desencaixotou-os, separou-os, ordenou-os, arrumou-os e arrumou o assunto. Só muito tempo depois é que se voltou a tocar neles, o assunto já lá atrás, o assunto longe.
A maioria dos livros, acerca de música sacra, interessavam ao meu irmão; as "Confissões" de Santo Agostinho, um compêndio e uma gramática latinos e vários cadernos de exercícios vieram juntar-se aos meus livros nas estantes. Quando andava no Secundário, li as "Confissões". O Verão ainda é maior que nós aos quinze anos. Ama e faz o que quiseres, não. Ama e faz o que quiseres é do nosso tamanho.
Depois o tempo mingua e as copulativas diluem-se. Amamos de outra forma. A vida amadurece-nos ao impor ao nosso mundo uma nova ordem: uma ordem em que o açúcar da infância e os poucos imperativos aceites na adolescência são pontinhos no horizonte; uma ordem exigente nas copulativas; uma ordem em que cada coisa, para ser inteira, tem um tempo; em que cada coisa merece ser vivida na sua completude, a seu tempo, não antes, nunca depois. E cada vez mais penso que é do nosso tamanho, não importa a idade que se vá tendo, assim.
9 comentários:
é a ordem que se impõe, ou as ordens que sucessivamente se vão impondo, somos um e muitos.
beijos
Ouriço,
Exactamente. A ordem, as ordens... É a vida!... ;)
Jinhos.
Adorei este texto :)
Beijo
"(...) uma ordem em que cada coisa, para ser inteira, tem um tempo; em que cada coisa merece ser vivida na sua completude, a seu tempo, não antes, nunca depois."
E ficou tudo dito. ;)
Beijinhos*
Testaravida,
Que bom! :)))
Frida,
É, diz que tenho jeito para finais de textos. Ihihi! ;)
Jinhos a ambas.
ordenamos o caos?
Muitas vezes fazemos já do caos a ordem. É a sabedoria que o tempo nos dá!
Cada coisa a seu tempo... mas as vezes gostava de nao ter perdido tempo com coisas que nao reconheci como mortas... helas! Tambem faz parte da vida...
Beijicos
Rosário,
Helás! O bom de a vida ser assim é que depois de passarmos por elas, topamo-las à légua e só se dedica tempo às coisas realmente importantes. :)
Jinhos.
Elipse,
Nem mais: sabedoria. :))))))))))))))
Jinhos.
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