A rotina que eu prezo e que me estrutura os dias é, às vezes, um problema. Por exemplo, de tanto ter vindo para a Biblioteca, alguns utentes, igualmente frequentes, já me conhecem: cumprimentam, dão os bons dias, perguntam está para breve, Dra. Joana?, como se o trabalho fosse uma coisa muito muito diferente do que é; eles a dizerem-no ao mundo, eles a pretenderem que o trabalho me enche e me dá a medida da vida, eles a baralharem-me a perspectiva, e isto de uma maneira tão impressiva que o mundo, utentes menos frequentes, mais novos, inibem-se até de entrar antes de mim, Dra. Joana, toda trabalho, faça favor de entrar. Quero o ano passado, o tempo quando quase ninguém ainda me conhecia e podia estar à espera da abertura da Biblioteca em sossego a ver a vida que desfilava na praça para se aninhar na parte de trás da minha cabeça.
No Verão passado, por exemplo, quando ainda vinha para a Biblioteca todos os dias – agora trabalho mais em casa, recordo o quanto me entretinha a observar a meia-dúzia de pessoas que atravessava a praça cedinho. Lembro-me sobretudo de um casal que costumava passar por mim um quarto de hora antes das nove e que, com a regularidade da passagem e um quanto de inefável, me prendia cada dia um olhar de franca curiosidade. Eram muito novos. E tão naturais juntos como se fossem muito velhos.
Com o final do Verão e o trabalho em casa, nunca mais me lembrei deles, até há dias. Há dias vi o rapaz. À hora costumeira. E então veio tudo à tona da memória – estou convencida de que a tona da memória fica na parte de trás da cabeça, um sítio que às vezes sinto cansado... -, e por isso, agora, das poucas vezesm em que estou à espera que a Biblioteca abra e chove; quando faltam quinze minutos para as nove e o dia ameaça ser de sol; quando as outras pessoas que costumavam passar antes e depois deles, continuam a passar antes e depois da hora deles sem eles, lembro-me do Verão, lembro-me deles.
De alguma forma, na minha cabeça, eles são o Verão. O Verão que não é um verão, mas o Verão, um que pode ser Primavera, até Outono!, um que ultrapassa todos os verões, os de casa, os da Biblioteca, os antigos, os que hão-de vir. Não sei explicar melhor. Ela radiante, ele orgulhoso de a levar dentro da mão, e o cuidado...; ela com o cabelo claro todo entrançado de lado, saias coloridas, brincos compridos, imponentemente hippie e grávida; ele sóbrio, de t-shirt, jeans e sapatilhas todos os dias, simples, quase descontraído - não fosse tão visível o esmero da barba aparada, e toda respeitinho. O sorriso natural dela, luminoso como um dia de Agosto, e os olhos dele que nunca vi, adivinho só, por detrás dos óculos-de-sol.
Há dias vi-o. Voltou a passar por mim um quarto de hora antes das nove. Sem óculos e sem ela, só o esmero da barba o denunciou. Tem uns olhos bons, mais do que bonitos, castanhos, e, no andar, a mesma leveza de quando a levava pela mão. Às vezes o Verão enche-nos os olhos em Março, quase Abril.
6 comentários:
já te disse que fico com a alma lavada sempre que te leio?! ;) beijinho*
Ana,
Acho que sim, mas tremo sempre como se não, nunca.
;)
Jinhos.
é, diz que ler-te faz bem.
:)))))))
beijinho*
(as coisas bonitas que tu vês...)
Vanessa,
Oooooooooooohhhhh!!! :)))
(... em Braga.)
Jinhos.
"Sem óculos e sem ela, só o esmero da barba o denunciou. Tem uns olhos bons, mais do que bonitos, castanhos, e, no andar, a mesma leveza de quando a levava pela mão."
A prova de como as pessoas podem ser bonitas sozinhas, sem os raios de Sol que as rodeiam e as tornam mas luminosas, mas não menos elas.
Muitos beijinhos*
Frida,
Sim. :))) "Antes, durante, e depois de tudo, estamos sempre sozinhos", disseram-me um dia.
Na altura não percebi, mas cada dia percebo melhor, mais: nenhum nós deve engolir, encobrir, apoucar o eu que cada um é. Todo o nós é a soma de dois eus completos, totais.
Ai como eu gosto dos teus comentários! :D
Jinhos.
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