sexta-feira, abril 23, 2010

De dias mais que bonitos

A minha avó faz anos hoje. Faria 88 se fosse viva. A minha avó, que me dava a comida à boca tardes inteiras percorrendo o nosso jardim, olha que flor tão bonita, e esta, e aquela, vê..., vomitas nada, se vomitares, comes novamente; a minha avó que me comprava chapéus e entrançava os meus cabelos sem a pressa da minha mãe a olhar o relógio, a ver se a minha irmã Teresa já estava a comer; a minha avó que comprava Helena Curtis, amaciador e champô, para ver os meus cabelos crescerem fortes como as suas flores; a minha avó que segurava as pautas do Cévcic ao peito, como quem segura um cartaz nas chegadas do aeroporto, para eu estudar violino, toca para avó ouvir, vá..., morreu em 1998, no ano em que entrei num outro mundo, numa outra vida, no Setembro em que entrei na Faculdade.

Por vezes a minha mãe fala da sua mãe na juventude com alguma mágoa, a educação tão tradicionalmente opressiva da minha avó, a minha avó - os namorados que não pode ter, a carreira que não pode escolher, o tanto que não pode ser - sempre viva na sua memória. Coisas de facto importantes, coisas que, possivelmente graças a isso, eu nunca vou poder dizer da minha mãe, por exemplo. Mas para mim a minha avó foi, será sempre, de todas as avós do mundo, a melhor avó que se pode ter.

Hoje em dia a única pessoa que entende como eu a divindade da minha avó é a minha tia. Acha que somos o que somos por causa dela, que os vossos pais sempre trabalharam muito, sabes? Sei. (E é possível, mas não em absoluto.) De qualquer maneira gosto de quando a minha tia se recorda da minha avó. Recordar é uma coisa que lhe começa a ser rara - e cara - e para mim, a primogénita, a minha avó e a minha única tia materna são a minha infância feliz e cheia, o mimo que nunca acaba.

Só no depois nos damos conta de quando as pessoas começam a despedir-se. Já mais grandinha, quando chegava a casa ao fim dos dias cheios que sempre tive - penso que foi a partir do desaparecimento do meu avô - dava com ela a rezar o terço das 7.30 da Renascença, e eu que queria falar do meu dia!... A minha mãe na pós-graduação, o meu pai a desdobrar-se em plantões e serviços e eu a querer falar, agora não, espera mais um bocadinho que a avó precisa disto para desconto dos seus pecados. Eu a pensar nos pecados. Que pecados teria a minha avó que na Primária me tirava as galochas rosa com um truque só seu e que, escolaridade fora, nunca me deixou de fazer quadradinhos de laranja com açúcar para a sobremesa? Eu muito nova para perceber que desolhava o essencial, a palavra desconto.

A minha mãe costuma dizer que não me devo ter podido dar o tempo essencial ao luto pela minha avó. Porque, volvida uma semana, já estava de cara pintada na Faculdade. A minha mãe é capaz de ter razão. Fui para a Faculdade e o dia 23 de Abril passou a ser o Dia do Livro depois de. Saí da Faculdade, permanecendo, para permanecer, do lado de lá do estrado, e o dia 23 de Abril passou a ser o Dia de Livro por causa do Dia de São Jorge, depois de. Fui para os EUA e o dia 23 de Abril passou a ser o Diada de Sant Jordi, dia dos namorados em Barcelona, Dia do Livro por causa do Dia de São Jorge, depois de. Isto tudo sempre, no tamanho mais pequeno de letra que encontrar, no verso da folha que houver, nas entrelinhas que conseguir, isto, isto tudo depois de ser o dia de anos da minha avó.

A minha avó faz anos hoje.

4 comentários:

Maria Rita disse...

A tua faz anos num dia bonito, tão bonito como fez ser o teu coração.

E quem me dera estar em Barcelona hoje! ;)

Beijinhos*

Joana disse...

Frida,


Sim: a magia da ternura sem limite dos avós.

Eheheh!!! Pois, diz que é um dia a não perder por lá...



Jinhos.

Anónimo disse...

também me lembrei, em plena urgência...!\
t

Joana disse...

T,

Aha! ;)



Jinhos.