"Saku? My name is not Saku! My name is Kazuo!"
Risota geral, para o resto da nossa manhã de trabalho, para o resto do dia, da semana e das nossas vidas, da minha pelo menos - sempre que me recordo deste episódio. A S. tinha assimilado vagamente os sons que compunham o dissílabo do nome do nosso mais recente companheiro nipónico e, minutos depois nem hesita, desata logo a gritar-lhe campo fora que regresse, é hora do chá. "Ora, Saco-Caso... É tudo igual!" E eu pensava, assustadíssima, que a S. generalizava demasiado, ou seja, que os psicólogos são de facto malucos, porque nunca na vida Saco é igual a Caso, (quanto mais Saku a Kazuo!) por muitas Metáteses, Anástrofes e Hipérbatos que o nosso pensamento e a nossa memória diabolicamente tentem congeminar. Não obstante, a Assonância dissonante valeu umas boas gargalhadas. Até do próprio!
O Kazuo era um dos muitos jovens que, como nós, passava a Páscoa de 2004 em Taizé. Um dos que, como nós, integrara o grupo das manhãs na Oficina da Comunidade. Estou cansada: não me recordo por que razão escolhi trabalhar precisamente na Oficina. Pelas pessoas ou por mim? Possivelmente por causa das pessoas que comigo trabalhariam: o João, um miúdo muito especial, de uma sensibilidade / humanidade tocantes, que pessoalmente reverencio ainda hoje, e que por acaso se tornou amicíssimo da minha irmã T., a Ana, com quem aconteceu uma empatia imediata ainda na viagem de autocarro, para ela; licenciada em Artes Plásticas, seria uma opção mais ou menos previsível, e a outra meia dúzia de quem me fogem os nomes neste momento. Por mim - pelas pessoas. Definitivamente.
Assim se passavam as manhãs na Oficina: montar e desmontar estruturas para depois se montar tendas, reunir e arrumar parafusos, desarrumar armários, limpar prateleiras, varrer, pintar, colar, raspar, descolar - bem, tarefas que só ali são acompanhadas do mais largo dos sorrisos. É um lugar especial. Taizé.
Tem uma mística. Especial. Uma mística que tem a ver com as pessoas, certamente, mas que muito deve ao lugar e à vivência do tempo e das coisas, da vida em geral naquele espaço. Sem pressas, mas organizadamente, definidamente. Em oração, individualmente, em comunhão, mas também em comunidade, em grupo, em partilha. Em silêncio, mas também em coro(s), vivamente, participadamente. Perfeito. Como se aquela fosse uma bolha do mundo, o modelo a guardar no coração, a fórmula a importar para casa.
As pessoas eram muitas em Taizé. Os Irmãos, os Voluntários, os Responsáveis dos grupos e os muitos grupos de jovens que deles fazem parte. O Irmão responsável pela Oficina raramente passava por lá de manhã, quando lá estávamos, e quando o fazia falava sempre com o Voluntário responsável, nunca connosco. O Voluntário responsável era argentino, já lá estava à quatro meses, pelo que já lhe tinha sido informada a necessidade de partir para outro local, do género ou não - ele decidiria - e era de uma paciência inesgotável connosco. Mais, sempre simpático, bem-disposto e generoso, era um prazer trabalhar com ele. Quando percebeu que o nosso grupo era composto quase na totalidade por Portugueses, nós e o Kazuo, ficou ainda mais feliz: podia falhar castelhano! E falou, com a generalidade das pessoas. Comigo, achou que tinha que falar em Inglês, porque tengo que praticar el inglés, e porque meteu-se-lhe na cabeça que eu era professora de Inglês. "Não, sou professora de Português, mas pode ser: falo Inglês."
A língua molda as relações entre as pessoas. (Por isso é que dou tanta importância às palavras.)Sempre achei que ele tinha comigo uma relação muito mais formal do que com os meus colegas. Mais formal, cordial, mas paradoxalmente, mais profunda - pelos menos foi assim que a senti e a sinto ainda hoje quando, à força de me tentar lembrar do nome próprio que constituía o radical do sufixo -el, revejo perfeitamente o rosto, o riso fácil, o andar dinâmico na Oficina, a curvatura do corpo ajoelhado no chão e a postura, radicalmente transfigurada, no recinto da Oração.
Hoje foi oficialmente o meu Primeiro Dia de de Férias. Aquele que comecei a planear em Munique nas horas que estive à espera do voo de ligação para Lisboa, aquele vinha a planear no avião e no autocarro, aquele - cheio de sol e areia e gelados - com que me deitei esta madrugada. Aquele que não aconteceu esta manhã quando acordei. Nem esta tarde quando decidi recuperar Taizé. Estava frio e a chuva da hora do jantar ameaçava já quando, estendido o tapete cor de laranja, acendia as velas e, ao som dos cântico, tornava mais taizé aquele cantinho da sala.
A maior parte das pessoas vai a Taizé pelas pessoas, gosta de Taizé pelas pessoas, recomenda Taizé pelas pessoas. Fui, volto muitas vezes no cantinho da sala, gosto e recomendo Taizé por mim. Porque por detrás dos cânticos mais simples, da repetição de palavras, versos e ritmos, por detrás do laranja do tapete e da chama há algo que me aquieta e conforta.
E quase me faz esquecer o cansaço. Ainda bem que esteve frio e choveu e não fui à praia.