quarta-feira, julho 04, 2007

Los españoles

Querendo ou não, todos temos pré-conceitos, preconceitos em linguagem corrente. São parte integrante e viva de cada cultura e de cada sociedade. Olhamos o outro, invariavelmente, através da lente do estereótipo que a nossa sociedade e a nossa cultura nos legaram ou ensinaram. É obvio que cada regra tem a sua excepção – um olho aberto vê a dita sempre e, não raro, sem grandes surpresas. Depois também há a idade. Ou a vida vivida. A vida impede-nos de julgar, de partir para o outro de lente (em punho?). Porque há tanto que não se vê, mas explica. Porque há tanto que não sabemos. Porque há tanto.
Sempre que passa na televisão alguém do PP o meu irmão começa a sua mais recente ladainha: “Olha o teu confrade! Conheces? Não? Mas devias. É lá do teu planeta!” O meu irmão quer gozar-me porque, tal como a generalidade dos PPs, sou arranjadinha e tento pautar a minha conduta por uma série de valores. O meu irmão goza-me descaradamente. E eu não posso fazer outra coisa que não seja juntar-me à festa e digo enormidades – dentro da linha mais conservadora – para nos rirmos, e ele fecha os olhos às minha ironias e finge achar que lhe estou a dar razão e congratula-se e quando voltar a aparecer algum PP lá vou ter que ouvir o mesmo. E quando sairmos e eu me vestir com a primeira roupa que me surgir do armário ele vai relembrar os PPs e por aí além. Para nos rirmos. Mais ele que eu. Mas eu também acho (alguma) graça.
Conheço mal a Espanha. Conheço os espanhóis ainda pior. Sou da Madeira, não do Norte. Não passei a infância a ir aqui ao lado comprar caramelos, o meu pai nunca foi lá atestar o depósito, a minha mãe não é adepta das clínicas que proliferam por lá, o meu castelhano é vergonhosamente fraco, fraquíssimo. Por tudo isso, por ter passado a infância a ouvir “De Espanha nem bom vento…”, por terem levado – e magoado – o Vitinho, por ter passado verões numa hospedaria de turismo religioso transbordante de velhas senhoras espanholas muito faladoras (uns bons decibéis acima do normal), muito elegantes mas excessivamente perfumadas, por algum desinteresse e despeito meus nunca dei muita importância ao país aqui do lado. As primeiras cidades que conheci foram sempre as que ficavam a caminho para… Enfim, agora que a necessidade me obriga a vir mais frequentemente a Santiago, começo a concordar com quem dizia que a Espanha é um Portugal bem tratado: limpinho, alegre, culto, eficiente, rico, orgulhoso. Espanhóis também só há pouco é que entraram na minha vida. Conheci uma na Bélgica, com a qual devo ter trocado três palavras no máximo. Correspondia ao estereótipo: igualzinha à Penélope Cruz, achava as aulas, os professores, o mosteiro, uma seca e dançava, se pudesse, as vinte e quatro horas do dia. Travou logo (profundíssima) amizade com a Emiliana, a italiana que adoptou a Corunha como pátria. A Emiliana era diferente mas comungava do, para mim, “espanhol” princípio de que o mundo vai acabar amanhã e como tal que se dance sem parar até lá que o mais é nada!
Não é muito bonita a imagem que dou dos espanhóis. E no entanto, nada tenho contra eles, e até acho as pessoas que encontro por cá muito bonitas e simpáticas. Esta manhã ao vir conheci finalmente um rapaz espanhol. Na realidade não conheci. Tive a oportunidade de observar. Já tinha reparado nele quando fui comprar o bilhete: tinha uma faixa vermelha de um canto ao outro do rosto, na zona dos olhos. Numa atitude radicalmente PP – regojizar-se-á o meu irmão – disse para mim algo como “Estes espanhóis com a mania que a dança impede o mundo de acabar desgraçam-se de uma maneira…” Fui má. Muito má. Entrei no autocarro, um autocarro enorme, com três pessoas apenas, uma das quais sentadinha no meu local de eleição, pelo que não me restou outra hipótese senão escolher o segundo melhor lugar, por acaso ao lado do do rapaz, corredor a meio a separar-nos. Não o vi. Estava entretida a fazer as últimas recomendações à minha irmã T. através do vidro, estava divertida, distraída, a gesticular e possivelmente a falar mais alto que o normal. O rapaz percebeu, eu percebi que o rapaz tinha percebido, ele voltou-se, logo, logo. Sentei-me direita, a viagem começava. Olhei, pelo cantinho do olho, para o lado. Ele ajeitava-se no lugar ao mesmo tempo que punha o mp3 e os fones. Fechei os olhos, quase adormecia – ainda não me compus das noites perdidas na Bélgica e cá – não fosse um soluço, enorme, profundo, acordar-me num sobressalto. O rapaz estava a chorar como se o mundo já tivesse acabado. Para ele. Para sempre. Sem dança que o pudesse salvar. Fiquei em choque. Ele continuava. Não sabia o que fazer, não podia ser da música, já vinha de longe… aquela faixa vermelha nos olhos… ele tinha estado a chorar! Eu e as minhas palermices! Se tivesse menos dez anos – ou mais cinquenta, ainda me levantava a perguntar se estava tudo bem. Eu e as minhas palermices! Mas não é óbvio que não está? Menos dez anos porquê? Aos vinte e poucos já não é gente? Já não precisa de apoio? Tu e as tuas complicações! Passa-lhe um pacote de lenços que o rapaz precisa, vá! Isto era eu a debater-me comigo até o rapaz perceber que eu já estava a olhar para ele há um século com cara de o-que-é-que-eu-faço-meu-Deus e se ter virado, a fungar, para o outro lado. Fê-lo de todas as vezes que tentei olhar para aquele lado ao longo da viagem. Houve alturas em que adormeceu. Um sono sincopado, nervoso, agitado. Durante esse tempo estive a velá-lo.
Era tão jovem. Tão bonito. Tão espanhol. Também. (Corte de cabelo espanhol, pulseira de couro no pulso à espanhol, pele morena à espanhol. E um sinal no nariz, lindo, sem nacionalidade. Eu e os meus estereótipos, protótipos, preconceitos e sinais!)
Prosseguiu a viagem quando eu saí, suponho que vá para a terra da italiana mais espanhola que conheço: A Corunha. Como os milagres acontecem todos os dias, espero que encontre por lá o conforto que não lhe consegui dar – nem que seja a dançar, como se não houvesse amanhã, com a Emiliana.

Partiu-me a lente das taxonomias, pela enésima vez. Homem (Espanhol) que chora assim não pode ser má pessoa.

Santiago, 02/07/07

5 comentários:

Anónimo disse...

Há qualquer coisa de muito português em gostar pouco de espanhóis. Já lá estive. Mas traí-me e deixei-me gostar deles. Porque não de facto do que não gostar. Estão já ali ao lado e são contentes :)

Pena que às vezes não nos decidamos a mudar de lugar no autocarro. Para a próxima, já sabemos... não queiramos tudo numa só viagem ;)

Beijo

Anónimo disse...

Já tenho saudades e só estás fora há três dias!São cá uns galegos sortudos por te terem aí... Volta depressa! Beijinhos grande da T.
:P

Fora de mão disse...

Portinho... da Arrábida.
Se gostas de comida horrível :-) acompanhada de paisagens deslumbrantes, terei todo o gosto em convidar-te a ti e à nossa amiga Orquídea para um almoço no Portinho.
Beijo

Joana disse...

Cientista,

Sao, de facto. E isso é admirável. Também começo a gostar deles.

"Uma viagem de mil quilómetros começa com um simples passo."
Confúcio

Teté,

Mañana, mañana...! :)

Brutal,

Arrábida, Setúbal. Informou-me ontem o meu amigo Google.

Por que nao me surpreende que a Orquídea também queira ir? ;)

Sou vegetariana em todo o lado, em Portugal isso é sinónimo de "comida horrível" all year long, mais que habituada! :P

Obrigada pelo convite, és um fofinho. (Temos que acertar as agendas!)

Jinhos a todos.

Mónica disse...

observações mto interessantes :D