terça-feira, dezembro 11, 2007

O cigano

Ouvi, calei dentro, nunca mais me lembrei.
Até esta tarde. O Porto acabou de jogar há pouco para a Liga dos Campeões e portanto tudo o que é serviço noticioso de tudo o que é canal não se calou com isso o dia todo. Uns falavam nos quinze mil que iam engarrafar o metro, outros nas tricas do campeonato nacional, outros ainda na mística dos balneários do Porto. Estaquei nesses, não pela notícia, não pelas instalações, nem sequer pelo clube que é o meu, mas pelo espectáculo. Há um canal que anda a apostar muito nisso agora... o espectáculo era o Miguel Guedes dos Blind Zero a ser guiado por ali dentro, balneários do FCP bem entendido, pelo Quaresma. Gosto do Quaresma. E gosto do Miguel Guedes. Mas gosto mais do Quaresma. Sigo-lhe mais de perto o trabalho, não sou rapariga de crónicas em jornais desportivos. Então, trocavam galhardetes os dois, o Guedes com a inteligência e simpatia que o caracterizam, o Quaresma com o pouco à-vontade e laconismo que o caracterizam também, mais ou menos. E os painéis com fotografias dos adeptos que pedem mais uma vitória isto, e o peso da camisola ou do emblema aquilo, e o cantinho de cada um, mais cheio ou mais vazio, dependendo da pessoa em questão. Que o nosso Quaresma tem o cubículo cheio de cremes e perfumes, ...para que as pessoas não pensem que os ciganos são sujos..., nas palavras do próprio. E riram-se ambos da piada e a peça prosseguiu e eu lembrei-me. Porque não encontrei a graça. E tenho a mania que a boca fala do que transborda do coração. Lembrei-me. Lembrei-me daquele dia no metro, em Matosinhos, quando meia dúzia de miúdas estacaram, cara colada ao vidro primeiro, longas gargalhadas depois. Olha, olha, olha, um pica cigano. Não sabia que aceitavam ciganos pra picas, vês? Ali!...
É muito difícil viver com um estigma, qualquer que ele seja: etnia, raça, sexo, religião, deficiência, opção sexual, profissão, regime alimentar... Aqui ou no Kosovo, cigano é sujo, malcheiroso, renegável e renegado, não é preciso muito para senti-lo. O pior é que tenho a certeza que avós ou tios dessas adolescentes foram e/ou são emigrantes em França, por exemplo. E, assim sendo, são os ciganos de Paris. Sei. Já vivi lá, há não muito tempo, quando estudava na Sorbonne, e por muito que queira não consigo apagar de dentro a estupefacção da minha professora de Latim quando viu na minha ficha que era Portuguesa, porque, segundo a própria, algo não estava (?!) certo: morava em Montparnasse,a dois minutos dos Jardins do Luxemburgo, era bonita, e imagine-se: tinha telemóvel! Pas possible! Sei também que, paradoxalmente, estas meninas idolatrarão o Quaresma, mas ouvem os pais chamá-lo de cigano, e chamar é muito diferente de designar, tem conotações, maledicências, preconceitos e medos pendurados em cada uma das letrinhas que compõem a palavra.
Não acompanhei o jogo, mas julgo que lhe correu bem, falaram com ele no fim. O que quer dizer que amanhã virá nos jornais e toda a gente falará no cigano. Não no miúdo que sonha e faz arte com os pés, no Quaresma que tantas vezes joga por toda uma equipa, no Ricardo que é juvenilmente caloroso nas celebrações de golo e que é nosso e que é bom. Não. O cigano é que andará em todas as bocas grandes deste país pequeno. O cigano.

2 comentários:

Rui Caetano disse...

É um dos melhores sem dúvida. E não sou portista.

Joana disse...

Hum... deixe-me adivinhar, madeirense como é, só pode ser Benfiquista e Maritimista :), acertei?

(Nem lhe digo qual é o meu clube regional...)

Jinhos.