segunda-feira, março 03, 2008

03 de Março

Não tenho escrito. Não escrevi a semana passada. Fiquei doente. Febre, a semana passada. Faringite, agora. Febre e faringite. Outra vez. Esta sensação horrível de opressão no peito a cada respirar e a impossibilidade de falar, de emitir um som sequer, garganta extremamente seca, toda em chama. Alguém se lembra do bonequinho verde? Voltou a acontecer. Pelas mesmas razões que eu optei por omitir na altura e chamar "Outono" e "viagens" e "stress". Aconteceu outra vez. Outra vez! E desta vez até podia chamar "Primavera" e "directas" e "stress". Mas não vou. Estou doente por causa de uma pessoa. A mesma da outra vez. Estou doente e é terrível esta constatação de haver no mundo uma pessoa capaz de me pôr fisicamente doente. (É maior o meu terror por o mal-estar ser físico, foge sempre ao nosso controlo um mal-estar do corpo, e a males emocionais estamos já todos habituados, bem ou mal, basta sair à rua e olhar para o lado.)
... de me pôr fisicamente doente ou de fazer com que *eu* me ponha fisicamente doente. No início e no fim de tudo estamos nós. Certamente.
De qualquer maneira, à distância de uma semana e mesmo doente, continuo a repetir baixinho, dentro, as palavras de Eugénio de Andrade...

Sê paciente; espera
que a palavra amadureça
e se desprenda como um fruto
ao passar o vento que a mereça.

Ontem, dia quase feliz, quando a febre já tinha passado e só tinha dores de garganta, fui ver O Feiticeiro de Oz com banda sonora ao vivo - maravilhas da técnica! - a cargo da Orquestra Nacional do Porto na Casa da Música. É verdade que era um programa para crianças, mas gosto imenso do filme, da Judy Garland e da Orquestra, além do que ainda não perdi, faço por isso, nem a infância, nem a adolescência, nem muitas outras fases, ideias e coisas que nem sei se fazem muito bem à saúde, mas enfim...
Então, ao meu lado, que um camarote é uma pequena família, mesmo quando são várias as famílias que o compõem, sentou-se um senhor com a filha. A Teresinha. Com o seu sobretudo à capuchinho vermelho a fazer pendant com os dois laços de fita vermelha dos totós, que qualquer capuchinho que se preze tem, naturalmente, a Teresinha viu o filme quase todo no colo do pai. "Coitadinha, t
ão longe de casa. Oh pai! Coitadinha!" E eu já não sabia se me emocionava do filme, que já sei de cor, ou do capuchinho ao meu lado.
Quando tinha a idade da Teresinha não era, de longe, tão expansiva (ainda hoje...), mas tinha o mesmo casaco, os mesmos totós e sentava-me ao colo do meu avô no canapé da frente da casa virados ambos para as orquídeas. Todas as tardes ou todas as manhãs, não sei, quando o sol ia alto e aquecia-nos aos dois. Era o meu lugar, aquele colo. Tanto e tão meu, que quando chegou a minha irmã e eu passei a ter que partilhar com ela o sol e o avô e doravante a ficar em pé encostada às pernas dele porque a segurava ao colo, não resisti aos ciúmes e mordi-lhe o dedo do pé. Claro que a bebé desatou a chorar e eu a contar e resolveu-se a coisa com diplomacia, muito embora não me recorde ao certo como. Também não é importante. Ou pelo menos não tanto quanto as nossas manhãs ou tardes de sol; a mão grande, forte de quase meter medo, e quente, do meu avô, quando me levava com ele todos os meses naquele dia único do mês em que vestia um casaco, o dia em que ia receber a reforma; o cheiro do chapéu de sair, o nosso périplo pelo centro do Funchal onde toda a gente o conhecia e cumprimentava com veneração; as compras do mês que se eclipsaram da minha memória excepto o café, "meio quilo de cevada, meio quilo de grão, 500 gramas do bom" pedia sempre isto, assim; os três saquinhos de rebuçados amarelos de funcho para a hora do terço, sete e meia, a grande caixa de bolacha quadrada Saborável, para acompanhar o café das tardes de Domingo dos avós. Não me lembro se nesses dias me comprava um bolo ou um brinquedo, como os meus pais quando saíam comigo, mas tenho muito presente o carinho, o calor da mão, do colo, de cada beijo molhado e algo mais inefável, muito próprio dele, que não sei explicar e de que sinto falta muitas vezes, hoje.
A Teresinha ainda não sabe ler e certamente lhe passou ao lado o quase aforismo do Feiticeiro de Oz "A heart is not judged by how much you love, but by how much you are loved by others." mas percebeu que a Dorothy estava longe de casa que é o colo onde se está bem, e isso, tenho por certo, sobreviverá o filme na sua memória de criança.

Se estivesse vivo, o meu avô faria hoje 94 anos.

5 comentários:

Oásis disse...

Mordeste-lhe o dedo do pé? Ah, malandra! eheheheh
Quando não estamos bem, o corpo avisa-nos... Toma lá um beijinho e um abraço para ajudar a sarar :)

Uma semana feliz!

Jinhos

Joana disse...

O.,

Do pé exactamente, era malandra no mínimo...

Abraço e beijo aceites, I need it a semana toda, tal como as strepsils eheheheeh!

Jinhos.

Doppelganger. disse...

tb perdi o meu avo ha alguns anos, apesar de ser mas novo q tu, lembro-me q passei mts dias na casa dele, muitas traquinices, o dia em que ele foi fzr a delicia de outras pessoas para outro sitio...
Acho que muito do q sou hj herdei do meu avo e do meu pai, ms muito do meu avo...

Q saudades da Nacional!!!!!!

Beijinho, e melhoras.

Ouriço-Cacheiro disse...

Já me puseram doente também. Repetidamente. Um dia, inesperadamente, acabou. O antídoto apareceu dentro de mim, por magia! As melhoras!

rui disse...

Olá Joaninha

Ah Joaninha, gostava que fosses imune a essas doenças, não gosto de saber que sofres.
Continua a repetir baixinho as palavras de Eugénio, mas só, até um dia.

É bom ter um colinho do avô e sentir-se aconchegada e protegida.

(Uma dentada no dedo do pé!)
Maldade deliciosa ;)