Temos uma amiga em comum, a Ana Arqueiro, outra grande, grande, poeta.
"Estivémos juntas numa conversa-tertúlia do Pedro em Braga." - assegurou-me na quinta-feira em que nos reencontrámos no Porto; e eu, embaraçada, bem, talvez..., eu não me lembrava, mas ela tinha a certeza, lembrava-se do meu rosto, e mais: do meu nome. Conquistou-me nessa hora.
Encontramo-nos algumas vezes na Biblioteca. E novamente, o meu nome e a minha incapacidade em continuar omitir a existência deste espaço...
(Conquistou-me como deve conquistar toda a gente: é impossível resistir-lhe, tem um encanto tão genuíno e total que desarma, é isso, ela é desarmante, absolutamente desarmante de tão encantadora.) Depois dessa quinta-feira, falei com a nossa Ana Arqueiro que me deu a descobrir o livro e o blog. Disse-lho na Biblioteca uma outra vez, na vez em que prometi dar-lhe enfim este endereço. Não lhe disse, nem mesmo quando me escreveu "ganhaste uma leitora e uma amiga", o que se segue:
Cerca de doze anos mais tarde, dei por mim a fazer com o livro dela o que fazia com os do Eugénio de Andrade no Secundário e com os do José Rui Teixeira depois da Faculdade, depois dos EUA; sempre à mão, sempre dentro da mala, para aquele intervalinho entre uma aula e outra, entre um autocarro e outro, entre o metro e o comboio, entre o fim do café e o regresso à minha base de dados...
E visito-lhe o blog, quase todos os dias, e fico uma eternidade a escrutinar-lhe os poemas, mirando cada palavra, pesando cada imagem, e dou comigo a fechar os olhos e a pensar em como é possível ser-se e escrever-se assim:
HORTELÃ
Ela tinha o cheiro das hortelãs ao sol e cabelos tão bem penteados que pareciam quase não existirem. O vento cobria-a de tal forma, que ela parecia voar ali mesmo, à frente de todos se não fossem os seus cinquenta quilos. Ao falar-lhe víamos que os argumentos daquele menina não tinham qualquer lógica, só açúcar. Mas era impossível resistir-lhe ao encanto, mesmo que dissesse só baboseiras. Até que um dia arrancou o próprio coração com as mãos e deixou-o a dormir num ninho de cegonhas. E nisto, o coração iluminou-se tanto que se incendiou.
THE STARS ARE VERY FAR NOW AND YOU ARE VERY FAR NOW
Fumei pelas ruas com as pontas dos dedos queimados. Quem me visse com sabrinas vermelhas e a fumar não me reconheceria. Alguém passou. "A sua alma ainda é do tempo em que esta rua era duas ruas?" Passou. As minhas pernas sugeriam um compasso ligeiro. Destoante. "A minha alma não é do tempo". Devia ser das sabrinas. Uma putrescência mole tomou-me de assalto. Sentei-me num dos bancos verdes, os meus pés não tocavam no chão. Baloiçavam-se. Duas folhas de papel. As sabrinas descaíram até às pontas dos pés. As meias escorregaram. A minha pele em evidência. Do joelho para baixo, as minhas pernas aparentavam-se com duas línguas espessas. Lambiam o vento. Era doce. Sentada no banco, eu quis ser a tua fotografia. Sentada no banco, meio-dia. Foi dia, noite, madrugada nesse meio do dia. Comeste-me o tempo. Por instantes fui uma fotografia. Um coração revelado numa câmara escura. A tua distância, uma lâmpada vermelha. Os meus dentes rangiam como máquinas de triturar. E nisto, levantei-me, milimetricamente. Abri a boca e saiu de lá um poema. Um poema teu que foi um beijo na testa. A minha testa de ouro e neve e neve de ouro e neve. Sempre aprendi que os poemas são cancros luminosos, alastram-se pelo corpo.
Um poema teu e o meu corpo é poema.
As árvores começam a crescer, a crescer, de tal forma que já não podia ver se continuavam a crescer ou se não. Afinal, era só mais um dos meus nervos quebrados. Esta minha grande capacidade de morrer com as árvores. As minhas mãos com buracos. E nisto, tinha acabado de me levantar. Como disse. As minhas pernas voltaram a ser pernas. Segui. "Nunca ninguém te ensinou a andar." Voltei a cara e ninguém. As paredes do estômago cheias de fumo. O estômago dorido desta fome de astros em cada pedaço de ti.
"Estivémos juntas numa conversa-tertúlia do Pedro em Braga." - assegurou-me na quinta-feira em que nos reencontrámos no Porto; e eu, embaraçada, bem, talvez..., eu não me lembrava, mas ela tinha a certeza, lembrava-se do meu rosto, e mais: do meu nome. Conquistou-me nessa hora.
Encontramo-nos algumas vezes na Biblioteca. E novamente, o meu nome e a minha incapacidade em continuar omitir a existência deste espaço...
(Conquistou-me como deve conquistar toda a gente: é impossível resistir-lhe, tem um encanto tão genuíno e total que desarma, é isso, ela é desarmante, absolutamente desarmante de tão encantadora.) Depois dessa quinta-feira, falei com a nossa Ana Arqueiro que me deu a descobrir o livro e o blog. Disse-lho na Biblioteca uma outra vez, na vez em que prometi dar-lhe enfim este endereço. Não lhe disse, nem mesmo quando me escreveu "ganhaste uma leitora e uma amiga", o que se segue:
Cerca de doze anos mais tarde, dei por mim a fazer com o livro dela o que fazia com os do Eugénio de Andrade no Secundário e com os do José Rui Teixeira depois da Faculdade, depois dos EUA; sempre à mão, sempre dentro da mala, para aquele intervalinho entre uma aula e outra, entre um autocarro e outro, entre o metro e o comboio, entre o fim do café e o regresso à minha base de dados...
E visito-lhe o blog, quase todos os dias, e fico uma eternidade a escrutinar-lhe os poemas, mirando cada palavra, pesando cada imagem, e dou comigo a fechar os olhos e a pensar em como é possível ser-se e escrever-se assim:
HORTELÃ
Ela tinha o cheiro das hortelãs ao sol e cabelos tão bem penteados que pareciam quase não existirem. O vento cobria-a de tal forma, que ela parecia voar ali mesmo, à frente de todos se não fossem os seus cinquenta quilos. Ao falar-lhe víamos que os argumentos daquele menina não tinham qualquer lógica, só açúcar. Mas era impossível resistir-lhe ao encanto, mesmo que dissesse só baboseiras. Até que um dia arrancou o próprio coração com as mãos e deixou-o a dormir num ninho de cegonhas. E nisto, o coração iluminou-se tanto que se incendiou.
THE STARS ARE VERY FAR NOW AND YOU ARE VERY FAR NOW
Fumei pelas ruas com as pontas dos dedos queimados. Quem me visse com sabrinas vermelhas e a fumar não me reconheceria. Alguém passou. "A sua alma ainda é do tempo em que esta rua era duas ruas?" Passou. As minhas pernas sugeriam um compasso ligeiro. Destoante. "A minha alma não é do tempo". Devia ser das sabrinas. Uma putrescência mole tomou-me de assalto. Sentei-me num dos bancos verdes, os meus pés não tocavam no chão. Baloiçavam-se. Duas folhas de papel. As sabrinas descaíram até às pontas dos pés. As meias escorregaram. A minha pele em evidência. Do joelho para baixo, as minhas pernas aparentavam-se com duas línguas espessas. Lambiam o vento. Era doce. Sentada no banco, eu quis ser a tua fotografia. Sentada no banco, meio-dia. Foi dia, noite, madrugada nesse meio do dia. Comeste-me o tempo. Por instantes fui uma fotografia. Um coração revelado numa câmara escura. A tua distância, uma lâmpada vermelha. Os meus dentes rangiam como máquinas de triturar. E nisto, levantei-me, milimetricamente. Abri a boca e saiu de lá um poema. Um poema teu que foi um beijo na testa. A minha testa de ouro e neve e neve de ouro e neve. Sempre aprendi que os poemas são cancros luminosos, alastram-se pelo corpo.
Um poema teu e o meu corpo é poema.
As árvores começam a crescer, a crescer, de tal forma que já não podia ver se continuavam a crescer ou se não. Afinal, era só mais um dos meus nervos quebrados. Esta minha grande capacidade de morrer com as árvores. As minhas mãos com buracos. E nisto, tinha acabado de me levantar. Como disse. As minhas pernas voltaram a ser pernas. Segui. "Nunca ninguém te ensinou a andar." Voltei a cara e ninguém. As paredes do estômago cheias de fumo. O estômago dorido desta fome de astros em cada pedaço de ti.
Anáfora, Ana Salomé
4 comentários:
Bom dia!
...optimas companhias!... talvez assim te convenças a parir o teu próprio menino. Vá lá... de certeza que a tese te deixa algum tempo livre! (mas pensando bem, passas esse tempo a desejar "ser livro"... MEXE-TE JOANA!!!!!!!!... A VIDA É MAIS CURTA DO QUE IMAGINAS. LUTA!!!!!!!!!!!!!!)
BEIJICOS
Querida Rosário,
Adooooooooooro a tua genica e desembaraço!!! :P
E agradeço o "abanão"...
Acho que não passo o tempo a "desejar ser livro", porque simplesmente não penso muito nisso. (Este blog é como se fosse um placard, onde vou pondo dia após dia imagens de momentos que me encantaram, não tem qualquer pretensão literária... Quando escrevo "à séria", escrevo diferente... Sim, porque também, às vezes, escrevo "à séria"...)
Agora, lá que passo o tempo a pensar que "tenho tempo" "para isto e para aquilo" "amanhã ou depois", passo mesmo, tens razão... :(
Mas... vou pensar "à séria" no que disseste.
Jinhos e obrigada ;).
joana, não sei como te dizer o quão estremecida fiquei. este é um dos gestos mais bonitos que já vi e tu uma das pessoas mais doces em que já pus os olhos em cima. muito obrigada.*
para além de teres ganho uma leitora e uma amiga, ganhaste também uma chata que estará volta sim volta sim a pedir para que escrevas o teu livro. quero muito ler. e como.
um abraço cheio de flores.
(espero que a tese esteja a correr bem. a minha anda a voar pelos himalaias)
*
ana
Ana,
Gestos bonitos dirigem-se naturalmente/justamente a pessoas bonitas. :))))
Cá entre nós, na realidade, este post é uma espécie de tentativa de redenção: o Anáfora caiu-me ao colo numa altura difícil e deu-me colo durante muito tempo. O tempo suficiente para eu fechar uma ferida. E talvez por isso, e mal, nunca o mencionei por cá; quando comentaste achei que era mais que tempo para a homenagem devida...
A tese não está a correr mal, mas acho que invejo a tua - pelos altos voos! ;)
Jinhos.
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