terça-feira, dezembro 16, 2008

No comboio (V)

A minha irmã mais nova acha que eu devia escrever um livro Do comboio. Coisas extraordinárias acontecem-me no comboio. Coisas extraordinárias acontecem-lhe quando vai comigo no comboio. Só quando vai comigo, só quando vai comigo, teima ela.


Não vou escrever nenhum livro Do comboio. Escrevo por cá as coisas que me vão acontecendo antes e depois do comboio. E isso chega. Escrevo por cá para não me esquecer. Escrevo por cá para que me leiam, mas mais para não me esquecer, sobretudo para não me esquecer.

Todos as manhãs entra no meu comboio cerca de cinquenta miúdos, mais de metade dos quais são graúdos, andam certamente no liceu. São os miúdos de Lousado, da Trofa, de Famalicão... que frequentam as escolas, externatos e afins, de Braga. Com o passar dos meses, as mesmas caras a entrarem nas mesmas paragens, os mesmos miúdos a passarem por mim com o sono a escorrer da cara, o gel do cabelo, os mesmos a sentarem-se próximo e a conversar para sacudir o sono, (re) conheço-os. Quando calha de ter acabado o livro que estava a ler, dou comigo a prestar atenção, janela fora, olhar dentro, dou comigo a ouvir-lhes preferências e inclinações, horários, feitios de professores, rotinas diárias de explicações e treinos e sms tardias.

Há três miúdos que entram em Famalicão que, não sei porquê, sabem que eu existo. Sabem que eu existo, tanto quanto eu sei que eles existem. Dois rapazes e uma rapariga. Acho que os dois rapazes são irmãos, porque apesar de muito diferentes, têm no rosto os mesmos traços exactos. Um, o mais alto e mais magro, é muito falador – passa a viagem a falar com a rapariga. Excepto há dias. Há dias sentaram-se os dois à minha frente e, muito caladinhos, prosseguiram viagem até Braga. Nesse dia, silêncio. E eu percebo bem porquê. Ao meu lado vinha uma senhora toda conversa. Ela era a música clássica que estudou, o canto coral que cursou, o Maestro Vitorino de Almeida que era vizinho em Moledo, a Amália que viu em Viana. Toda conversa. Eu a sorrir, a replicar na medida do possível. Os miúdos a olharem um para o outro. E silêncio. Para que toda a conversa prosseguisse. Nesse dia à tarde tive que regressar ao Porto mais cedo e no comboio em que fui lá estavam os três, os três a olharem para mim, a surpresa igual em três pares de olhos diferentes, o miúdo alto e falador a sobressair, a sair da surpresa e a cumprimentar-me com um sorriso largo, bonito, que não repliquei. Não estava à espera.

O outro miúdo, o mais baixinho, está sempre na sua, fala pouquíssimo, sorri ainda menos, dá-se uns ares de eu-é-que-sou-...-portanto. Portanto. Sexta-feira passada, não, quinta, quinta ou sexta, possivelmente quinta, sim, quinta, porque tinha o Pedro à espera. Quinta, saio à pressa do comboio, com o frio mais frio que pode estar em Braga às oito da manhã e o quispo mais quentinho e mais escorregadio de todos os quispos que tenho, a impedir a minha mala de permanecer mais que cinco segundos no ombro. Levanto-me para sair, coloco a mala ao ombro, pela enésima vez, e pela enésima vez ela desliza, o Pedro à espera e ela a teimar, ela a deslizar. Bem, toda a pressa é inimiga da paciência, vai daí, toda a violência do mundo, a que é possível às oito da manhã, para a colocar definitivamente lá em cima, no ombro. Toda a violência do mundo mais o peso da mala, aí uns três (quatro, cinco???) quilos, a resvalar para, volto-me, o ombro do rapazinho que não fala, sorri ainda menos e se dá uns ares de. “Desculpa.” Pedi desculpa imediatamente, reflexivamente. Pedi desculpa com um ar envergonhado, preocupado. Pedi desculpa e a vergonha e a preocupação passaram-lhe a mão dois instantes no ombro. Sorri-lhe. Desculpa. Ele, nada. Ficou parado a olhar para mim. Nada, surpresa, rancor, constrangimento, nada. O pedido, o gesto, o sorriso. Nada. Deu-se os ares de. O costume.

Fui-me embora, e, não o vendo assim à primeira, liguei ao Pedro que afinal não tinha à espera – adormecera. Possivelmente num soninho doce e reparador como o meu desta manhã no comboio.

Esta manhã só veio de facto à luz às 7h 50m. Incrível. Foi quando acordei realmente. 7h 50m ou Lousado ou Trofa ou quando o comboio começa a encher-se de mochilas de todas as cores, risos altos, cabelos esticadinhos, trabalhos de casa por fazer, trabalhos de casa feitos em cima do joelho, correntes, calças de ganga descaídas, cadernos dobrados no bolso, enfim, miúdos. Acabei de reler o Por quem os sinos dobram no comboio ontem; estava, ainda estou, demasiado ensonada para ler o que quer que fosse hoje. Olho janela fora, geada adentro. Famalicão. Olho porta fora. O miúdo falador não vem. O baixinho só. O baixinho só com a rapariga. Penso no que terá acontecido ao miúdo falador – adormeceria? O baixinho muito falador. A rapariga a responder. O baixinho a olhar-me. Os dois a sentarem-se do outro lado. O baixinho muito falador. Tão estranho, o alto é que costuma. O baixinho a fazer conversas pequeninas com a rapariga. Esta agora, então e os ares? – eu a pensar. No fim de cada conversa, o baixinho muito, muito, um olhar disfarçado para o meu lado. O baixinho muito falador. Uma conversa pequenina que acaba, inspiração, silêncio, expiração, o baixinho muito, muito, um olhar pequenino. Um olhar, muitos olhares. Pequeninos.

Chegamos a Braga. Levanto-me, o Pedro não está à espera, mas estou com pressa. Estou sempre com pressa de manhã, e estes dias, estou sempre com o meu quispo branco também, e até com a mala que sempre desliza. O baixinho levanta-se também. E a rapariga. Levantam-se os dois. Seguem-me ambos na pressa.

Ter dezassete anos é uma coisa muito bonita.

6 comentários:

Oásis disse...

Um livro sobre as viagens de comboio, nada mal pensado!

E agora fiquei a pensar em como eu era aos 17 anos!

Jinhos.

p.s.- a tua mala pesa cinco quilos!

Joana disse...

Marisa,

Pois... cinco... bem me parecia! :(


Jinhos.
(P.S. Como eras? Não tens ainda?!... :)

miradouro das cruzes disse...

Amiga JJ,
Estou sempre a "espreitar" o seu blog, procuro sempre o trabalho acabado de sair, fresco como pão para a boca. E fico imaginando a cena no comboio (várias vezes viajei a caminho de Viana ou Campanhã. De repente senti que o texto estava a "cair" para um certo suspense à Hitchcock (mas sem crime). Sempre ansiando pelo desenrolar do enlace, sempre imaginando a frase seguinte, sempre a prender o leitor com o final da história. São assim os seus bonitos textos, como crónicas cativantes, como Exupery no seu "Principezinho".
Carlos

Joana disse...

Carlos,

Que comentário tão simpático! E elogioso. :)))))))))))))))))))))
(Espero que os monstros sagrados a que aludiu não revolvam na tumba...)
Obrigada.


Jinhos.

Doppelganger. disse...

Eu vi a tua irmá ontem!
E ela viu-me a mim e falamos! Ela vinda do CCB e eu acabado de jogar futebol com os amigos e de gorro peludo enfiado na cabeça, lá em Lisboa, que grande coincidência!

As viagens de comboios!
tantas histórias que eu também tenho, mas mais para Guimarães!

:)

beijinho*

Joana disse...

Pedro,

Que bel coincidência! O mundo acaba por ser pequeno para quem se conhece e se quer bem, afinal! :)))

Jinhos.

P.S. Também quero saber pormenores dessas viagens... ;)