O meu amigo. Não é meu amigo, professora, ao contrário do que diz aqui o meu orientador, não é, não somos. Estou convencida de quem nem sabe o meu nome, conhece a minha cara - é obvio, mas se calhar é bom a memorizar caras, eu sei que sou. Parece-me é que não é tão arrogante, malcriado, insolente, mau, o papão que pintam. Foi muito generoso comigo, perdeu tempo, sacrificou tempo dele para explicar coisas que simplesmente. Digo-o com o conhecimento possível e duvidoso de quinze dias de Bélgica. Só isso. São amigos, está visto. Olhe ali o seu amigo, Joana, veja!
Nos EUA todos falavam dele com admiração. Alguns, os alemães, com reverência até. Nunca percebi a idolatria eufórica, marcou a Rice, marcou o Departamento, algumas cúpulas tremem, de orgulho, nunca percebi muito bem, depois li-lhe os livros. Muitos, muitos, muitos e bons. O futuro da teoria. Trinta e poucos anos e uma produção que faz inveja a muitos com o dobro da idade. À sua maneira, tão certa, tão forte, tão constante, tão determinada, subiu os degrauzinhos todos até onde se encontram os fundadores da teoria e até aquelas eminências outras, todos, os de sessenta e muitos anos agora, está com eles no topo. E fê-lo em menos de dez anos. Admiração e reverência percebidas, quase justificadas.
Ele trabalhou muito, trabalhou bem, sempre teve, tem, um sentido crítico notável e uma personalidade, bem, uma personalidade que de tão certa, tão constante, tão determinada, tão aguda, tão certa, não agrada a muita gente. As certezas dispensam subtilezas. Ganhou-me. Irremediavelmente. Para sempre (aquele sempre que não acaba, como a estima!).
Conheci-o já na Bélgica, um ano depois dos EUA, frequentei entre outros os dois seminários dele. O que o meu computador bloqueava com aqueles programas novos, o que eu ficava à nora com os mesmíssimos programas!... Don’t worry, we’ll deal with that during tea time. Germânicos! Durante o lanche continua-se a trabalhar, portanto, tea time, right..., com certeza. Foi assim que passámos a lanchar os dois. Passámos a lanchar sempre os dois. A bem dos meus quase nulos conhecimentos informáticos - as minhas aulas duravam mais trinta minutos do que as dos meus colegas, ali bem à vista da incompreensão de toda a gente, num jardim de Inverno magnífico de gargalhadas, descanso e os nossos trabalhos de linguística computacional. Depois, já para o fim do curso, sem dúvidas, sem dúvida, a bem dele próprio: quando não é um lugar complicado, o topo é um lugar solitário. Percebi.
Certa tarde, casualmente, para um espanto que eu não deixei que se desenhasse nos poucos que viram, logo que lhe descobri o embaraço de nós os dois na fila para o almoço vestidos exactamente... de igual!: ténis, jeans, pólo da Rice. Pólo da Rice!? O único pólo que tinha levado não se fosse dar o caso de, afinal era Junho. Como é que não me ocorreu que ele teria um, e que, tal como eu, o traria naquele dia, de tão confortável e quentinho e azul e tudo e tudo. Era Junho, devia fazer sol!, era Junho mas na Bélgica, no campo, no mosteiro liiiiiiindo, e o sol que fazia era o de um dos Fevereiros daqui. O frio varria as papoilas e o trigo mas não o discernimento. Subi ao meu quarto, vesti um kispo, menos quentinho é certo, mas definitivamente mais adequado. Depois do almoço, seminário, depois do seminário, o lanche do costume, os esclarecimentos do dia, a companhia de sempre... Um pólo da Rice lá longe na memória, um pólo da Rice dobrado, pela consideração, arrumado com estima, primeira peça de roupa do fundo da minha mala.
Um ano depois, já em Cracóvia, voltei a encontrá-lo. Encontra-se sempre muita gente nos congressos internacionais. Mas estou convencida de que ter-me-ia certamente passado despercebido, não fosse ele apresentar quatro comunicações e participar em, pelo menos, três sessões temáticas. Típico, Joana, está a ver? Fui a algumas, ele lá à frente, irrepreensível, igual a si próprio, e a Bélgica tão perto. – Trabalha muito, trabalha bem, é por isso, professora. – O seu orientador não diz nada, mas olhe Joana, vê? Vejo. De facto, é o terror de toda a gente nas sessões temáticas. Vê? Opõe-se com muita força, opõe-se muito alto. Vê? Levanta-se para falar. Vejo. Mas tem um sentido crítico notável!... O meu orientador torce-lhe o nariz à postura, a professora, entre as chamadas de atenção e as observações de sempre, choca-se, ri-se, cochicha com o meu orientador, e eu, eu a tentar, eu a vê-los grego e troianos, eu a querer percebê-los a todos.
Encontrámo-lo nas escadas e nos corredores e na rua, Joana, olhe lá em baixo o seu amigo, está a vir cá para cima, olhe, Joana, olhe o séquito, o séquito do seu amigo... Pois, pois, professora, ... (Ele tem um séquito, uma espécie de mini-corte, colegas de Departamento, que o aplaude e entretém enquanto come, bebe e fala com outras pessoas.) A professora a rir-se desde que lhe topou os apêndices e diverte-se ao me encarar sem resposta. O meu orientador a continuar a torcer o nariz.
Eu a vê-lo, a passar por ele, nas escadas, nos corredores e nas ruas, eu a querer sorrir-lhe o cumprimento educado, eu a não conseguir ser suficientemente rápida, antes do orientador e da professora se. Ele a ver-me, ele quase a retribuir, o séquito a turvar-lhe a vista, a deixá-lo na dúvida. Num dos lanches, tão bons!, daqueles dias intensíssimos de congresso, num raro momento em que me consegui escapulir ao orientador e à professora, num instante em que conversava amenamente e bebia cházinho com colegas, por acaso, da Bélgica, sempre o bendito tea do tea time, dispersou o séquito, veio ter comigo, afugentou toda a gente à nossa volta, como – nunca percebo, mas como sempre – enfim!, olhou-me, muito fundo, muito sério, olhou para o crachá – não gosto nada dos crachás dos congressos! Nome e Filiação académica, produto de origem certificada! – e disse:
-
- I know. So have I.
Sorriu. (Coisa rara.) Passou-me a mão no ombro. (Os mitógrafos não consentirão nunca.) E foi reunir o séquito.
* O meu orientador agora num mail acerca de uns atrasos institucionais, efeitos da crise global, contra os quais se ele insurgiu da única maneira que sabe: fundamentada e fortemente.