Tenho muito esta mania de, fora, querer conhecer os museus, vidas de pessoas, antes da vida das cidades. Acho que é o meu fascínio por determinadas personalidades, uma coisa que vou alimentando anos a fio, a sobrepor-se à curiosidade cultural mais genérica. Acho também que pode ter a ver com a minha timidez, mais ou menos residual, mais ainda assim efectiva - sinto-me sempre mais eu dentro de portas.
Ainda assim ando entre a gente, claro!, ando entre as pessoas, embora mais para comprar comida e chegar antes de toda a gente à abertura do museu, do que para ver cores e sentir cheiros, pelo menos numa fase inicial - penso sempre que para isso tenho tempo depois. Às vezes não tenho, há muitas cidades de que apenas conheço os museus ...
Quando, há dois Verões, estive na Bélgica pela segunda vez, já tinha tudo organizado para ir à Holanda uns dias. Tinha lá uma amiga muito amiga, tinha tempo e curiosidade, uma série de cidades, museus, a visitar. Até hoje foi o único país em que consegui visitar tudo o que tinha em lista e mais - aquilo que a minha amiga a viver lá há anos lhe quis acrescentar. Às vezes penso no meu necessário regresso à França, ao Reino Unido, mas não à Holanda - é uma sensação esquisita, como um nó que finalmente tivesse dado a fechar um pacote, um ciclo que se cumpriu.
Lembro-me de muita coisa em flashes, os Vermeers, as nossas tardes de sol estendidas nos parques, salivo a recordar a comida turca e as gauffres com gelado, sorrio aos passeios nos canais, na Dam, na Mme. Tussaud... Recordo o nosso desalento a sobrepor-se à fome, ante a nossa demanda, ingrata, por uma tarte de maçã às quatro da tarde - temos mas só ao almoço e ao jantar, como devem perceber não podemos servir agora, podem sempre esperar duas horas para jantar e pedem-na à sobremesa. Nós a não esperarmos. A minha amiga a explicar-me o quanto lhe desagradava este rigor cego dos holandeses, eu a assentir: nordiquices... (Voilá o povo, os costumes, a cultura...)
E no entanto, a Holanda pesa-me. A Holanda é sobretudo a medida precisa do inefável a trespassar-me o coração no último andar do Museu Van Gogh. Os últimos quadros, não mais que meia dúzia - 'tempo do sanatório' podia ler-se à entrada -, excertos das cartas dirigidas ao irmão a legendarem-nos, a cor da argila, esquecidos os amarelos, o verde caqui, nenhum azul, o desespero das formas, uma aridez, uma morte muito grande antes da morte. Não sei se por compaixão, se por empatia - o Verão que estava prestes a terminar não me tinha sido propriamente fácil - demorei-me muito ali, no final da exposição, onde quase ninguém se demora. Deviam já ser horas de tarte de maçã, quando a minha amiga veio finalmente resgatar-me, eu a não querer tirar a mão do ombro do Van Gogh, eu a soçobrar por fim e a dizer adeus.
E foi assim que nos encaminhámos para a parte mais comercial da cidade, desta vez a horas próprias de reclamar a tarte do dia anterior. Por entre o burburinho dos turistas e dos asiáticos nas suas tendas de souvenirs, um rapazinho de sotaque americano, a cantar mal e a tocar pior, a lembrar-me muito os meus domingos americanos, e a quem dei a única esmola de que me lembro na vida adulta; dizia '"The mass of men leads lives of quiet desperation." - Henry David Thoreau' no cartão pardo sobre o estojo da guitarra.