sexta-feira, março 05, 2010

Da regularidade

Quando eu era pequena, o álbum de fotografias do meu Baptizado entretinha-me tardes inteiras: encantava-me. Deixava-me encantar pelas mais pequenas coisas - na verdade, ainda hoje sou assim. Mais do que as fotografias, maravilhava-me cada a folha branca e fina que as protegia e que eu virava solene, como se num ritual secreto manuseasse um bocadinho de um céu de arco-íris.

Assim que aprendi a ler, o meu enlevo abandonou a segunda metade do álbum e centrou-se com o mesmo fervor apaixonado na primeira: deixei as fotografias e a película protectora, e demorava-me na minha infância caligrafada, desenhada, por palavras e sublinhados que só a minha mãe. Ao virar a página das doenças, depois do sarampo, da varicela e da papeira que não tive, o dedo a curvar-se muito para à tosse convulsa - a doença mais feia da página - perfilavam-se os signos do Zodíaco. Nova demora. Grande demora.

A minha mãe tinha sublinhado Touro e Constância. Esta última, a verdadeira razão que me prendia à página. Porque não sabia o que significava. Porque sabia que era bom - antes disso podia ler-se Maior Virtude: Durante uns tempos foi o bastante. Sossegava-me o facto de ser virtude e por isso virava displicentemente as páginas, aquela mais rápido que todas as outras, todo um estado-de-imagens-palavras-e-sublinhados intacto, inalterado, o signo espiado apenas pela pontinha do olho.

Depois, não sei ao certo quanto tempo depois, a palavra deu cabo do signo, da página, do álbum inteiro. A palavra cresceu-me dentro da cabeça e começou a pesar-me, mais e mais cada dia. Ocupou-me todo o espaço do cérebro e muito tempo, todo o que dispunha na altura a intimidade dos meus pensamentos. Um dia não aguentei mais e corri a perguntar o significado à minha mãe. Fui relembrada de duas verdades universais: a minha irremediável não-subtileza não compensa; as mães nascem imunizadas a efeitos-surpresa. Obtive o isso-vai-se-ver-ao-dicionário!, o costume.

Fui. Voltei a sossegar. Nem foi o colo da minha mãe no depois. Nem a perseverança, a firmeza ou a persistência do dicionário. Foi o inquebrantável da definição. O inquebrantável a ser água. A certeza do vaso que não se parte. Do que é para sempre. Coisas que enchem a vida da mais completa satisfação, felicidade.

6 comentários:

Doppelganger. disse...

Ès inquebrantavel mesmo, és uma força da natureza, se não soubesse que és madeirense (apesar de cidadã do mundo) diria que pelo jeito como falas e pela maneira como a tua força interior se faz sentir diria que és uma verdadeira mulher do Norte, rija e lá está...inquebrantavel. :)

Beijinho.*

Joana disse...

Pedro,

:D

... pelo que, tu - homem do Norte -, inquebrantável tens de ser. ;)

(Esta saiu-me muito bem, ihihihi!!!)


Jinhos.

Maria Rita disse...

É bonito perceber como, ao longo do tempo, a atenção se vira das imagens para as palavras de uma forma avassaladora! Tão bonito, como só tu ;)

Beijinhos*

Joana disse...

Frida,

Pois é. :)))) Só tu! Não me tinha ocorrido...
Uma evolução de facto curiosa. Mais ou menos assim: imagens-> palavras -> gestos -> silêncio. Tudo coisas que falam. ;)

Ritinha, deste-me agora muito que pensar. Que bom!


Jinhos.

comboio turbulento disse...

Gostei dessa sequência no teu comentário. E como os silêncios são dificeis de gerir...

Joana disse...

Comboio,

Por isso é que vêm (os silêncios) no fim do tempo, perdão sequência. ;) Mas, tu, actor, melhor que ninguém saberá dizer da dificuldade do silêncio.)

(Nota que falava de um silêncio bom, de silêncios que são presença, confiança...)

Jinhos.