domingo, março 21, 2010

De Mundialidades

UMA ÁRVORE NA MINHA VIDA

Não sei um dia mas alguma coisa me doía
ou talvez não doesse mas havia fosse o que fosse
Era isso sentia a grande falta de uma árvore
e pensei plantar em seguida uma árvore na minha vida
uma árvore ouvida sempre que me sentisse só
e mostrasse ela só na face a compreensão que mais ninguém mostrasse
mesmo que não me queixasse fosse por pudor ou fosse pelo que fosse
Era mesmo uma árvore que me faltava
precisava de sombra mais do que vivia eu envelhecia
não dispunha da companhia de ninguém
e far-me-ia decerto bem conhecer gente nova
gente que se renova no alto de um tronco forte
que não sabe da morte que floresce ou sorri
Mulher nenhuma vi tudo à minha volta
eu tinha a cabeça de tudo envolta numa última manhã
sabia que sempre seria vã porque até aí sempre o fora
a promessa dessa virgem loura completamente absorta em florir
em ser alta sorrir caminhar pela estrada
Fora uma pessoa despreocupada ao longo de toda
a vida um dia porém conheci a mulher alada
por charlie chaplin somente em the freak conhecida e transfigurada
conheci-a e desde esse dia nunca mais fui nada
Fora bem feito deixar-me vencer pela hidra
sentir essa pedra pesada no peito
essa arquitectura que tudo devora mas tudo inaugura
mulher tensa fechada como o é a pedra
Ajoelhei na terra senti-me chorar
a noite desceu e quando o dia nasceu
havia uma pedra a mais sobre a terra
Cabelos compridos da cor dos montes
alvos ouvidos olhos rasgados como horizontes
concentrada fechada nada mais do que pedra
coisa que se cerra que ou não sofre ou não precisa de alívio
forma fugaz de convívio na ponta das unhas com terra entranhada
mulher talvez menos que nada talvez solução para a vida
casa coisa de terra na vida de um homem
árvore dor árvore vida árvore humana
luz que ilumina de ano para ano
lume expansivo e pleno aceso no ar
tocha toda ela a arder à custa de se consumir
de mão de mulher para mão de mulher
Eu tinha nas mãos então meia dúzia de nomes
quando às vezes os pronunciava o tempo rodava e parava
(...)
Nesse tempo porém a árvore era a virgem loura
ela vivia devagarinho rodava todo o dia com o sol
sabia perfeitamente saborear a vida na chuva contida
mas era pouco para ela o espaço dos dias para ser bela
Sentia esse dia afinal a grande sombra de uma árvore
eu disse que sobre ti árvore ou nuvem o sol incida
e seja como de ti uma espada que de ti faça romper a vida
Quero alguém para mim onde eu me renove
uma árvore sempre comove tem verdes os ramos
ó árvore vamos fazes-me falta
Eu sou do pólen sulfuroso dos pinheiros
da tília de sombra ungida e tingida
diamante por vezes polido pela noite
à luz erma do candeeiro de algum jardim
das folhas de plátano dobadas por vezes pelo vento
das primeiras ameixas maduras no santo antónio
pequenas vinhosas sombreando a árvore
seguidas das peras e logo das várias castas de maçãos
expostas sobre as mesas nas casas da praia
perfumando esses dias demorados no verão
sou das macieiras noivas naqueles seus véus
quando os campos à volta como que ainda dormitam
sou da cerejeira essa árvore vista pela primeira vez
quando eu olhava todas as coisas da primeira vez
cerejeira da noite aparição carícia
nas mãos daquela primitiva primavera
mas vamos árvore seja o teu nome ele qual for
(...)

Ruy Belo, Todos os Poemas III,
Colecção Obras de Ruy Belo,
Assírio e Alvim, 2004

5 comentários:

Vanessa disse...

sabes uma coisa? estive quase-quase a ir buscar este poema para hoje. :))))

oh, como eu admiro este homem.

beijinho*

Vanessa disse...

Da luva lentamente aliviada
a minha mão procura a primavera
Nas pétalas não poisa já geada
e o dia é já maior que ontem era

Não temo mesmo aquilo que temera
se antes viesse: chuva ou trovoada
é este o Deus que o meu peito venera
Sinto-me ser eu que não era nada

A primavera é o meu país
Saio à rua sento-me no chão
e abro os braços e deito raiz

E dá flores até a minha mão
Sei que foi isto que sem querer quis
e reconheço a minha condição.

Ruy Belo

:)

Joana disse...

Vanessa,

Aha! também me lembrei de ti - claro! - enquanto o transcrevia. ;)


Oh, gosto tanto desta Primavera. :)



Jinhos.
P.S. Optaste muitíssimo bem - o Manuel de Barros é um génio. (outro génio ;))

Anónimo disse...

Ruy é Belo como o teu positivismo contagiante. Mas a chegada da Primavera é sempre uma excelente notícia. e se chega com o Ruy, então ainda mais Belo é.

beijinhos

Joana disse...

Comboio,

A chegada da Primavera é a melhor notícia. Permitamo-nos isso. ;)



Jinhos.