sábado, julho 24, 2010

De ir e voltar

Anteontem o meu namorado perguntava-me da Shakespeare & Co. em Paris. Estaquei. Eu a parecer-me impossível não saber francamente se tinha lá ido - Paris já foi há quase dez anos -, eu incrédula a pensar como não tinha ido se palmilhava aquela zona diariamente, ele a mandar-me fotografias, eu a reconhecer o interior, mas... - paredes forradas de livros, pilhas de livros, pessoas a lerem livros em pé, é coisa que já vi em muito sítio de há dez anos para cá.

A verdade, acabei por dizer-lhe, é que, na altura, era uma pessoa diferente; os livros interessavam-me de uma maneira mais enciclopédica do que literária, o que, por vezes penso, talvez fosse preferível nunca ter deixado de ser assim. Coisas estranhas acontecem quando os livros deixam de ser apenas os dicionários e as enciclopédias e se esgueiram das estantes do escritório para velarem por nós na mesinha de cabeceira. Como se o mundo nos fosse mais pesado e mais leve, mais real e mais surreal; como se a vida mais triste e mais feliz, nós também mais tristes e mais felizes nela, todas as coisas mais vivas e mais mortas. Acho que a melhor maneira de explicar é dizer que nos nasce um olhar inteiro, verdadeiramente humano, e, talvez por isso, velho. E é legítimo que assim seja. Em todos os sentidos, bons e maus, que uma visão deste calibre possa ter.

E, ainda assim, a minha vida começou a mudar em Paris. Digo isto a toda a gente, recomendo vivamente a viagem - não necessariamente Paris - prescrevo, sem indicação específica, o aproveitamento possível das low cost, do couchsurfing, dos interrails, das casas dos amigos até. Mudamos muito quando vamos para fora - uma coisa que acontece também, e tanto!, com a leitura. Fui para Paris por razões académicas, mas a fugir de uma desilusão pessoal. Escusado será dizer que não se pode fugir dessas coisas, levamo-las connosco para todo o lado, como uma sombra que nos apouca, enquanto as não resolvermos. Hoje, sei, indico, específica e inespecificamente e em doses imoderadas, viagens ao fundo dos livros no quarto, que os livros têm na verdade ousadias e um acompanhamento de que os amigos, por todas as razões, muitas vezes se escudam.

Quando fui para os EUA, felizmente sem nada de que fugir, e fui a NY e fui à Strand, estava longe de pensar que começaria a escrever. Na realidade, a realidade é simples: estava longe e comecei a escrever. Para manter laços, para continuar a viver a língua, para me entreter. Não tinha qualquer pretensão, não procurava nada, fora de mim pelo menos, nada de nada. (Ainda hoje a escrita a sério, aquela de trabalhar a papelada que se vai mandando para a gaveta, é uma coisa que planeio deixar para a reforma, se o acaso afortunado, e muito desejado, de ser avó não me conquistar uma dedicação apaixonada e exclusiva.)

Tenho uma amiga que, estranhando tanta música aqui, me perguntou um dia se não sentia necessidade de escrever. Disse-lhe dos lugares da escrita. São muitos; não é preciso passá-la necessariamente por este parapeito. A escrita é um acto contínuo. Às vezes como respirar, às vezes como beber água. Este blog data dos EUA e aconteceu por acaso; trouxe-me muitas coisas, boas e más. Foi mudando ao longo do tempo, concedo que em sincronia com o meu coração; mais recentemente coincidiu com uma mudança major na minha vida e com o caminho que, querendo meu, desde então construo diariamente.

Mudamos muito ao longo da vida. Mudamos quando saimos de casa para ir viver sozinhos com a maioridade de fresco. Mudamos quando temos vinte anos e se vai para uma cidade como Paris. Ou quando se tem vinte e cinco, e um coração de dezassete, ou menos, e se vai para os Estados Unidos. Mudamos no regresso, a idade, a idade do coração e os planos, baralhados. Mudamos no depois. Mudamos no ser, nos quereres, mudamos no estar aqui. Se hoje indico, específica e inespecificamente e em doses imoderadas, viagens ao fundo dos livros que vamos acumulando no quarto, e viagens, é porque um dia, não sei se em Paris, nos EUA, se aqui, fui para o outro lado do mundo e a minha vida mudou.

(Desconfio de que também mudamos, desbaralhados, aos trinta.)

11 comentários:

Maria Rita disse...

Que saudades de te ler Joaninha! :)

Uma destas frases ficou-me especialmente na memória: "Mudamos muito quando vamos para fora". Não pude deixar de pensar o quanto cresci em Roma e o que Roma ainda me faz crescer passado cinco meses.

PS: Quanto à recomendação de Paris, espero ir lá brevemente! :)))

Um beijinho*

Joana disse...

Frida,

É natural (e tãaao bom!) :))))))))))))



Jinhos.

P.S. É uma cidade magnífica. Vale a pena!

Vanessa disse...

clap clap clap! :)

a mudar assim, mudemos sempre.

(que texto delicioso! e um viva aos corações musicais!)

beijo*

Joana disse...

Vanessa,

Eheheheheh!!! :D


(Grandes inspirações... é o que é! ;)



Jinhos.

Oásis disse...

E à medida que ia lendo o post pensava: "oh, não. isto é uma despedida. ela vai fechar o blog. isto é uma despedida!" Uff, é bom estar enganada :)

Jinhos.

Joana disse...

Marisa,


Naaaaaaaaaaaaaaaaaaa! ;)



Jinhos.

Sara disse...

Belo texto. Também gosto de viagens, ao fundo dos livros e a outras geografias. Abrem caminho àquilo de que fala no texto: às viagens ao interior de cada um de nós, as mais importantes.

Ouriço-Cacheiro disse...

Vês o que começa na Shakespeare & Co. acaba sempre bem ;-)
belo texto!

Beijinho

Joana disse...

Sara,


Bem verdade. :))) Obrigada pela visita, volta sempre.




Jinhos.

Joana disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Joana disse...

Ouriço,


Yep, yep. Até porque quem escreve o Sonho de Uma Noite de Verão sabe gosta de histórias de amor com felizes. ;)



Jinhos.