sexta-feira, outubro 21, 2011

Do que fica - 2

A vós, aspirações vagas, entusiasmos;

cismas depois do almoço; impulsos do coração;

enternecimento que vem com a satisfação

das necessidades naturais; clarões de génio; apaziguamento

da digestão bem feita; alegrias sem causa;

distúrbios da circulação do sangue; recordações do amor;

perfume de benjoim do banho matinal; sonhos de amor;

minha enorme molecagem castelhana; minha imensa

tristeza puritana, meus gostos especiais:

chocolate, bonbons, doces de derreter, bebidas geladas;

charutos entorpecedores e vós, acalentadores cigarros;

alergrias da velocidade; doçura de ficar sentado; delícia

do sono na completa escuridão;

grande poesia das coisas; noticiário de polícia; viagens;

tziganos, passeios de trenó; chuva no mar;

loucura da noite febril, sozinho com alguns livros;

oscilações do temperamento e do tempo;

instantes de outra vida, reaparecidos; recordações, profecias;

ó esplendor da vida comum e do ramerrão quotidiano,

a vós esta alma perdida.


Valéry Larbaud

(trad. Carlos Drummond de Andrade)