Muitas casas cabem no coração. O próprio coração é uma. Casa. Com muitas ou poucas pessoas lá dentro, dependendo de quem é. Meu ou dos outros.
Não tenho muitos amigos. E quando digo que não tenhom muitos, é porque não tenho mesmo,: tenho um, bom, digno da maiúscula, de sempre, para sempre. Um. Só. Depois tenho duas ou três, daquelas de minúscula, mais conhecidas - colegas, companheiras, coetênas, ambas, contrerrânea, uma - que amigas. E isso é um problema. Porque não é normal, dizem-me, não ter uma lista infindável de amigos. Porque nunca se sabe o dia de amanhã, dá jeito, conheces mais gente e vais a mais sítios e fazes outros amigos, porque assim nunca tens com quem sair, vais ao cinema com quem, sozinha?, que horror, e jantar fora? deus me livre! Mas ainda há pior, porque és uma convencida, arrogante, achas que és boa demais para nós, que não precisas de ninguém, que estás acima de toda a gente, que o comum dos mortais te aborrece, que és mais, melhor, que queres mais, melhor.
Não acreditam, mas não se trata de nada disso. O facto é que - custa-me admiti-lo, mas é verdade - gosto muito, muitíssimo, mais do que de mim às vezes, de muito poucas pessoas. A quem gosto dedico uma devoção de intensidade e duração ilimitadas, mas são poucos os que me entram no coração. Verdadeiramente. E eu só funciono com verdadeiramentes.
Quando venho cá, tento sempre encontrar o meu melhor amigo para lhe dar um beijinho e dizer olá. Nem mais, nem menos. Não é preciso, nunca foi. Ele também é uma pessoa ocupadíssima: o ministério que tem a seu cargo não lhe permite muito descanso.
Conheci-o no Secundário, sentava-se atrás de mim. Aliás, a última fila horizontal de mesas da sala era ocupada pelos seminaristas. Uma coisa leva à outra, eu sendo eu, as outras sendo tão outras, acabámos por fazer as traduções de Latim os dois, em grupo, do 10º ao 12º. Não me recordo já de muito, se calhar dizia-lhe uma ou outra palavra etimologicamente derivada nos testes, possivelmente espreitava-lhe a tradução e verificava se estava bem o suficiente para passar, não me lembro, mas lembra-se e diz, porque consta nos cânones cá da Diocese que a Joana era a defesa que lhe permitia ir ao ataque... Coisas do S.
Verdade, verdadinha, não andávamos sempre os dois, nem coisa que se parecesse. Eu era muito profissional; ele, religioso. Dava-lhe os bons dias de manhã, trabalhavamos durante as aulas de Latim e Grego, num ou outro intervalo cruzava-me com ele e era só. Às vezes ao fim do dia lembro-me que subia com os seminaristas, todos, para casa. Mas nada para além disso. Mas revendo agora esses anos, penso que a nossa cumplicidade cresceu e solidificou-se mercê de um episódio banal nas aulas de R.P. (sim, tive Relações Públicas no Secundário!): um debate. Debatia-se não sei o quê, sei que tudo parou, quando o S. disse que ninguém trata melhor dos filhos que a mãe. Tradução para a turma: O lugar da mulher é ao fogão! A confusão instalou-se, o S. ficou para sempre como o ignorante machista que ainda bem que ia ser padre porque mulher nenhuma toleraria partilhar a sua vida com alguém assim, um assassino de carreiras.
Como de costume, não participei na discussão, até porque debates não são o meu forte e a opinião que tinha foi a que lhe dei no caminho para casa. Estava coberto de razão. (E sim, sou machista: adoro que me levem a mala, as compras, que me beijem a mão, me deixem entrar primeiro e me puxem a cadeira!). A partir daí, que me recorde, pouco ou nada mudou, pelo menos para mim. Para ele, aparentemente, passei da melhor aluna da turma à melhor pessoa possível - de onde, nem sei.
Faziam-se apostas, ridículas, daquelas que são muito importante aos dezasseis, dezassete anos. Qual dos oito seminaristas qual chegaria ao fim? A turma era unânime: o S. e o G. Porque os outyros namoravam, aqueles não e até mais certamente o S. porque era machista e claro está, fica sempre bem a um padre sê-lo (?), o G., o G. se calhar ainda se safava, encontrasse ele a mulher certa (!). Palermices de décimo primeiro ano que nunca me cativaram. Nunca perdi tempo com isso. Pensava mais no meu futuro, bem mais complicado, porque menos certo, menos delineado que o deles. Mas a turma tinha razão.
O S. e o G. são padres hoje. Fui à primeira missa de cada um, mas a do S. foi especial. Nunca chorei tanto dentro de uma igreja. Tudo esteve bem até ao fim, mas com o fim vieram os cumprimentos e o absolutamente inesperado "Joana, muito obrigado, não estaria cá se não fosses tu. " Não aguentei. Ainda hoje evito pensar nisso, porque ainda hoje não me consigo conter. Foi sincero. Vi perfeitamente, no olhar, nas mãos que apertavam as minhas, no silêncio que fez depois. Foi sincero. E absolutamente incompatível com o orgulho que tinha sentido ao longo da missa: o quanto aquele rapaz tinha crescido, o quanto estava bem naquele ministério tão nobre, o quanto me honrava ter partilhado com ele 3 anos da minha vida no ambiente mais salutar!... Sempre fomos amigos, sempre o ajudei, lá em casa toda a gente sabe que é o meu seminarista favorito, o único que chamo de amigo, por quem peço todos os dias, mas isso são coisas minhas, as minhas adulações, perdão: adorações privadas, nunca pensei que... Obrigado... Obrigado... Obrigado... a bailar-me na cabeça.
Foi há três anos. Agora, o G. está em Roma a completar uma pós-graduação. O S. está cá, na Madeira, tem quatro paróquias - uma das quais a que frequento -, dá uma ajudinha numa outra e lá de vez em quando vai a Paris e a Perth fazer o mesmo. O tempo escasseia, não estica e a família e os amigos habituaram-se ao contacto quinzenal, breve, mas a cada vez desprendido, autêntico, alegre e sincero.
Portanto, é já com alguma naturalidade que, após a missa, o vou cumprimentar e perguntar-lhe como está. No início, numa das primeiras vezes, só se deu conta de que eu estava lá... a meio do sermão, engasgou-se, e eu achei graça; ri-me e pisquei-lhe o olho: tinha que continuar. Continuou. E bem. Depois, no fim, foi o costume, tens que avisar quando vens, para dizer umas coisas mais bonitas, de pendor clássico, puxar de umas quantas etimologias.... Rimo-nos. Anda cá para te apresentar aos acólitos, podia ser vossa professora se estivesse cá... que exagero, é muito generoso, o S., não liguem, vocês já o conhecem...
Bem, passou o Verão todo e não o vi, a missa esteve sempre a cargo de outros. O mês passado não o vi. E então ontem, finalmente, após pesquisa aturada do meu pai (Obrigada!) lá lhe consegui dar o abraço do costume. Fomos todos tomar café, para deleite (ou não) de tudo quanto é paroquiana - ... mas... S. , tu vê lá; ... há que fazer as pessoas felizes, vão ter com que se entreter a semana toda, Joana. É um favor que lhes fazemos. Rimo-nos. (Estamos sempre a rir.)
Actualidade dos pais, irmãos, amigos e conhecidos devidamente dissecada, passamos ao trabalho, meu, dele, à alegria que era ver-me, ao paraíso que é acabar um fim de semana tão agitado naquela esplanada a relembrar bons tempos e uma amizade que fazia ir à escola valer a pena, ao casamento da irmã do Cristiano Ronaldo, o primeiro a cargo dele, à genuína simpatia do CR contrariamente ao que toda a gente diz, ao meu casamento que não tem data limite porque a Joana é a Joana e tem que se confiar nela (paizinhos, ouviram?) porque ela nunca faz nada errado, nem fora de tempo (!) (caríssimas amigas colegas e demais conhecidos e conhecidas, estão a ouvir/ler?), ao carro que é novo e que só tem um raspãozinho de um dia em que o sol estava tão bonito sobre o mar que não me contive a olhar os dois raiozinhos e depois, depois olha... foi isto!
Foi isto. Não precisei de explicar mais nada aos meus pais. É meu amigo. Daqueles do peito, do coração, que entram para não sair mais, nunca! Porquê? Por causa de dois raios de sol.