quarta-feira, março 14, 2007

Há dias em que vale mesmo a pena...

... sair da cama, de casa, de nós.
Há dias em que os olhos, ou o coração, às vezes - com sorte - ambos, aquecem na mesma proporção em que o sol brilha. Mesmo que se esteja em Março, e num qualquer centro urbano.
Nesses dias não há aço, nem cinza, nem betão, nem Inverno, nem Verão, nem sequer Primavera... Não há. É. Tudo. Tudo o que se quiser. Tudo o que se nos é mostrado. Tudo. Só. E chega.
Esses são o reverso dos dias que mais frequentemente se apressam na memória: mais sombrios, frios, longos, vazios... aqueles dias em que se acorda sem água quente, em que o secador avaria, se perde o metro, ou o comboio, ou ambos, em que se sucumbe à tentação de pensar que a culpa é nossa, mea culpa, mea culpa, mea culpa, que o outro tem sempre razão, que isso de... e de... e ... isso então já não existe, porque as pessoas são assim e assado e não sabem ver e não merecem e ainda pensam que estás mas é maluca e se riem de ti pelas costas, mea culpa?... Pensa-se demasiado, o chocolate encrava na máquina, o computador bloqueia, a pen deixa de funcionar, quebra-se um tacão e só não se encontra um gato preto no regresso a casa porque não calhou olharmos muito para além dos senhores de meia idade que deveriam deixar os piropos de quinta para as suas homólogas - que as deve haver por aí também...!
São muitos estes dias de reverso. Ou, por outra, se calhar nem são. Mas pespegam-se ao nosso inconsciente de uma maneira tão ridícula, odiosamente perene, absolutamente impossível de igualar por parte dos dias bons.
A minha rua é pequenina, interior, escusa e escondida algures no centro do Porto. Raros são os taxistas a que não seja preciso indicar outras três ruas e a vizinhança de um certo Instituto... Perpendicular a uma das mais longas, célebres e movimentadas artérias do Porto, a minha rua poderia considerar-se num dos seus extremos uma ruinha de caixotes habitacionais, de gosto duvidoso alguns, com uma pastelaria tradicional de donos artolas aqui, uma outra, moderna, especial, três metros acima; uma frutaria igualmente tradicional (mas com um dono mais honesto que o da primeira padaria) ali, uma florista que, além das flores, vende periquitos e coelhos e hamsters acolá, uma tasquinha especial, uma loja de desporto à beira da falência, uma loja de louças, uma churrascaria e uma tabacaria, em idênticas condições. No outro extremo, o cenário é menos tradicional, pululam os colégios, e supermercados, e tabacarias e pastelarias cheias de vida, adolescentes...
Prefiro o lado mais sossegado da rua. Não pelo sossego, que esse cheira a traças em nafetalina, mas porque esse é o lado dos sorrisos, dos acenos e dos olás bem dispostos. No lado movimentado, não conheço ninguém. Ninguém se dá a conhecer também. Mas no lado sossegado, a história é outra. As pessoas estão à janela quando saimos de manhã e, intuitivamente ou não, quando regressamos ao início da noite também. Se vimos a casa almoçar, às duas da tarde estão à porta e dizem "Até logo" às vezes mesmo sem articularem palavra, com os olhos, ou com o sorriso, ou ambos.
Com o Tiaguinho é assim. O Tiaguinho era um miúdo quando mudámos para cá. Não tínhamos fogão ainda, o meu pai e o meu irmão juntam-se sempre os dois à esquina quando se trata de explorar uma nova tasquinha e, esquina dobrada, lá estávamos nós, os seis, a almoçar alegremente. Podia (vir a) ser meu aluno, o Tiaguinho. Teria aí uns doze anos, que não passaram despercebidos a ninguém, mas que só a mim e ao meu pai impediam a comida de descer. Nem à força de muitos líquidos. Estávamos nas férias da Páscoa de há três anos e o meu pai perguntou-lhe se gostava de ajudar o pai nas férias. "Gosto, mas não é só nas férias, é sempre!" O sorriso triste contradizia a assertividade do discurso, fiquei baralhada. "Então e a escola?" - insistia o meu pai. "Disso é que não gostava." - gargalhada sincera, menos mal. (Pois... pois... pois... Mais um que a Escola não soube... - pensava eu e a comida além de custar a descer já não me estava a saber bem.) Fomos embora, pisquei-lhe o olho e dei-lhe uma gorjeta potencialmente interessante. Dez olhos revirados para cima, risos, "... é sempre a mesma esta rapariga, podia ser teu aluno, já sabemos!", risos. Acho que desde então ficámos secretamente ligados pela fraternidade da piscadela. Fazia isso sempre que eu passava e ele estava à porta. Depois, acabaram-se as férias. Voltei às aulas na Faculdade, pus os ténis e os jeans de lado - pôs a piscadela de lado, conjugava fatos e malas - conjugava olás com mega-sorrisos. E é esta a história do Tiaguinho, meu fã número um - dizem as más línguas lá de casa.
O meu fã número dois quase podia ser pai do Tiaguinho. Quase. Deve ser pouco mais velho que eu e conhece mais de mim que a minha entidade patronal, por exemplo. Foi durante mais de dois anos a primeira pessoa a quem dava os bons dias, viu-me ensonada, pouco penteada, cansada, enfim, o meu fã número dois é o senhor da padaria. Muito simpático, aliás nem sei... até porque é pouco falador, mas sempre me serviu bem e ainda me oferecia pão ralado (de cada vez, sem eu lhe pedir) - é por isto... as más línguas são terríveis! - não tenho portanto qualquer tipo de razão de queixa do senhor. Mais, o dono da padaria, que deve ser pai dele, faz o mesmo e o outro senhor (tio?) também. Por isso, tenho para mim que tudo isto se deve ao seguinte: para eles tenho cara de comilona e vai daí a operação de charme, perdão marketing, para manter o freguês (satisfeito). É verdade que o homenzito, mais novo, me/nos dá as boas tardes e as boas noites, quando, porventura, está à porta da padaria (também), e buzinou e acenou sorrisos há dias à minha irmã mais nova, quando na realidade já não somos fregueses (fui para os EUA e o meu irmão foi acometido por uma súbita, e crónica, economite aguda), mas é simpático da parte dele. E calha bem, passa a ser fã de toda a gente e não meu fã número dois - embora tenha que trabalhar mais nesse sentido, porque isto da fama é um custo para se ver livre!
Bem, como por esta altura já devem estar a pensar nos atributos que tenho e que não tenho e no que sou e que não sou, é chegado o momento de dar o seu a seu dono e explicar que o mérito é da rua. É a rua das coisas bonitas. Na maior parte das ruas do género do Porto passam-se coisas estranhas, nesta passam-se coisas bonitas.
Domingo passei a tarde no Palácio do Freixo. Havia uma exposição de Camélias que eu queria muito ver e, por gosto ou por persistência, consegui que fossemos. Fomos, então. A exposição deixou muito a desejar, a organização/CMP e a educação/civilidade das pessoas também, porém não me arrependi nada de ter ido porque o dia estava maravilhoso, a vista fantástica e a companhia do melhor! Já no regresso, ao descer a rua que dá acesso à nossa, deparámo-nos com uma situação sui generis: no passeio oposto ao nosso, duas meninas, de treze ou catorze anos -nem sei bem, desciam algo apressadas. Por momentos ainda pensei em intervir porque aparentemente o semblante fechado e a anormal rapidez de ambas se devia ao rapaz que descia ao lado delas, de bicicleta, rua abaixo. (Eu e a minha maternidade universal, leia-se: constante desconfiança! Brrrrr!!!!)
"E um beijinho, não?"
Gostava da do lado de dentro do passeio. Pediu-lhe o número de telemóvel, que a amiga, do lado de fora, deu. Pediu-lhe um beijo. Não obteve a resposta que queria, mas os (sor) risos bastavam por hora. "Talvez para a próxima." - disse-nos, com um olhar indeciso entre o maroto e o sonhador e um sorriso do tamanho do universo.

2 comentários:

rui disse...

Olá Joaninha

Isto está lindo!
Com aquele toque especial, de distribuir as palavras ao sabor dos pensamentos.
Há aí um engano, quanto a essa designação de fãns, eu também estou na luta pelo primeiro lugar!

Beijinho

Joana disse...

Rui,


Obrigada.
Saiba que é uma HONRA tê-lo como fã.

Jinhos.