Morando no Porto, vou a Braga várias vezes por semana.
Trabalho. Orientador: mais trabalho. Trabalho. Trabalho até mais não. Só trabalho. Trabalho. Aliás, só muito recentemente é que me apercebi de que talvez algum do ex-ciúme tivesse alguma, ainda agora pouca, pouquíssima, razão de ser... porque o Orientador, que eu venero, põe-me a trabalhar, pelo menos uma vez por semana - aquela em que nos encontramos, doze horas. Em média. Crónicas de um PhD...
Mas voltando ao "só muito recentemente", só muito recentemente porque de cada vez que vou a Braga t-r-a-b-a-l-h-a-r, quero ir visitar a minha tia e, por força das circunstâncias, não posso - tendo que me deslocar lá num dia em que não vá a Faculdade. Obviamente.
Já falei cá da minha tia, é religiosa, daquele religioso que se escreve com o "i" maiúsculo anteposto a um nome - que nem é o dela de baptismo... - é a minha tia favorita, tem Alzheimer e está no Sameiro em Braga, um exílio muito duro para todos, muito doloroso e muito forçado para ela, e, quanto a mim, absolutamente nefasto para a pouca sanidade mental que lhe resta. Mas isso são outras histórias...
Dizem que Braga é uma das cidades mais jovens da Europa, será certamente, em especial se se apanhar um dos autocarros que vão para a Universidade do Minho. Porque para os lados do Sameiro a juventude que vai no autocarro, mesmo nos bancos de trás, tem toda para cima de setenta anos.
Um grupo de quatro senhores chamou a minha atenção. De bonés de fazenda todos, bem vestidos - ou pelo menos convenientemente agasalhados, com os casacos de fazenda que oscilvam entre o cinzento e o castanho -, dentes moribundos, dentes que faltam, rugas que se impõem - e sobrepõem, olhos cansados, olhos vivos, alianças, às vezes aos pares, e uma conversa refrescantemente animada. Estavam sentados no lado oposto ao meu e falavam sobre um assunto que aos meus vinte cinco anos interessa. E muito. O dinheiro.
Porque "... No outro dia vi eu, dois aqui, olhe neste banco, sentados assim na pontinha, para deixar o meio do banco a fazer de mesa. Para jogarem às cartas, pois claro! No autocarro!" Depois outro: E, senhor Manuel, e aquele... não conhece aquele senhor que está sempre ali nos bancos da Avenida a jogar às cartas? Riquíssimo, o homem! Só quintas!!! Quem me dera a mim!" Foi aqui. Aqui tive que olhar para o homem, o mais discretamente possível - o que me é impossível na realidade, quem me conhece já sabe: fingir, mentir, inventar desculpas e olhar discretamente... - porque alguém na idade da reforma com ambição é algo, no mínimo, digno de atenção. Logo vieram os outros: "Oh! E você que fazia com o dinheiro?" "Ter dinheiro para quê?" Ele: "Olhe, comprava um carro e ia aqui e ia ali, passeava!" Exactamente! - pensei. Mas não disse, sorri-lhe, até porque já estava a olhar para ele há algum tempo. Tive que lhe sorrir. Mesmo. Num assentimento mais ou menos disfarçado a que ele foi indiferente. Importante, importante era que os outros lhe percebessem a perspectiva. Importante, importante, era que os outros, coetêneos, o compreendessem no seu admirável pragmatismo. Importante, importante era abraçarem os outros a vitalidade, a confiança neles mesmos e a certeza de um futuro melhor, sem idade, ser possível e próximo. Porém, voltando à carga, não se cansam os outros: "Em família pobre, quando se morre, há pouco, não há zangas. Veja os ricos, morrem, é tudo à bulha. Porquê? Por causa do dinheiro." E mais: "Olhe aqueles que ganham os milhões, ganham isso, perdem o sono, olhe perdem tudo o resto! Não dormem, desconfiam de si e de mim, de todos, até do escriturário que de um momento para o outro é capaz de lhes levar tudo." E ainda: " Senhor João, o melhor é ter o contadinho para o dia-a-dia e saúde todos os dias".
"O contadinho para o dia-a-dia." Tão português! (Tão triste! Tão pequeno! Tão desconsolado! Tão abandonado! Tão oco! Tão velho!)
O homem também deve ter pensado isto, li-lhe no sorriso e no gesto de ombros, mais ou menos desconsolado, que fez para sacudir a incompreensão dos pares.
Como eu o entendo! - queria dizer-lhe. Mas eu tenho menos cinquenta e cinco anos que ele: quero dar a volta ao mundo, acho que o Amor é real, acontece mesmo e é para sempre, vejo-me mãe, gosto de sol e de gelados, de livros, de música e de flores... Não era a minha anuência ou a minha compreensão que ele procurava.
10 comentários:
Bem observado e igualmente descrito.
O gosto pela vida não tem a ver com a idade mas com a arte de a viver.
Beijinhos
JOANA: tão cansada! E eu aqui à sua espera ! Passou o Fevereiro, as datas a seguir ao meio do mês, e eu sempre a espreitar os e-mails, a ver qual me vinha anunciar a sua visita...Tenho visto que passa pelo SINESTESIAS,e só posso agradecer-lhe a sua atenção e compreensão mesmo do que às vezes só está sugerido.Claro que não posso ajudar em nada os seus trabalhos,mas posso assegurar-lhe que sei que eles lhe estarão valendo a pena...Muito cabotina,vou dizer : porque " a alma não é pequena "...Bjs.
Olá Joaninha
És genial, nos pormenores que arrancaste à conversa deste grupo de viajantes e, como os explanas aqui.
Nestas idades, ainda existem mentalidades à procura do novo, nem toda a gente se resigna a viver a vida à espera do último dia.
Beijinhos
Olá Joaninha
Passei para ver se está tudo bem e deixar um abraço.
Beijinhos
Erecteu,
Sempre certo, sempre lapidar. É um prazer lê-lo por cá também.
Maria de Lourdes,
Está coberta de razão: estou a falhar consigo, mas hei-de reparar essa falta - não sei bem quando, mas...
Rui,
Geniais (e doces) são os seus comentários... SEMPRE!!!
Jinhos a todos.
Como dizia Maggy the cat em Cat in a Hot Tin Roof: "You can be young without money, but you cannot be old without it". Ou algo parecido...
Bjicos
ora bem como moro a 25km d braga, não posso falar da pequenez dos outros velhotes....
mas axo q ter vista larga e n se preocupar co m o futuro, nessa idade so faz bem, que mais tem, (ia ali e acolá e passeava", até eu...
dem descrito...
bjao
Demorei para escrever um comentário porque... não sabia muito bem o que havia de dizer! Nunca pensei muito em como é que vou pensar quando tiver 70 anos... Mas penso muito nos meus avós, bisavós, e um pouco nos meus trisavós(agora já só tenho um avô vivo), e no quanto gosto deles e no quanto apreciava ouvir as histórias deles.
Beijinhos grandes
Olá joaninha
beijinhos
Talvez não procurasse a tua anuência por não a esperar em alguêm 55 anos mais jovem.
Felizmente que, para além de muitos "velhos do restelo" de todas as idades, também temos gente "jovem" de todas as idades.
Um beijo enorme para ti e o meu muito obrigado pelo apoio que me tens dado.
Enviar um comentário