quarta-feira, outubro 10, 2007

Mundos e cheiros


Regressei hoje. De casa, da ilha, para o trabalho, para Braga, para a Universidade, para as correrias, o metro, o comboio, para cá. Para o corre-corre de sempre com retorno certo no fim do dia à cidade onde teimo em deixar o coração.

De casa trago uma data de recordações - acontece invariavelmente assim quando venho da ilha: lá, a cada esquina dobrada surge um amigo, um conhecido, uma colega de escola, os amigos das irmãs, os amigos recentes mas grandes, a educadora favorita do infantário, o filho da professora-inspiração do sétimo ano, enfim um sem número de pessoas que formam a manta de retalhos a que chamamos vida, por vezes demasiado curta para nos cobrirmos, por vezes demasiado pesada para levarmos connosco para todo o lado, todavia sempre única, sempre nossa, para o bem e para o mal.

Nestas minhas escapadelas até à ilha, quando a saúde da minha mãe não nos prega uma partida, costumamos, eu e ela, fazer uns trabalhinhos de mãos na varanda ao fim da tarde, porque o tempo convida, a vista da nossa varanda, o pôr-do-sol e o mar também. Trabalhos que eu acho lindíssimos e que ela repudia consideravelmente porque teve que fazer muitos, a contra-gosto, na juventude. Mas, porque eu gosto, me relaxa e me distrai, ela lá vai me acompanhando. Desta vez não foi excepção e acabadas as linhas, e porque ela estava a trabalhar, indicou-me a loja mais indicada para comprar as ditas, fez-me decorar o número e a marca, porque um bordado-madeira só é digno desse nome se uma data de coisas estiver nos conformes, entre as quais obviamente as linhas. facilmente encontrei a tal loja. Uma lojinha situada numa célebre rua do centro do Funchal, comércio tradicional no seu melhor, entro, acabo rapidamente a conversa que estava a ter ao telemóvel, dirijo-me ao balcão e dou de caras com a Isabel.

Muita, boa e má, Isabel há na minha vida, mas de todas esta foi a primeira que conheci, minha coleguinha do quinto ano, nunca mais me esqueci dela, até porque por uma palermice, nem sei qual agora, incompatibilizou-se comigo a meados daquele ano escolar. Resultado: sempre que nos cruzávamos ela emitia um som muito característico, igualzinho ao de um spray em utilização. A claríssima e pérfida alusão não colhia - se há coisa que me caracteriza é a ausência de maus odores corporais, sempre foi assim, toda a gente se admira, ninguém sabe explicar, mas enfim... coisas estranhas - Por isso, pela injustiça, pela ignomínia, magoou-me profundamente. E nunca chegámos a resolver o nosso diferendo - esse ano na escola pública justifcava-se pela exiguidade de vagas no Colégio onde haveria de ingressar no sexto ano e permaneceria.

Agora, ali, frente a ela, morena, pequenina, igualzinha, tudo isto me veio ao pensamento, num ápice, milhões de imagens a desfilar; o mesmo se passaria com ela, tive quase a certeza ao sorrir-lhe, não me retribui, encaracola-se, olha para baixo, ocupa-se com uma minudência qualquer; respeito o constrangimento, entendo-o, espero por uma outra funcionária, faço o pedido, obtenho o que quero, pago, saio. Não olho para trás, não gosto disso. Tudo tem um timing, o que é importante tem um timing e é dito, preferencialmente, olhos nos olhos, em alguns casos, mão na mão. Este não era um desses casos, em definitivo.

No entanto, fiquei triste. Foi muito triste toda a situação actual, muito mais, mil vezes mais que o nosso passado. Ainda agora revejo aquele encaracolar-se, aquele meter-se no seu mundo pequenino por causa de um meu, maior apenas na cabeça dela, vejo aquela fronteira a traçar-se, quase palpável entre nós, vejo, vezes sem conta. Como se habitássemos mundos diferentes, para a eternidade irreconciliáveis. Não gosto disso. É como a história da esperteza saloia que erradica as diferenças entre brancos e pretos numa sala de aula para a substituir pelos meninos mais azuis e os menos azuis. O azul é uma cor linda, mas somos todos feitos do mesmo, devíamos ser todos um - digo eu.

Esta noite, sensivelmente a meio do trajecto entre Braga e Porto, entra no comboio um grupo de romenos. Os homens juntam-se a outros dois que já estavam sentados há duas ou três paragens nas quatro cadeiras opostas às em que me encontrava eu e a minha mala, que também necessita de assento, mercê do peso das fotocópias. As mulheres, querendo também participar da conversa e da risota, normal entre conterrâneos em terra alheia, que haveria de tomar lugar ali, sentam-se comigo. Não tenho nada contra os romenos, tenho muito carinho por todos os emigrantes e qualquer pessoa que não esteja no seu país pelas mais variadas razões porque não há lugar como a nossa casa, ou pelo menos aquele cantinho onde nos ficou o coração, mas uma coisa é certa: aquelas pessoas tresandavam a lixo. Lixo, não suor, não falta de banho, lixo. Não sei se era lixo o que transportavam nos sacos imensos que traziam, a custo, às costas, mas era esse o odor que exalavam e que se pespegou à nossa carruagem até ao fim da viagem. Sei que podia ter mudado de sítio, devia - dizem-me. De facto teria evitado um mal-estar, um constrangimento, um hercúleo trabalho de auto-controlo para não vomitar, nem fazer cara feia, três coisas e meia que não me foram muito leves.

No entanto, gosto de entender, quis tentar perceber o porquê daquilo. Razões culturais, problemas sociais, motivações pessoais... (No fim, não consegui perceber.) Quatro homens que falam muito e se riem ainda mais, um que vai repetindo o nome de cada apeadeiro no seu melhor português, uma mulher sem rosto, só com costas, ao meu lado; um olhar quase infantil, frontal mas triste, pintado por um indisfarçável lampejo de cobiça em relação ao meu Swatch Scuba, efectivamente já velhote, que eu podia de boa vontade dar, tenho outro, mais bonito até, cor de rosa, mas até dava os dois, conheço-me: daqui a nada compro outro, posso dar, ao contrário da menina, que tem no pulso um branquinho, bonito até, cor e bracelete da moda, mas parado.

Não percebi muito, mas tenho para mim que o mundo que eu utopicamente pretendo único para todos não existe - a não ser para mim -, porque as pessoas preferem criar mundos próprios, do tipo bola de sabão gigante acabadinha de soprar em redor, que nada têm a ver com os mundos interiores que habitam toda a alma humana, mas que dão jeito quando o medo seca a saliva e as palavras e que, ocasionalmente, impõem, tipo bolha que se rebenta para os devidos efeitos, aos outros quando se crêem destituídos de tudo.

4 comentários:

Anónimo disse...

n ha nada como um kreme d cacau pr perto!:P bj nininha

Rui Caetano disse...

A imagem da bolinha de sabão é muito bonita. Uma boa viagem e um bom ano de estudos.

rui disse...

Olá Joaninha

Retratos de instantes da vida onde convivem os comportamentos humanos, a realidade e a magia da palavra.

Beijinhos

Anónimo disse...

De volta ao continente... saboreia o Outono!
Beijo!