quarta-feira, outubro 24, 2007

Todos Iguais, quando?


Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.
Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.
Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.
Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.
Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:
nem sinais de negro
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio

António Gedeão

Lemos vezes sem conta o poema. Inicialmente os miúdos não percebem, os miúdos. A miúdas emocionam-se logo, à primeira leitura, emocionam-se, relêem, trelêem. Querem explicar aos colegas. Querem falar. Têm muito para dizer. Coisas de mulher, acho eu. Volta-se a ler, explica-se, as meninas ajudam, toda a gente se rende. No fim. A questão é importante, não passa despercebida, nem mesmo num meio tão pouco cosmopolita como é o do interior norte. Rendem-se sempre. Nunca o contrário me aconteceu numa turma. Rendem-se às palavras. Por atitudes. Não passam a ver diferente, mas vêem mais além. É o bom de se ler este poema na altura certa, no sétimo ano, ou no oitavo – já nem sei bem... Não sei como fazem em casa, com os pais, os primos, os amigos mais velhos, se calhar não fazem nada, manda a lei do mais forte, mas se se lembrarem do poema quando forem eles os mais fortes cumpri a minha função. Social.

Às vezes penso que já fui alvo de racismo: no meu semestre em Paris quando milhentos alguéns se surpreendiam porque o nível do meu francês era excelente e isso não era “português”, ou quando um outro alguém execrável, perdão uma renomadíssima, professora de Latim da Sorbonne se recusou a aceitar que eu tivesse telemóvel e vivesse em Montparnasse porque isso não era de todo “português” e o nome não engana. Ou quando estive em Londres e a companhia aérea achou de arrumar os únicos três portugueses do voo no fim do avião, uma filinha só para nós, bem juntinhos, longe dos brits. Se calhar foi só discriminação – não o será toda a forma de racismo? Se calhar estou a fazer um filme – faço muitos, é do que faço mais e melhor. Mas no meu íntimo jaz aquele incómodo perene do “E se...” que é bem capaz de ter sido.

Tenho uma simpatia especial pela diáspora. Portuguesa, claro, mas por toda e qualquer uma. Já vivi em muitos sítios. Já estive muito tempo fora de casa. Já passei por muitas situações e já vi muita coisa. Não acredito que alguém saia da sua casa, da sua cidade, do seu país porque quer. Não acredito mesmo. Não há lugar como a nossa casa. Esteja ela na nossa cidade natal ou noutro qualquer recanto do país ou do mundo. Não acredito que uma pessoa que saia da sua casa porque quer. Sai porque precisa. Porque a sua casa não lhe dá as condições que merece, as possibilidades a que aspira, o direito ao sonho. Condições, direitos e possibilidades que ninguém, em nenhum lugar do mundo, tem o poder, não falemos sequer em direito, de dissipar. E não se trata de demagogia, o El-Dorado existe mesmo – pode não ser (apenas) os EUA, curiosamente nos dois semestres que lá passei, no estado mais conservador da nação, fui optimamente acolhida –, mas lá que existe, existe – acredito mesmo nisto.

Somos todos feitos do mesmo. Um homem, a Humanidade. O bem de um é o bem de todos, o mal de um, o de todos.

Não será possível ler ao rufia que agrediu gratuitamente uma miúda, adolescente, no metro de Barcelona o poema de António Gedeão, já não tem treze anos, é porventura tarde; de resto devem libertá-lo hoje, daqui a umas horas, antes ou depois disso ponham-no, ao menos, a ver o América Proibida, por favor. A bem da Humanidade.

http://pt.wikipedia.org/wiki/American_History_X

2 comentários:

Rui Caetano disse...

Aceitar a diferença não é uma questão de inteligência, aceitar o outro tal qual ele é, é uma atitude de simples humano. Somos iguais no que somos e diferentees no que devemos ser, mas o respeito pela dignidade humana deve ser igual para todos.

addiragram disse...

Só se poderá entender e...tentar transformar este tipo de funcionamento, quando se perceber uma das formas mais primitivas de defesa do psiquismo humano: para encobrirmos
de nós mesmos as nossas falhas colocamo-nas no parceiro...e o que melhor serve é aquele que de nós difere na superfície, que representa
aquelas partes nossas mais odiadas...o nosso lado "negro". Bom post! Beijinhos.