O filme tardava em começar, eu sem paciência para a enésima novela, eu sem sono, eu cheia de trabalhos e encontros e horários para cumprir hoje, eu fui dormir. Fui tentar dormir. Rebolei mais de uma hora para um lado, estava calor, e para o outro, muito calor, na cama, no quarto, até por fim me ter decidido a ir para a sala ver o filme, isto uma boa meia hora depois do início, logo do início, aquela parte que eu gosto tanto...
E vi, e aborreci-me nos intervalos, e maldisse a hora tardia que não me permitia ouvir aquela banda sonora, tão sulista, tão minha na minha cadeira de baloiço under the porch a enganar com o icetea os 40 graus de há coisa de dois verões em Houston, e comprovei que de facto sou maluca, sei as falas e as inflexões e os tiques todos de cor e continuo a conservar o meu sotaque sulista, ainda bem, e fiquei a pensar madrugada fora, nas pouco mais de três horas de que dispunha para dormir, nos meus avós.
Os meus avós têm a história de amor mais bonita da família. Suponho que os meus filhos vão pensar o mesmo dos meus pais. Os netos aparecem na vida dos avós, especialmente se mais tardiamente, quando tudo na vida deles já está construído e perfeito e lhes sobra o tempo para os afectos.
Há muitas zonas obscuras na história dos meus avós, factos que ninguém aprofunda, factos que desconheço porque ninguém aprofunda. E eu não percebo porquê. Amo os meus avós como um neto ama um avô: incondicionalmente, de um incondicionalmente mais apaixonado e incondicional que o amor de um filho, que os filhos retiram o apaixonado ao incondicionalmente com que amam os pais. É a lei da vida. Sei.
Os meus avós tinham o mesmo nome. O da minha avó era o feminino do do meu avô, nome de santo, medieval, doutor da Igreja. Ambos os nomes, próprios, tinham forma de diminutivo – o que torna ainda mais admirável este pequeno milagre da coincidência. Na Aparição a determinada altura fala-se de como as pessoas com o mesmo nome se dão, naturalmente, bem – os meus avós são prova disso. Pelo nome, creio, muito mais que pelos signos, em que faço pouca fé, mas enfim, os meus irmãos músicos dizem do alto da sua curiosidade, mais que sabedoria, astrológica que avô Peixes e avó Touro – faz anos um dia antes de mim – são virtualmente perfeitos. Não sei o que é ser perfeito. Para mim perfeito não é ser – a perfeição não existe –, perfeito é estar, e acabado. Os meus avós não eram perfeitos, mas complementavam-se muito bem porque o idealismo do meu avô soube viver – também e incrivelmente – do pragmatismo da minha avó (e vice-versa, suponho). Lembro-me muitas vezes de um episódio que se passou ainda no tempo da minha escola primária, tempo das notas de escudo. Estávamos todos de férias, tornou-se, por alguma razão, necessário um martelo, o meu avô correu a ir comprá-lo, mas acabou por regressar sem ele, por lhe terem pedido dinheiro a mais – contou depois. “Quatrocentos escudos, quatro notas de cem, e temos tantos em casa, na nossa casa, não comprei!” Ao que a minha avó respondeu: “Então agora pegue nas quatro notas e vá fixar os pregos à parede!”
A minha avó tratava sempre o meu avô por “vocemecê” que, dependendo dos contextos, omitia muitas vezes – nessas alturas, implicava-o na pessoa do verbo. Ele tratava-a igualmente. Era um “vocemecê”, “oculto mas presente”, e muito, muito próximo. Um “vocemecê” que me chegou pelo sangue, oculto, mas sempre no verbo, mas sempre próximo, tão próximo quanto se pode estar, e que quase toda a gente confunde com tiques e manias que eu não tenho, ninguém percebe. A minha avó era mais velha que o meu avô dois anos e “entraram para casar”, na Madeira diz-se assim, nas vésperas de o meu avô ir para a tropa, pelo que o noivado não pode ser oficializado, acho que foi essa a razão, se não foi, foram certamente razões de força maior. Em termos práticos o meu avô ia a casa da minha avó aos Domingos e convivia com ela e com a família e tudo, a boa-nova do compromisso é que não vinha cá para fora.
Os tempos de tropa eram árduos mas não se estendiam pela eternidade, pelo que eventualmente o meu avô regressou, formalizou o noivado, arranjou casa e até, simultaneamente, uma série desentendimentos com a família da noiva, não sei por que razão, de novo. O casamento realizou-se na mesma, na data prevista até, mas viu reduzida ao mínimo imaginável a presença de familiares da noiva, que não conseguiu tocar sequer na canja e chorou todo o dia.
E é aqui que me foge o pensamento e não resisto a admirá-la na sua sempre forte, sempre vanguardista, personalidade. A minha avó, bem a meio dos anos trinta, para escândalo de toda a família, vizinhos, amigos e afins, até da minha mãe que fala sempre disto incrivelmente constrangida, casou-se de verde. De verde. Vestido verde, um colar de meio metro de pérolas bege, um chapéu bege com duas rosas brancas e duas vermelhas.
Imagino-a. Vejo-a assim, dentro, muito dentro, muitas vezes. Às vezes por nenhuma razão em especial. Gosto de a imaginar assim. E não lhe consigo descobrir a amargura negra que levaria também vestida nesse dia, porque os meus olhos transbordam da veneração derretida da neta pela coragem, pelo inusitado, pela beleza, pela candura e pela força daquela noiva.
Penso muitas vezes nas horas em que, vida fora, foi posta à prova, nas suas qualidades e nos seus defeitos, mas sobretudo na abnegação e na constância do seu amor. E nunca, que eu saiba, se questionou ou questionou aquela opção dorida de outrora. Penso na emigração do meu avô para o Curaçau, na morte prematura de um filho, no regresso do meu avô doente, na ida da filha mais velha para o convento, na morte súbita de uma outra filha, na doença e na cegueira do meu avô. Penso muito no meu avô e na minha avó, na vida que construíram, no exemplo que nos deixaram. Vejo-os muitas vezes quando vou à Madeira, vejo-os nos seus lugares vazios à mesa, na da cozinha, em que almoçávamos os três milho e bacalhau, com pimenta a rodos o meu e o do meu avô, no meu regresso da escola.
Depois, vou buscar os nossos álbuns de fotografias, que estar em casa dos pais é fazer isso – também –, e olho o meu avô grande, possante, quase truculento, mas de sorriso desarmante, sempre, e à frente dele, pequenina, magrinha, quase curvada, quase encaixada, a minha avó, muito composta, muito discreta, sorriso tímido, desenhado, a adivinhar, apenas, olho-os nas últimas fotografias que temos deles. E, não importa como nem a que preço, penso na admirável complementaridade que dois seres humanos conseguem efectivamente criar e viver.