segunda-feira, junho 09, 2008

Dentro do nome

A minha mãe diz que é inteligência a mais. O meu pai diz que “tudo o que é demais não presta”, assim mesmo, exactamente assim. A minha irmã T. diz que é a minha tendência para a paranóia, uma palermice, excesso de trabalho mental e falta de outra ocupação. Os outros dois dizem nada, mas torcem o nariz ou riem-se, ou as duas coisas, não acham definitivamente normal. Eu, eu acho que tudo se resume ao meu gosto de sempre pelas palavras.

Ainda há pouco. Aconteceu. Não estava a pensar em nada. Ou melhor, estava: estava a pensar no que havia de almoçar, dadas as contingências dos últimos dias. Suponho que ele também corresse para o almoço. Íamos um em direcção ao outro, ao estacarmos, se calhar um pouquinho antes, tira os óculos de sol e, com o sorriso do costume, que eu já tinha descoberto há uns bons metros, beijinho do costume, “Então menina?” do costume, e eu “Olá Ant... e depois aconteceu. Ant...-ó-n-i-o e estas quatro últimas letrinhas já não eram dele, mas de um outro António. Meu. E eu não queria! Eu queria ter dito “Olá António!”-aquele-António-ali-à-minha-frente, o António do meu primeiro ano do curso, o António que mudou de curso e de vida, o António da M.J., o António dos dois pequeninos, não o outro, nenhum outro. E, por isso, fiquei muito embaraçada, muito aflita e só um pouco menos constrangida quando o “ser hora de almoço” para ambos me aconselhou a, com naturalidade e simpatia, abreviar a conversa. Apartámo-nos, eu de coração apertado, o António, magnânimo, no sorriso de adeus, no à-vontade, em tudo, como sempre.

Será de que cada vez que alguém que me conhece pronuncia o meu nome, dirigindo-se a outrém, se lembra de mim?

Como eu há pouco com o António. Será? Eu a partir de meio da palavrinha que é um nome que é meu, também, por opção ponderada dos meus pais. Será? Eu, a minha cara no a, o meu sorriso no n, a minha covinha na bochecha no último a. Será?

Será de que cada vez que alguém que me conhece pronuncia o meu nome, dirigindo-se a outrém, se lembra de mim?

Quero deixar a Linguística fora disto. A Linguística recorreria à homonímia para resolver a questão da multireferencialidade. E a homonímia é um cesto muito grande por de onde, líquido, o meu nome depressa escorreria para o nada que é a terra batida da multiferencialidade. Não quero falar de multireferencialidade. Um nome, ziliões de pessoas. (Não há nome mais multireferencial que Joana!) Assim de repente conheço mais de uma dezena. Costumo dizer “Joanas há muitas de todos os tamanhos, feitios e cores, se se procurar bem até às pintinhas amarelas...” E as pessoas sorriem, mas eu... nem sempre.

Será de que cada vez que alguém que me conhece pronuncia o meu nome, dirigindo-se a outrém, se lembra de mim?

Não quero. Não quero nunca o meu nome rasgado a meio. Não quero o meu nome ensombrando gestos, assombrando vidas, desenhando distâncias. Não quero o meu nome na cabeça e na boca de uma cara diante outra cara, outro sorriso, outra covinha de bochecha. Não quero o meu nome acelerando gestos, apressando vidas, comprando distâncias. Não quero. Tremer. Temer. Palavras que digo e ouço. Não quero. Pesar. Medir. Ponderar. As letras que compõem o meu nome.

5 comentários:

Ouriço-Cacheiro disse...

O teu nome és tu. quem te ama sabe pronunciá-lo, soletrá-lo na mais absoluta perfeição. Todos os outros vão perder-te no meio de todas as Joanas deste mundo...

K. disse...

O nosso nome de certa forma é só nosso. O que significa para nós, a maneira como o dizemos quando nos apresentamos a alguém... e como sai da boca das outras pessoas, em especial das que nos querem. Mas os nomes são também palavras, palavras especiais, e por vezes é impossível não recordar alguém que o nome evoca, por vezes quando nos dirigimos a um desconhecido, outras vezes quando é alguém que também queremos muito. E então é como uma dupla satisfação, poder dizer o nome de alguém especial e, ao mesmo tempo, evocar a memória de outra pessoa única para nós. Se por vezes pode resultar doloroso, gosto de me deixar surpreender quando acontece. As palavras são, sim, a voz do coração. E os nomes são a música da s amizades que fomos construindo ao longo da vida. Há nomes que dá vontade de cantá-los.

rui disse...

Olá Joaninha

Mais um fantástico texto!
Pois é, Joaninhas existem muitas, e até às pintinhas, mas uma Joaninha que escreva assim, com esta força e este discernimento, e ainda, que tenha uma covinha na bochecha quando sorri, penso que não deve existir outra.
É inevitável que alguém ao pronunciar um nome o associe a um sorriso que a cativou, mesmo que, este acto nos deixe feridas ou que nos deixe a coxear por algum tempo.

Que tenhas um bom Domingo
Beijinhos

Oásis disse...

Desde que te conheci que, quando conheço uma Joana, me lembro de ti. Mas isso não dura mais do que dois segundos porque nenhuma é igual a ti! O nome fica melhor a ti, é teu!

Mauro Jorge disse...

Olá JJ,
Belíssimo blog.
Tenho lido desde São Paulo, Brasil, o Substante, e o blog de vossa amiga do Cicio de Salomé e fico aturdido com uma percepção abismal que vocês tem do mundo que lhes cerca.

- Gostaria muito de lhes enviar meu livro de poemas:
contato: homemdagravataflorida@gmail.com -


Lembra-me um amigo meu, que quando lhe lia um poema, destacava uma palavra e dizia gosto como dizes Isto, quando eu lhe recitava um poema, ele se apegava quase a uma "ontologia sonora" daquela palavra, totalmente destacada de seu contexto, pura entonação, tom que invoca a essência e um entendimento de mundo apenas naquela palavra, um microcosmo que corresponde ao macrocosmo de um verso, um poema, uma filosofia, um modo de vida.
Colo o poema abaixo, um poema muito belo de uma poeta brasileira chamada Ana Cristina César.
A frase em que estava a palavra que meu amigo gostava de me ouvir recitar é:

"Hoje comeremos carne"
a palavra em questão era: carne

Pensando sobre o assunto percebi que o que ele gostava era a "música" ao mesmo tempo trágica (como Cristo ou Eurípides) e irmanada a tudo.
E eu me refiria não só à carne (alimento) mas à nossa própria carne (pele, nervos, ossos, vísceras).
Da forma redentora e ao mesmo tempo sacrificial como se vive o amor.

o poema em questão era este:

"Pitonisa é aquela que um dia queimou e cujo
fogo desce do alto em bênção de ventania sobre
nós em bênção de vendaval. Outra vez a lotação jamais
estará lotada para ti, digo, vem, possível,
vem imediatamente, possível
Hoje comeremos carne.
Vem, imediatamente, possível, e nos leva.
Durante estes últimos meses amor foi este fogo.
Contagem regressiva: a zerar.
Hoje é zero,
e daqui (Cristo em cruz de costas)
começo a amar."

um abraço
em grande admiração,
Mauro

Aqui:
http://elizabethmydear.wordpress.com/

estou começando um blog, só tem um post, estou tentando encontrar o vento certo para que que ele me carregue