sábado, junho 07, 2008

Coisas estranhas

Uma torre de um solar de Braga selada a plástico, negro. Uma ogiva que eu sempre vi janela e é porta. A minha boca toda pisada. E a música que me atrasa a saída do café.

Todos os dias de manhã enquanto espero pelas nove ou nove e meia, para entrar na Biblioteca, o meu olhar perde-se, muito direito, muito fixo, em frente. Na torre do solar em frente. É a torre do solar, ameias da torre a fazerem pendant com as ameias da muralha em redor, parece uma torre de castelo, muito austera, muito misteriosa, muito medieval. Já passei naquele solar um fim de semana muito bonito. Num retiro de silêncio no quarto ou quinto ano do curso. Mas não me lembro daquela janela, e da torre, apenas vagamente. Na realidade, o que fixei na memória da arquitectura do solar foi uns bancos em pedra, já nem lembro a designação correcta, pequeninos, para uma pessoa só, um em frente ao outro, com uma janela de permeio, “... que eram usados pelos enamorados da Idade Média.” – explicava a madre superiora no nosso périplo pelas imediações, discurso cuidadosamente estudado. Retive aquela observação, junto com a imagem deles que ainda conservo dentro, por meio e por causa de um sentimento... pouco beatífico. Achei um desperdício, seis bancos tão bonitos, frios, desconfortáveis, mas bonitos, três janelas por onde entrava uma cidade e uma luz ainda mais bonita, ali, inutilizados, inúteis, resguardados do tempo e do mundo, tristes, muito sós, um pouco como algumas das freirinhas.

Mas voltando à janela. Todos os dias olho aquela janela selada de plástico preto. E todos os dias aquilo me incomoda. Não apenas pela evidente falta de meios que as irmãs têm para manter aquelas instalações, mas pela simbologia que me grita aquele negro de morte, aquele plástico de saco de lixo, toda a luz que aquele interior não vê, todo o calor que não sente. E só paro quando o sino bate a hora, em dias bons; em dias maus, quando os olhares desconfiados, algo temerosos, das outras pessoas me trazem de novo à rotina do quotidiano, é hora de entrar.

Desconfio que é por causa do calor, que finalmente chegou, e que não se sabe se fica por muito tempo, aposto que é para aproveitar o sol, que a janela está aberta, hoje. E, nem queria acreditar, não é janela, é porta. Sobressaltou-me, duplamente, a surpresa. É uma porta, em forma de ogiva, com armação, da parte de dentro, em madeira, eximiamente forrada a plástico preto. Dá acesso à torre por meio de meia dúzia de degraus da mesma pedra, da cor dos séculos, forte, medieval, de todo o solar. E hoje está aberta. E nem sei bem o que pensar disso. Acho que preciso de mais tempo com ela, aberta, nos olhos e dentro, para lhe perceber a nova simbologia.

Ando com as simbologias na ponta da língua e dos dedos. Ando com as simbologias a pulsar-me na cabeça e no coração. Ando a trabalhar de menos e a pensar de mais, deu-me para a metafísica, pronto. Isto porque tive uma série de problemas de saúde minor que pelo timing e incrível sucessividade se tornaram major, pelo menos para mim e para a minha natural, i.e. sempre dramática, abordagem da doença, qualquer que ela seja, da dor de cabeça mais banal à mais grave pneumonia. Pelo meio, ainda tive problemas com o dente do siso – ando a perdê-lo, ao siso, de facto, não sabia é que ia lá para perder parte desse dente e outro, inteirinho! – o que me obrigou, mesmo, que eu tenho horror a batas brancas, a ir ao dentista, muito profissional, muito competente, muito tudo, excelente, velha guarda, como eu gosto! - e sair de lá com um antibiótico – primeira toma, dose de cavalo – e um analgésico – por si só cavalar – e a boca toda pisada. Como é que eu explico que está tão pisada que não consigo rir, e às vezes apetece-me muito, porque repuxaria não sei o quê que dói? Como posso explicar que não estou a articular certas palavras como deve ser, porque, pelas mesmas razões, não me posso dar ao luxo de a abrir muito? Como explico que ontem queria cumprimentar uma pessoa, piscando o olho, e a réplica que obtive foi tão pouco usual, tão doce, tão generosa, quase altruísta, que, sei, a coisa não saiu com o desprendimento maquinal do costume. E é assim que de há dois dias para cá passo o dia a líquidos, o que é óptimo para a linha, mas não tanto para o meu epicurismo (na Feira do Livro do Porto caiu-me ao colo um horóscopo chinês que, entre muita coisa peculiar e divertida, me classifica como “epicurista”, eu preferia ser “estóica”, mas se “epicurista” é o que sou, seja!) E é assim que agora só um Compal de Ananás, fresco, me acorda de manhã. Hoje, estava mesmo à beira do fim quando começou a dar Plain White T’s na MTV do café. Hey there Delilah é uma balada adolescente, hiper-americana eu sei, mas gosto, acho curioso que passa sempre, na rádio ou na televisão, quando tenho pensamentos mais negativos do que desejaria e por isso, por tudo o que trouxe dos EUA, e porque, felizmente, ainda não perdi a adolescência, tenho-lhe carinho. Enguli o resto e fiquei a olhar a televisão, com ar de parvinha certamente, durante os mais de três minutos que faltava para o fim. Acabou, levantei-me, agradeci e fui-me embora, levando comigo os olhos da senhora do café. Iguaizinhos aos das pessoas que me acordam, antes dos sinos, da interpretação semiótica do negrume daquela janela-porta do solar. Há muita gente a pensar que eu sou esquisita. Eu própria considero-me muito estranha.

2 comentários:

Oásis disse...

Tenho andado tão ocupada e tu com um dente que, perdido, te faz perder o riso (deviam chamar-lhe dente do riso)... Quando li a tua descrição da dor e do não poder rir nem cumprimentar as pessoas, lembrei-me logo da outra descrição que eu deixei há uns bons meses atrás. Olha, andei a líquidos (alguém me prescreveu smoothies, lembras-te?) e dormi bastante. Não insistas minha linda, descansa porque o dente vai mas o riso volta!

Jinhos gandes

:-)

Joana disse...

Orquídea,

Obrigada. Pelo carinho e pela atenção e muito, muito, muito pelas palavras que me dizem tanto e relembram outro tanto que eu já tinha esquecido.

Jinhos, muitos, para ti também.