segunda-feira, junho 16, 2008

Coisas do meu lado esquerdo

Estava na terceira classe. Os meus avós mandaram-me à mercearia comprar alguma urgência. Não sei se era Verão, mas estava calor e o regresso às aulas, muito muito, próximo. O mais certo era ser Páscoa... A mercearia ficava perto, por-me-ia lá num instante, ainda para mais a descer, as descer é uma alegria! Descia alegre, dava pequenos pulinhos com cada pé, estava contente! Muito contente... até uma pedrinha, minúscula me ter feito derrapar e ir desfazer a alegria no chão. Não me lembro do resto, do que comprei, se porventura o comprei, de como viria na subida de regresso, de como me receberam em casa.

Lembro-me da água oxigenada que, pela mão da minha mãe, me queimava o lado direito da cara toda e da pústula enorme com que regressei às aulas. Lembro-me de contar os dias para me ver livre dela e da minha mãe me pedir paciência e constância na água morna todas as manhãs e no hidratante, bem lá no sítio, "... que não queremos forçar nada, não vais mexer, está bem, até porque estas coisas podem deixar marcas, sabes?..."

Eu obedecia, marcas era coisa que nem me passava pela cabeça ter na cara. E aquilo foi saindo, aos poucos; um dia uma parte, outro dia outra, no dia seguinte outra, naturalmente. Por fim, quando me preparava para ter a minha cara de volta, após tanto tempo de cuidados, trabalhos e esperanças e medos, pústula já bem longe, uma marca vermelha, enooorme, revelou-se, displicente, ocupando-me a bochecha direita e o meu lado esquerdo todo, e eu que tinha cumprido todas as regras!

Mais tempos infindos de cuidados, trabalhos, e cremes (mais cremes)... e a mancha foi, a par e passo, cedendo à minha determinação. Começou por clarear: passou do vermelho ao rosa escuro, do rosa escuro ao rosa, do rosa ao rosa claro e depois... depois, desapareceu!

Preparava-me já para ficar contente – é verdade que o extermínio ainda levou uns bons dois anos, mas o importante era o agora, só o que temos, só o que há, e agora nunca mais tinha sabido dela... Era Domingo à tarde. Fui dar um passeio. Não sei onde, não sei com quem, e diverti-me, diverti-me muito ao sol, sei, sei porque ao chegar a minha mãe recebe-me com um "oh-afinal-não-desapareceu-afinal-volta-com-o-sol." E eu, bochecha vermelha, lado esquerdo negro, uma vez mais, novamente!

Fechei o sol numa caixa até um dia. Fugi-lhe o resto da infância, a adolescência, a juventude quase toda, quase o esqueci, não tive outra hipótese. E ela, a mancha, nunca mais voltou.

Lembro-me disto porque a minha saga ainda continua: tenho a bochecha esquerda inchada e vermelha, muito semelhante à minha direita após essa queda de há quase vinte anos atrás. E, por muito estúpido que pareça, tenho negro o lado esquerdo. Pela recordação de uma mancha que não queria passar, uma mancha que só o tempo e uma vontade pessoal muito grande, maior que ele, apagou.

3 comentários:

Rui Caetano disse...

Uma reflexão que demonstra o estado de espírito.

Rosario Andrade disse...

Querida Joana,
Passo por ca todos os dias. Mas nao deixo comentário... invariavelmente seria: admiro imenso a tua escrita (muitas vezes seria acrescentado "quem me dera ter sido eu a escrever este post..."), e que espero ansiosamente um romance teu... ou o que seja... PARA QUANDO?

BEIJICOS GRANDES!

Joana disse...

Rui,

Sim. De espírito ou de saúde (física e psicológica)... :)

Querida Rosário,

Não te sintas obrigada a deixar a cada visita um comentário, se bem que este...agradeço-to muito!

Ainda bem que o deixaste :D! Preciso às vezes de saber estas coisas, acho admirável que alguém pense "quem me dera ter sido eu a escrever este post..." acerca de um texto meu, porque, além de me insuflar o ego, penso exactamente o mesmo acerca de uma data de gente. :)))))

Romance e literatura em geral tenho em mente sim, mas como objectivo longínquo, e apenas depois da tese, acaso sobreviva. ;)

Jinhos e as melhoras para as duas.