sábado, janeiro 22, 2011

Visão de Clarice Lispector


Imagem daqui

Clarice,
veio de um mistério, partiu para outro.

Ficamos sem saber a essência do mistério.
Ou o mistério não era essencial,
era Clarice viajando nele.

Era Clarice bulindo no fundo mais fundo,
onde a palavra parece encontrar
sua razão de ser, e retratar o homem.

O que Clarice disse, o que Clarice
viveu por nós em forma de história
em forma de sonho de história
em forma de sonho de sonho de história
(no meio havia uma barata
ou um anjo?)
não sabemos repetir nem inventar.
São coisas, são jóias particulares de Clarice
que usamos de empréstimo, ela dona de tudo.

Clarice não foi um lugar-comum,
carteira de identidade, retrato.
De Chirico a pintou? Pois sim.

O mais puro retrato de Clarice
só se pode encontrá-lo atrás da nuvem
que o avião cortou, não se percebe mais.

De Clarice guardamos gestos. Gestos,
tentativas de Clarice sair de Clarice
para ser igual a nós todos
em cortesia, cuidados, providências.
Clarice não saiu, mesmo sorrindo.
Dentro dela
o que havia de salões, escadarias,
tetos fosforescentes, longas estepes,
zimbórios, pontes do Recife em bruma envoltas,
formava um país, o país onde Clarice
vivia, só e ardente, construindo fábulas.

Não podíamos reter Clarice em nosso chão
salpicado de compromissos. Os papéis,
os cumprimentos falavam em agora,
edições, possíveis coquetéis
à beira do abismo.
Levitando acima do abismo Clarice riscava
um sulco rubro e cinza no ar e fascinava.

Fascinava-nos, apenas.
Deixamos para compreendê-la mais tarde.
Mais tarde, um dia... saberemos amar Clarice.


Carlos Drummond de Andrade

5 comentários:

josé luís disse...

é mesmo... li o "why this world", a biografia dela de benjamin moser e continuo a não compreender.

Joana disse...

José Luís,


Comecei ontem à noite a ler a biografia, já sabendo de antemão que. ;)



Jinhos.

Maria Rita disse...

Belíssimo. :)

Beijinhos*

Ouriço-Cacheiro disse...

eu tenho a imodesta sensação de achar que a compreendo bem. Talvez por isso haja dias tão difíceis por aqui e outros tão felizes. Já lia a biografia, para comprovar essa sensação, suponho.
bjs

Joana disse...

Ouriço,

Não é imodéstia. Acho que tem qualquer coisa a ver com sermos mulheres ;), se bem que, para mim, há muito de inefável nela...

(Tem dias difíceis quem vive, realmente vive, a vida, parece-me. Uns dias preparam os outros. ;)

Jinhos.